Terça-feira, 22 de janeiro de 2019 - 12h14
O orçamento não passava de 140 mil cruzeiros. O velho território
aparecia inteiro no mapa do Brasil, mas dificilmente recebia do governo federal
o que tinha direito para custeio, desenvolvimento social e investimentos.
Em tempo de migalhas para territórios federais, o tenente-coronel paraquedista Abelardo de Alvarenga Mafra [filiado ao Partido Trabalhista Nacional] chegou a Porto Velho, governou em duas ocasiões e, ao cabo da segunda, em setembro de 1964, foi preso durante 52 dias no navio Princesa Leopoldina, no Rio de Janeiro, sob protestos da esposa Beatriz Segato de Alvarenga Mafra.
Por que a prisão? O
Comando da Revolução de 1964 cassou-lhe pelo Ato Institucional nº 1, que
atingiu 25 militares paraquedistas, dos quais, dez demitidos e 15
reformados. Desses 25, quatro teriam participação direta no movimento
fracassado para prender o governador Carlos Frederico Werneck de Lacerda
[1961-1965]*, em quatro março de 1963. Mafra era assistente do comandante
do Núcleo da Divisão Aeroterrestre, general Alfredo Pinheiro Soares Filho, e se
envolveu nessa operação, junto com o comandante da Companhia de Engenharia,
major Rodovalho Alves dos Reis.
Lacerda fora um dos
articuladores civis do golpe de 1964, porém voltou-se contra ele em 1966, com a
prorrogação do mandato do presidente Humberto de Alencar Castelo
Branco. Em novembro de 1966, após ter sido perseguido pelo regime que
ajudou a criar, lançou o movimento de resistência denominado Frente Ampla,
liderado por ele e por seus antigos opositores João Goulart e Juscelino
Kubitschek. Foi cassado em dezembro de 1968.
Em seu segundo
governo, Mafra criou a Escola Artesanal de Guajará-Mirim, reabriu a olaria do
governo, asfaltou a estrada do antigo aeroporto [atual Avenida Presidente
Dutra] até o Porto Velho Hotel [hoje administração da Unir] e retomou as obras
da BR-364. Criou uma companhia mista de desenvolvimento constituída por
garimpeiros de cassiterita, empresas privadas e órgãos governamentais,
entretanto, o projeto fora vetado pelo Conselho de Segurança Nacional.
Firmou convênio com
a FAO [agência da ONU para o combate à fome e à pobreza por meio da
melhoria da segurança alimentar e do desenvolvimento agrícola], contemplando a
borracha.
DEMITIDO POR
TELEGRAMA
Em menos de três
anos desde o primeiro ao segundo período de governo de Mafra, o Território
Federal de Rondônia teve cinco governadores, todos com mandatos curtos.
Terceiro nessa nova
fase, ele sucedeu Paulo Nunes Leal, entretanto, sua experiência administrativa
viera do período 1956 a 1957, quando era major e governara o Território Federal
de Fernando Noronha, arquipélago pernambucano.
“Sem água potável e
com apenas duas professores, uma das quais pedira demissão e um associação
civil que protegia a maternidade e a infância”, frisava. Ali existia
o famoso presídio a céu aberto requisitado pelo presidente Getúlio Vargas
em 1938 para abrigar 600 homens considerados subversivos, entre eles, o
guerrilheiro e poeta Carlos Marighella.
DUAS VEZES NO CARGO
Terceiro e o nono
governador do Território Federal de Rondônia, Mafra (PTN) viveu o começo de
conturbado período de troca de governadores entre 1961 e 1964, ainda com a
economia sustentada pelo extrativismo. Exerceu o cargo de 18 de março de 1961 a
13 de setembro daquele ano – quase seis meses. Voltaria pelo Partido Social
Democrático (PSD) para outro meteórico governo de três meses, de 27 de janeiro
de 1964 a 24 de abril daquele ano. Quando assumiu o cargo, Rondônia tinha
apenas um deputado federal, Renato Clímaco Borralho de Medeiros (PSP).
Sumariamente
exonerado do governo e excluído do serviço militar ativo, o tenente-coronel foi
transferido para a reserva [o equivalente a aposentadoria para militares] e
aposentado na patente de general de brigada, graças à anistia política em 1980.
Relatório de Mafra na internet revela que fora prestigiado por dois
presidentes da República – Café Filho, autor de sua nomeação, e Juscelino
Kubistchek que o visitou em Fernando de Noronha. A experiência o credenciava a
atuar na Amazônia Ocidental Brasileira.
No arquipélago, ele
se deparou com a falta de coleta de lixo, moscas e mosquitos, planejou um
forno crematório, e conseguiu três atuações de uma equipe do Departamento
Nacional de Endemias Rurais para dedetizar todas as casas. Numa das vezes
exterminou 1.500 ratos.
Mesmo com larga
folha de serviços e por mais que pudesse conciliar interesses, Mafra teve a
vida pessoal devassada. Um simples telegrama dos Correios, entregue no Palácio
Presidente Vargas, em Porto Velho, convocou-o com urgência a Brasília e de lá
ele foi levado a um quartel do Exército no Rio, recebendo ordem de prisão.
