MONTEZUMA CRUZ
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BOTUCATU (SP) – Desprezada por ser "cultura de pobre", conforme comprova o próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a mandioca pode ser resgatada pela Amazônia, especialmente no Acre. "Geralmente, quando a pessoa melhora de vida, recebendo acima de oito salários mínimos, vai deixando de consumi-la", lamenta o agrônomo Diones Salla, pesquisador do Centro de Raízes e Amidos Tropicais (Cerat), da Faculdade de Ciências Agronômicas de Botucatu, o único do País que investiga todos os segmentos da cadeia produtiva das tuberosas tropicais.
"Mas esse resgate não ocorrerá da noite para o dia. Precisamos resgatar sim, antes, porém, demonstrando que existe uma identificação cultural clara da mandioca com a
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Os visitantes conhecem no Cerat a máquina de lavar mandioca /M.CRUZ
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Amazônia", alerta o pesquisador. Ele compara: "É tal qual a Tailândia, o maior produtor mundial de amido, que não o consome".
O Cerat tem dado prioridade a pesquisas em avaliações agronômicas de espécies/variedades; tecnologias de processamento pós-colheita; desenvolvimento de processos e produtos; soluções dos resíduos da agroindustrialização; química de amidos; limpeza e propagação vegetativa.
Gaúcho de Soledade, mas apaixonado pelo Acre, o agrônomo tem muito a dizer sobre uma futura revolução mandioqueira no estado. Que tal, por exemplo, formar lavouras com safra superior a cem toneladas por hectare? A média nacional é 13 t/ha e a paulista, 33 t/ha no espaçamento 1m x 1m entre covas.
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Fernando Melo ouve Salla e conhece os produtos derivados da mandioca (sobre a mesa) /M.CRUZ |
Membro titular da Comissão de Agricultura da Câmara, o deputado Fernando Melo (PT-AC) abriu duas frentes de estudos e negociações: uma com o projeto pioneiro de produção de fécula, em Careiro Castanho e Manaquiri (AM), outra, com cientistas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Esta semana o deputado vai conversar com o presidente da Embrapa, Sílvio Crestana, para discutir o tema.
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Diones Salla: "Aumentar o plantio da mandioca no Acre significa o aumento do cultivo de outros produtos, com benefícios ambientais, culturais e financeiros" /M.CRUZ |
Salla recebeu Melo no Cerat, no campus da Fazenda Lajeado. "O que aprendi hoje me faz lembrar que do boi ainda se perde o berro, mas da mandioca tudo se aproveita e se transforma", diz o deputado, parafraseando Lavoisier.
O recorde de 150 t não foi obtido de graça, contam os pesquisadores do Cerat. Ele foi possível depois de um longo estudo de variedades, seleção de ramas, adubação, calagem e tratamento de solo. O milagre da multiplicação.
A água é a grande aliada econômica na industrialização. Obtém-se um quilo de mandioca ralada com o uso, de apenas 1,6 litros.
Sustentabilidade
Salla foi autor do primeiro levantamento feito sobre o conteúdo do amido na mandioca acreana, em 2005. Com ele trabalha o técnico agropecuário Douglas Alexandre Janes, outro entusiasta. Os dois vêm prestando inestimáveis serviços ao agronegócio na região da Média Sorocabana. "Durante muito tempo a mandioca foi vista aqui como cultura de fundo de quintal; hoje a situação é outra", ele diz. E espalha sobre a mesa dezenas de produtos derivados, rotulados e que agregam valor a essa raiz.
Nos olhos e nas vozes dessa dupla percebe-se que o resgate dos mandiocais se daria com projetos que valorizem a identificação cultural e, na seqüência, a sustentabilidade. No interior paulista, a mandioca poderia ser uma alternativa à cana-de-açúcar.
"Veja a essência da hidrólise da mandioca: o índio transforma com a boca amido em açúcar", comenta Salla. Lembra que a mandiocultura teve um empurrão na década de 1970, durante o lançamento do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), mas o empresariado brasileiro ainda não assimilou que ela pressupõe compartilhar conhecimentos. "Então, tudo fica restrito a poucas pessoas", queixa-se.
