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Montezuma Cruz

Alto Juruá ameniza dor do analfabetismo praticando a solidariedade amazônica



Na reserva extrativista falta luz elétrica, crédito e professores para adultos. Pequena cooperativa de produtores de feijão e fumo abre caminho para a cidadania. 


MONTEZUMA CRUZ
Agência Amazônia 

LAGO DO CEARÁ, Alto Rio Juruá – O documento de uma pequena cooperativa de agricultores que será registrado esta semana no Cartório do município de Marechal Thaumaturgo, na fronteira brasileira com o Peru, contém não apenas assinaturas de associados, mas impressões digitais de diversos dedos polegares. São de pessoas analfabetas, isoladas em plena Amazônia do século XXI, na localidade de Lago Ceará, a cerca de mil quilômetros de Rio Branco. A distância inclui a rota do táxi aéreo e as dezenas de curvas dos rios Amônia e Juruá. Não há estradas na região.

Sem velas e sem lamparinas, na frente da escolinha de madeira, o jornalista Juracy Xangai valeu-se de faroletes para entregar certificados aos formandos do primeiro curso ali promovido pela representação acreana do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop). Ele representou o presidente da Organização das Cooperativas do Brasil no Acre, Valdemiro Rocha, na formação de uma cooperativa de produtores de feijão e folhas de fumo. São cerca de cem famílias da Reserva Extrativista da Região do Alto Juruá, até então exploradas por intermediários.

O fumo não aparece na estatística econômica acreana. A arroba transportada por regatões é vendida a R$ 250 em Cruzeiro do Sul. No Lago do Ceará, uns ajudam os outros. É comum almoçarem ou jantarem com visitas em casa. A cooperativa será o ponto de partida para maior rentabilidade do negócio. 

Alto Juruá ameniza dor do analfabetismo praticando a solidariedade amazônica  - Gente de Opinião

Joselito Motta viaja 8 mil quilômetros para estimular pequenos produtores de uma das regiões mais isoladas do País /MONTEZUMA CRUZ



Vida e saber, o maior patrimônio

A cena foi presenciada pelo pesquisador da Empresa Brasileira Agropecuária (Embrapa), Joselito da Silva Motta, mestre no processamento e agregação de valor de mandioca e fruteiras tropicais. Convidado pelo deputado Fernando Melo (PT-AC), membro titular da Comissão de Amazônia e da Frente Parlamentar em Defesa do Cooperativismo, na Câmara dos Deputados, ele viajou oito mil quilômetros, desde Cruz das Almas (BA), onde trabalha. “Vim ver um Brasil que muitos não tiveram o privilégio de ver”, comentou.

– Qual é o maior patrimônio de vocês? Primeiramente a vida, depois o saber – disse Motta, abraçado à líder comunitária Maria Aida da Costa Guimarães, filha de migrantes cearenses que ali aportaram no século passado. O pesquisador se emocionou durante a descrição dos múltiplos derivados da mandioca, cultura da qual ele é um dos maiores defensores. E os pequenos produtores reagiram ao estímulo, procurando saber mais.

– A mandioca é a raiz do Brasil – ele discursou ao grupo reunido por mais de uma hora, ao entardecer de sábado.
– Dessa planta que honra o povo da Amazônia a gente faz peta, avoador, ginete, brevidade, beijus, Temos ainda o cozido e assado, o casadinho, o ximango, a xiringa, palitos disso e palitos daquilo.

Motta apresentou-lhes um ralador que ganhou no Estado do Tocantins, dizendo que agora levaria para a Bahia a paxiubinha, cujo tronco tem espinhos. Excelente para descascar mandioca, esse tronco pertence a uma espécie de floresta primária, com preferência por ambientes úmidos.

– Está vendo? Vim aqui para aprender também. 


IDH baixo


Motta vive andando pelo Brasil, ensinando a fabricação de pizzas, beijus coloridos, suco, doces e pizzas de mandioca. Visita escolas, prefeituras, secretarias, unidades estaduais de assistência técnica, cooperativas e comunidades pobres. No mês passado ele esteve no Maranhão e na Paraíba. Nesta terça-feira receberá em Cruz das Almas uma delegação do Gabão, país africano. Até o final da semana, embarcará para o Suriname.

O Alto Juruá expõe contrastes conhecidos pelos governos, mas ainda depende da solidariedade humana para curar suas feridas. Com 8,5 mil habitantes e Índice de Desenvolvimento Humano de 0,533, considerado baixo, Marechal Thaumaturgo é o pólo de influência sobre essa gente. 


Canoa vira, motor afunda e
menina é salva na correnteza 


Alto Juruá ameniza dor do analfabetismo praticando a solidariedade amazônica  - Gente de Opinião

Alessandra, 2 anos, com a tia Antonia Ivone, segue viagem em outra canoa, após o naufrágio. Chega molhada em Marechal Thaumaturgo, com a única roupa no corpo. No fundo da canoa, o empresário Roberto da Princesinha /MONTEZUMA CRUZ

RIO JURUÁ, AC – No Dia de Todos os Santos, a menina Alessandra, de dois anos, foi salva de um afogamento numa correnteza do Rio Juruá, pela tia Antonia Ivone, 15, poucos quilômetros antes de chegar ao porto de Marechal Thaumaturgo. Elas viajavam de carona desde a Comunidade Tartaruga Dois. Perto da cidade, a canoa acidentou-se numa pedra, tombou e perdeu o motor.