Diversos oficiais
superiores, capitães, tenentes e aspirantes – ao todo 112 – da Aeronáutica,
Exército e Marinha – também estavam ligados aos ex-presidentes Jânio Quadros e
João Goulart também foram presos na mesma época.
“O telegrama trouxe o golpe
militar para o Palácio”, diz o historiador Francisco Matias.
O então o secretário
geral Eudes Campomizzi Filho assumia o cargo, com amplos poderes, mas nem
esquentou a cadeira, conforme explicará o próximo capítulo desta série: a
intervenção no Território Federal.
A força
eleitoral cutuba estava em Porto Velho. Já os pele curtas,
na descrição do professor Valdir Aparecido de Souza, da Unesp, foram assim
denominados pela escassez de roupas e pela pobreza: “Eram os ferroviários,
profissionais liberais e trabalhadores em geral, representados pelo
médico Renato Medeiros, os renatistas. “Essa, talvez, seja a
primeira demonstração do sentimento de pertença que se tem registro na região,
porém o que os unia seria as classes sociais e categorias políticas às
quais pertenciam e não a região em si”, assinala.
APOIO A INDÍGENAS
Mafra apoiou o bispo
da Prelazia de Guajará-Mirim, dom Francisco Xavier Rey, e o padre Luiz Roberto
Gomes de Arruda a evitar o alastramento de doenças e massacres praticados por
seringalistas contra indígenas. No auge da expedição de contato dos Pacaás novos
para juntá-los a outros grupos da mesma etnia contatados nos anos 1950, a
Prelazia socorria indígenas com gripe, fome e tuberculose.
Enviou um
carregamento de remédios ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI). A
expedição partiu de Guajará em 20 de maio de 1961, dois meses após a sua
posse. Apesar de todo o esforço, os remédios escassos e a falta de
salários levaram antigos expedicionários a abandonarem seus postos.
Em agosto de 1963,
na acareação com o diretor do SPI, Moacyr Ribeiro Coelho, a Comissão Parlamentar
de Inquérito da Câmara dos Deputados constatou que a expedição começara antes
do governo João Goulart e, em nenhum momento, desmentira a morte de índios por
pneumonia denunciadas pelo padre Luiz Arruda.
“O desastre
continuou após o contato”, conta o jornalista Rubens Valente, em seu
livro Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na
ditadura.
“Entre setembro e
dezembro de 1962, pouco tempo depois da expedição, o sertanista Francisco
Meireles esteve na região por ordem de Coelho. Até pouco tempo antes temidos
guerreiros e hábeis caçadores, os Wari agora brigavam por comida no chão”.
“Último a ser
atraído, o grupo Pacaás novos estava em péssimas condições
assistenciais e faminto. Longe de suas lavouras, não tinham mais com que
se alimentar. Quando os tropeiros procederam à distribuição de ração aos
cavalos, tristemente os índios disputavam rações de milho com os animais”,
descreve o jornalista.
Lembra o médico
Gilles de Catheu, da Pastoral Indigenista da Diocese de Guajará-Mirim, que o
povo Oro Win foi vítima de massacres perpetrados na década de 1950 e no início
da década de 60.
Em 1994, o
seringalista Manoel Lucindo foi condenado pelo genocídio perpetrado em 1963 na
cabeceira do rio Pacaás Novos. Falta investigar o massacre do igarapé
Tiradentes (“Teteripé”), afluente do rio Cautário, que teve requintes de
crueldade”, ele pede.
Ao lamentar em nota
a morte do ancião Salomão, Tio´Mi, aos 96 anos, em 17 de outubro de 2017, na
aldeia São Luiz [alto Rio Pacaás novos], Catheu lembra que ele assistiu
impotente à morte de seus irmãos e de sua esposa grávida. “Ela estava escondida
no mato com seus filhos. Achando que o marido tinha sido morto, disse aos seus
filhos que não queria mais viver e se entregou. Salomão viu um homem abrir a
barriga da esposa com terçado e retirar a criança que foi jogada para cima e
aparada com a ponta do terçado. Quando os brancos saíram da aldeia, ele
conseguiu flechar um deles. Depois, cavou uma vala bem grande para sepultar os
mortos”.
“Meses após o massacre da
cabeceira do rio Pacaás novos, o seringalista Manoel Lucindo juntou o povo Oro
Win na sede do seringal São Luiz onde passou a conviver com os seringueiros.
Foram novamente dizimados, não pelas armas, mas pela gripe e o sarampo” – conta Gil de Catheu.
Segundo Catheu, os
sobreviventes trabalharam a seringa e a poaia “num regime de
escravidão”. Na década de 1970, a Funai levou os Oro Win para a Terra
Indígena Rio Negro Ocaia onde moram várias etnias do povo Oro Wari, seus
inimigos tradicionais. Em 1991, os Oro Win voltaram para sua terra que faz
parte da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau.
