Sábado, 19 de março de 2022 - 08h00
Sei, sei sim, Laços de Amizade, parece nome de novela mexicana, mas
qual novela ultimamente que não é mesmo meio misto de mexicana, paraguaia,
“guatemalteca” e afins? A que termina essa semana, Lugar ao Sol, chega a ser
surpreendente nisso – e não se trata de realismo fantástico, mas de como os
assuntos se entrelaçam e são finalizados na maçaroca, na pancada, igual querem
fazer com a pandemia.
Sempre tem um acidente de avião ou helicóptero que mata um,
dois ou mais personagens, e como dali não sobra nada, nem precisa ser mostrado
- economia boa de recursos; tem a mãe que não é mãe, o pai que não é pai, muito
menos o filho é filho, e suas variações; idas e voltas amorosas, casamentos, e
revelações, muitas revelações, como se os espectadores fossem todos obtusos e
ficassem sempre aguardando as redenções, o maniqueísmo do bem e do mal, o
expurgo das culpas. O cansaço dessa fórmula talvez demonstre a causa e o
crescimento da loucura por seriados gringos e seus roteiros mais sofisticados.
Mas quero tratar da realidade, dos laços de amizade reais.
Laços grandes, pequenos, médios, apertados ou frouxos, mas laços. De como é bom
ter alguém para chamar de amigo ou amiga, tantas vezes laços maiores do que os
mantidos com os próprios familiares. Com o advento das redes sociais, no
entanto, o sentido da palavra amigo se modificou, ficou mais aberto. Temos
milhares de amigos, que aceitamos, mas não conhecemos e, na maioria dos casos
nunca conheceremos pessoalmente, mesmo que alguns até bem gostaríamos. Tenho
seguidores, leitores, por exemplo, dos quais sei muito, fatos íntimos, converso
e troco ideias, mas que de repente podem passar ao meu lado na rua sem que nos
reconheçamos. Há, de qualquer forma, um bonito tipo de sentimento envolvido na
relação. Oi, amigo!
Só que nada como o real. As pessoas que conhecemos,
admiramos, com as quais percorremos alguns trechos da vida, com lembranças,
aprontos, muitas vezes até atritos nos pensamentos discordantes um dia, mas
resolvidos. Com essas pessoas nos preocupamos, ficamos apreensivos quando –
mesmo que talvez distantes, e andamos um bom tempo distantes de tantas coisas!
– delas não temos boas notícias. O que tem se tornado comum, inclusive,
situações e desfechos alardeados via redes sociais. O Facebook tem dia que mais
parece um obituário. E lá se vão os conhecidos, os amigos, pedaços de nossa
histórias, deixando a sensação ruim daquele café combinado, do encontro, o
telefonema adiado. Aquela pergunta não feita.
No momento, por aqui, a apreensão é enorme com um amigo
ligado a uma máquina e aguardando a chance de um transplante de coração, e
outro com um diagnóstico terrível daquela doença para qual o mundo ainda não
encontrou cura ou vacina, embora já ande passeando pelo espaço, até com venda
antecipada de bilhetes milionários em naves particulares. Os dois são
jornalistas, um mais jovem que eu, com 58; outro, já mais velho, por volta de
76. O que fazer nessa hora, a não ser orar, torcer? O que dizer para quem os
acompanha, para suas famílias, como aplacar a angústia? Como apoiar, inclusive
os seus outros amigos, alguns muito mais próximos deles ainda, que também
quedam desnorteados?
Difícil. Não lembro se já contei que tenho muito poucos
amigos reais – grande parte perdi, seja nas ondas terríveis anteriores
ocorridas em outras décadas, seja nessa agora que nos devastou de tanta gente
importante, e que só um dia mais lá para a frente teremos noção desse tempo de
pandemia. Pandemia agora desmascarada e que tentam acabar a pauladas em ano
eleitoral, embora esteja ainda tão presente, tão letal quanto a guerra. Quanto
as guerras.
Há quatro anos não via um desses poucos amigos, do casal
que mudou-se para Madri em busca de seus sonhos e de proporcionar ao filho
adolescente a chance de como cidadão do mundo poder realmente fazer suas
escolhas, meu afilhado postiço, hoje já com 19 anos e estudando em Haia, na
Holanda.
Alexandre está aqui em casa, onde vai passar uma temporada,
e essa convivência foi o que me fez lembrar mais uma vez do valor de uma
amizade real, especialmente para mim que só tenho meu irmão nessa vida (e uma
gatinha que aqui também habita, membra honorária da família). O tempo passou,
mas a distância de continentes em nada alterou o respeito que mantivemos desde
sempre, demonstrado inesquecível na solidariedade sem par que esses amigos
também dedicaram à minha mãe e ao meu pai quando mais precisávamos.
Interessante. Pois não é que nos conhecemos nus, despidos,
em uma praia naturista do Nordeste? Ainda hoje creio que foi esse conhecimento
tão inusitado e natural, sem disfarces, que nos tornou tão unidos, diferentes
de amizades outras em geral dependentes de recursos, interesses, e um enorme
tempo necessário para se conhecer a essência de um e de outro até ganhar
confiança.
Laços de amizade são fundamentais para contarmos. Para
nossa sanidade mental, e até para orientar nossos caminhos – que não nos
desviemos. Como diz a música, amigo é mesmo coisa para se guardar debaixo de
sete chaves.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação,
editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres.
E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).
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