– Eu nadei com só este braço. Com o outro, carreguei a menina até o barranco – contou a tia. Brincando em casa, Alessandra enfiara no nariz a minúscula tampa de uma bola de plástico. Para evitar infecção ou problema respiratório, a tia levou-a até a casa de uma avó, em busca de socorro médico,

Na tarde de céu nublado, às 14h (16h de Brasília) do dia 1º de novembro, quatro pessoas estavam na canoa, entre as quais o empresário Roberto Vieira, proprietário do Restaurante “A Princesinha”, de Rio Branco, que retornava do Lago do Ceará. Ele arremessou sua sacola para o mato, auxiliando em seguida tia e sobrinha.

Com mais três pessoas, o repórter retornava de uma visita à Resex do Alto Juruá. Paramos e demos carona aos três. Outros dois passageiros da canoa acidentada a desviraram para retirar a maior parte da água. Todos permaneceram dentro d’água, após o naufrágio.

Durante mais de uma hora, eles cutucaram o rio com um pedaço de ferro, mas não localizaram o motor. Meia hora depois, Alessandra desembarcou ainda molhada no pé da escadaria de madeira do portinho, vestindo a única roupa do corpo.

Hidrovia de pobre

Décimo sétimo maior rio do mundo, o Juruá nasce no Peru e banha os estados do Acre e Amazonas. Serve de hidrovia, uma pobre hidrovia pela qual trafegam os “regatões” carregados de arroz, feijão e gêneros alimentícios em geral, único meio de abastecimento das comunidades ribeirinhas.

Após cruzar a fronteira brasileira com o Peru, o rio passa pela Foz do Breu, para banhar em seguida as cidades de Marechal Thaumaturgo, Porto Walter e Rodrigues Alves, alguns deles conhecidos na Amazônia pela farta produção de frutas e farinha de mandioca. Já no Estado do Amazonas, esse rio banha as cidades de Eirunepé, Itamarati, Carauari e Juruá. (M.C.) 
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Beira do cais, em Marechal Thaumaturgo, cidade acreana com 8,5 mil habitantes na fronteira brasileira com o Peru /MONTEZUMA CRUZ




Solidariedade, o jeito para a cidadania


LAGO DO CEARÁ – Marechal Thaumaturgo e municípios vizinhos estão incorporados ao Território Rural de Identidade do Vale do Juruá, agora integrados ao Território da Cidadania (do governo federal), condição que lhes dá direito a ter prioridade nas ações voltadas para o acesso a direitos sociais, infra-estrutura e apoio a atividades produtivas.

Na viagem de canoa, os passageiros ouvem um estampido. Foi o tiro certeiro dado na espingarda por um menino, numa das margens do rio. Matou uma paca e o seu cão vira-lata vai correndo cheirar a caça. Vai levá-la para os pais, em casa.

Mais adiante, uma faixa indica que na praia são preservados quelônios. Entre preservar espécies e a necessidade de matar a fome existe um hiato que escapa à análise mais realista dos técnicos ambientais que acatam regulamentos expedidos em reuniões nos gabinetes de Brasília.

Emancipação à vista 

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Dona Aida (c) serve galinha ao molho com arroz e purê de mandioca aos visitantes: Fernando Melo, Juracy Xangai e Joselito Motta /MONTEZUMA CRUZ

Nas casas de madeira multicoloridas – com predominância do azul, verde, cinza, amarelo e rosa – crianças e adultos acenam para os viajantes do rio. Ainda não assistem TV. Alguns ouvem rádio. Sabem das notícias da própria região, do Acre e do Brasil, somente quando descem à beira-rio para comprar nos regatões.

Para o deputado Fernando Melo, a organização da comunidade do Ceará numa pequena cooperativa é uma notícia alvissareira na Amazônia: “Isso aumenta a possibilidade de emancipação. É o que eles precisam no momento”. No mês passado, antes de fazer a primeira visita ao Lago do Ceará, Melo foi ao gabinete do presidente da Organização das Cooperativas Brasileiras, Márcio Freitas, para lhe contar que algumas comunidades do Vale do Juruá, há anos produzem fumo.

– Foi bom que o deputado veio aqui ver como é que nós vivemos – disse seu Antonio, um dos líderes dos pequenos agricultores. Ele manifestou ao parlamentar a certeza de que em 2010, ano eleitoral, o tamanho das dificuldades vai diminuir.

A escuridão e as lamparinas podem estar próximos do fim, se o Programa Luz para todos decidir alimentar postes e fios já instalados ali. Por enquanto, uma placa de energia solar alimenta uma bateria para acender a única lâmpada existente na sala da casa de seu Antonio. (M.C.)

Próxima reportagem: A aventura de uma viagem no 17º maior rio do mundo. O repórter passou o feriadão em comunidades do Vale do Juruá, na fronteira brasileira com o Peru. 

Fonte: Montezuma Cruz - A Agência Amazônia  é parceira do Gentedeopinião

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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