“Daí em diante, o
povo Oro Win voltou a crescer, formou novas aldeias e fortaleceu sua identidade. Vovô Salomão desempenhou
um papel muito importante no ensino da língua, dos mitos, das tradições, dos
cantos e danças. Nos últimos anos, ele trabalhou com o linguista Joshua que
registrou mitos, cantos e uma festa inédita. A história dá muitas voltas. Quem
podia imaginar, 51 anos atrás que o neto de Salomão Oro Win sentaria na Casa de
Leis [Câmara Municipal] de Guajará-Mirim, ao lado de Sérgio Bouez, neto do
seringalista Manoel Lucindo?” – indagou Catheu em 2015.
NA CASA DO GOVERNADOR, ORDENS PARA TRANSPOSIÇÃO
Francisco Mendes,
atualmente com 85 anos, morador na Vila Tupi, ex-funcionário da usina de
energia elétrica da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, lembra do apoio do
governador Mafra. A usina foi depois transferida para o governo com o nome de Serviço
de Abastecimento de Água, Luz e Força do Território [Saalft].
“A gente tava trabalhando,
eu com o finado Dico. Nessas alturas eu já era
mecânico, pois fiz o curso pela Escola Nacional da América do Norte, junto com
o Aragão da Usina de Borracha. Fui ligar a chave de tensão sem luva e peguei
uma descarga elétrica muito forte, bati a cabeça e tive que me tratar em
Manaus” – relatou Mendes em 2018 ao jornalista Sílvio Santos de Macedo, Zé Katraka.
Segundo o
ex-servidor, houve um atrito entre ele e o colega Dico e
ambos foram suspensos pela chefia da usina. “Os professores Lourival Chagas e
Abnael Machado de Lima souberam que eu estava sem trabalhar, e como a gente
havia estudado junto no (Colégio) Dom Bosco me chamaram para trabalhar como
professor. O funcionário Goleiro foi reclamar pro governador
Mafra e o negócio fedeu a chifre. Terminei voltando pra Usina e foi quando o
Manoel caiu vítima de um tiro de rifle na perna, quando caçava no campo do
Mário Monteiro (hoje 5º BEC); aí descobrimos que não tínhamos direito a
tratamento médico e nada, terminou que ele morreu.
Datilógrafo, Mendes
redigiu uma carta de reivindicações assinada pelos servidores e liderou o grupo
que visitou o governador à noite, na casa dele. “Nós todos éramos contratados
como assalariados extras, e ele realmente conseguiu nos colocar como
funcionários federais do quadro da União”, conta. E o ato foi assinado no
Palácio Presidente Vargas.
Mendes esclareceu
a Zé Katraka que o Saalft recebera dois motores a
gasogênio. Quando chegaram motores holandeses, Goleiro mandou
desmontar os primeiros, jogando as peças no meio da Rua do Coqueiro, ao lado da
usina. “A imprensa bateu forte, dizendo que ele havia jogado os motores fora.
Não sei por qual motivo, Goleiro mandava e desmandava no
governo, só se deu mal com a nossa turma, na questão do abaixo- assinado.
CARTA DA ESPOSA DE MAFRA
Setembro de 1964: o
ex-governador de Rondônia passara 52 dias preso a bordo do navio Princesa
Leopoldina, no Rio. Em carta ao marechal, que viria a ser o 2º
presidente do regime militar, ela explica: “Uma semana depois de voltar ao lar,
ele foi chamado ao Ministério da Guerra, e lá ouvido pelo general Lyra Tavares
como ‘testemunha’ no caso de suposto atentado ao governador da Guanabara”.
“Como se não fosse
suficiente, lhe cortam a carreira, mandando-o para a reserva, e agora é expulso
do Exército” – protestou Beatriz.
“(…) É incrível que
digam que digam ter feito uma revolução para apurar subversão e sejam punidos
homens que nada fizeram, além de cumprirem seus deveres. Homens esses que, por
serem humanos, compreensivos. Disciplinados e fiéis à sua Pátria, souberam
conduzir seus comandados com inteligência e respeito, conseguindo
transformá-los em amigos” – lamentou.
_____
* Carlos Lacerda recebera o nome de Carlos Frederico como homenagem aos pensadores políticos Karl Marx e Friedrich Engels. Era filho do político, tribuno e escritor Maurício de Lacerda (1888–1959) e de Olga Caminhoá Werneck (1892–1979), e neto paterno de Sebastião Lacerda, ministro do Supremo Tribunal Federal e ministro dos Transportes no governo de Prudente de Morais. Inimigo político de Getúlio Vargas, foi o grande coordenador da oposição à campanha dele à presidência em 1950 e durante todo o mandato constitucional do presidente, até agosto de 1954. Uniu-se a militares intervencionistas e aos partidos oposicionistas (principalmente a UDN) num esforço conjunto para derrubar o presidente, por meio de acusações que publicava em seu jornal, Tribuna da Imprensa. Vargas suicidou-se em seu quarto, no Palácio do Catete.
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