Sábado, 2 de abril de 2022 - 09h30
Barata
nem tem sangue, nem poderia mesmo reagir às boas chineladas, vassouradas e
doses cavalares de inseticida que recebe quando as vemos, claro depois que
gritamos muito. Barata desestabiliza qualquer um, que tenha medo delas ou não.
Mas o caso aqui, sinceramente, é tratar da hipocrisia que grassou essa semana,
e entre os humanos.
Sim, tem a ver com o catiripapo que o ator Will Smith deu no comediante
Chris Rock durante a cerimônia do Oscar; portanto, ao vivo, diante de milhões
de telespectadores no mundo inteiro, além das outras estrelas de cinema no
local do “crime” e que ficaram ali, caras e bocas, na maior saia justa, junto
aos maravilhosos longos e smokings. Todo mundo viu. Will Smith, inclusive logo
depois premiado como Melhor Ator, levantou-se de sua cadeirinha para ir até o
palco dar uma bolacha no comediante que fazia, cheio de gracejos, a
apresentação de uma categoria e citou de maneira bem inapropriada Jada Smith, a
esposa do ator, ali ao seu lado, linda num deslumbrante vestido verde, mas
careca. Cabeça raspadinha, já que é acometida de alopecia, doença autoimune
séria que faz com que os cabelos e pelos do corpo caiam, em chumaços, de
difícil cura. Jada resolveu depenar logo os cabelos da cabeça. Foi exatamente
isso que a “piada” atingiu.
Realmente não pegou nada bem. Parece que a pendenga entre os dois, Smith
e Chris Rock, já vinha de outros carnavais, sempre por conta da Jada, enfiada
em piadas já em outras ocasiões.
Diz pra mim que você nunca teve vontade. Ao menos pensou, adoraria poder
reagir, chegou até a viajar nos requintes da desforra que faria. Vai guardando,
vai guardando, um dia a gente estoura, o pneu fura, a bomba explode, o saco
arrebenta, a boca range, o olho se aperta, e o sangue que não é de barata sobe.
Aí não tem estrela, educação, meditação transcendental, riqueza, pobreza,
cerca, muro ou escadinha para o palco que segure.
Nem me venham dizer o contrário. Sem entrar no mérito se foi certo,
errado; aliás, quem tinha muito mesmo a perder ali era o próprio e famoso e
milionário Will Smith, no mesmo dia de sua maior glória, sua maior crise. Só
não consegui entender o mimimi que se seguiu à bordoada, como se todos fossem
poços de paz, amor, incapazes jamais de qualquer descontrole.
Hipocrisia. Quero ver vir alguém mexer pesadamente com alguém que você
ame muito, da sua família, e você já estar com um osso entalado no gogó.
Ninguém começa a entoar Ave Maria numa hora dessas, vamos e venhamos. Por muito
menos, sete saias já rodaram, seja com homem, seja com mulher, com poderosos,
fossem maiores do que eu. Desaforo não deve ir para casa, e essa aula recebi de
criação.
Tudo bem, claro, que não precisa ser no tabefe, bifa, bofetão, na
lambada, no safanão, na lapada. Não precisa, mas cada um sabe o que se passa
naquele momento fervor. Will Smith que o diga. E a reação, ressalte-se, foi de
um negro contra outro negro - imagine se um deles fosse branco, o que se iria
dizer! Aliás, também li muitas críticas sobre o fato de ter sido o homem que
saiu em defesa da esposa, como se ela própria não pudesse se defender. Podia,
que ela é bem do balacobaco. Mas tem sorte de ter ao seu lado um marido sem
sangue de barata. Invejinha, te avisto daqui.
Ah, mas não se resolve nada assim. Ok, ok. O problema é exatamente esse,
não se resolve nada assim, e muito menos ainda quedando calado, abaixando a
cabeça, querendo resolver num cantinho para não chamar a atenção. Daí estarmos
todos nessa situação nacional de engolir sapos todo dia, e ficar esperando o
sapo do dia seguinte, entre risadinhas, ironias, memes e posts nas redes
sociais, esse lugar paradisíaco onde todo mundo é bonzinho, bonitinho,
politicamente correto, educado, na moral. Barata tonta. Entregue às baratas.
A verdade é essa filosofia de inseto, o sangue de barata, está se
espalhando em tudo, criando de forma geral uma impressionante apatia que a tudo
suporta – desde os preços nada baratos dos alimentos, as cidades às traças, os
desaforos com os direitos que temos, o oportunismo crescente, o mundo se
acabando diante de nós. Como se um grande medo coletivo tivesse se instalado em
prol não se sabe exatamente de quê.
Aliás, a barata, assim como a maioria dos insetos, nem tem sangue, mas um fluído chamado de hemolinfa, que pode ser até coloridinho dependendo do sexo e do tipo da barata. Por isso se diz que teriam “sangue frio” (o que entre nós humanos tem até um outro sentido bem violento). Talvez por isso as próprias nos enfrentem, escapem, subam nas nossas pernas, sejam tão ameaçadoras e nos obriguem a reagir o mais rápido possível contra elas. Quem, sangue de barata, consegue dormir com uma delas por perto?
Barata voa.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do
Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres. E para
homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).
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