Em termos de aceitação cultural, os chineses dão um banho nos brasileiros. Lá, conforme os estudos do Cerat, bebidas com carbono três (C 3), à base de mandioca, por exemplo, têm mercado garantido. Ao passo que as bebidas com carbono 4(à base de cana-de-açúcar e milho) não são aceitas.
Produção por contrato
Para o deputado, o Acre tem condições de fazer o que outros estados, inclusive São Paulo, ainda buscam: comercialização por contrato. Estudo divulgado pelo Cerat em 2006 revela que, apesar do aprimoramento nessa modalidade de comercialização e da estabilização de preços de raízes de mandioca, as principais regiões paulistas negociam a safra por meio de contratos onde o preço mínimo é estabelecido em função dos custos de produção e dos teores de matéria.
Melo sugere: "O Governo da Floresta, que vem apoiando os extrativistas e os pequenos agricultores, abrindo ramais e procurando melhorar a comercialização, caso incentive a produção mandioqueira, poderá recorrer à Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), a fim de obter o preço mínimo".
Etanol, o "negócio da China"
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No laboratório do Cerat, o deputado observa o experimento de álcool à base de mandioca /M.CRUZ |
A produção de fécula de mandioca em 2005 alcançou 546,5 mil t, o que representa um consumo em torno de 2 milhões de t de raízes, registra a Associação Brasileira dos Produtores de Amido de Mandioca (ABAM). A produção excedente foi consumida na forma in natura: farinhas, polvilho azedo e outros produtos.
Estudo feito pelo pesquisador e diretor do Cerat, Cláudio Cabello, analisam também a mandioca como fonte de carboidratos para a produção de etanol.
A produtividade em carboidratos na cultura da mandioca é atualmente de 35 a 40 t de raízes/ha, com um valor de mercado de R$ 75 a R$ 85/t de raiz. Contém, em média, 30 a 32% de amido. O milho, 6 a 8 t/ha, com R$ 225, média 57% de amido. E a cana, de 85 a 100 t/ha, R$ 40/t, contendo em média 16% de sacarídeos.
Cabello observa que, reduzindo-se a produtividade por hectare tem-se 10,5 t de amido na mandioca; 3,4 t de amido no milho e 13,6 t de sacarose na cana, que, em termos de preços (de mercado) seriam R$ 250/t para o de mandioca; R$ 397/t do milho e R$ 250/t para sacarose da cana.
"Se os amidos demandam processos de hidrólises, a cana requer energia considerável no processo de extração, além de uma 'reconstrução' do sistema de esmagamento a cada período de safra de seis meses, permanecendo ociosa no restante do ano", analisa o pesquisador.
Conclui que os custos e o fator produtividade estão presentes em unidades processadoras de amidos, pois operam os 12 meses do ano, em estruturas mais simples, 'limpas', de ampla participação de fornecedores agrícolas que diversificam suas produções, intercalando outros materiais no mandiocal, ao contrário da cana, que só serve a uma finalidade, ou seja, produzir açúcar e etanol somente".
Assim, vê-se que a mandioca se apresenta com potencialidades para se opor a essa intensiva e extensiva implantação de cana no interior de São Paulo, ofertando possibilidades outras, além de farinhas, féculas, amidos modificados e etanol.
Acre deve produzir seu alimento
A Europa produz 90% dos alimentos que consome. E o Acre? Salla provoca Fernando Melo para o debate do tema. O deputado aceita o desafio e pedirá uma audiência pública na Comissão de Agricultura para que os parlamentares – amazônicos e de outros estados – possam ouvir os cientistas da Embrapa e da Unesp.
Salla fala do transporte da matéria-prima à agroindústria. Lembra que atualmente, na Europa, discute-se muito o "Km zero", isto é, o consumo bem próximo do plantio e do tratamento". Condena o "passeio dos produtos brasileiros", exemplificando o caso do arroz e garante: "A inteligência e um bom programa de governo podem evitar gastos com combustíveis, conforme demonstram os economistas ingleses".
Segundo o agrônomo, isso poderá se tornar um atrativo na industrialização do etanol de mandioca. "Sabemos o custo: o álcool possui 23 mj (megajaules), enquanto um litro de óleo diesel, 40 mj". A energia gasta com o combustível para transportar o arroz do Rio Grande do Sul ao Acre – mais de 4,5 mil quilômetros – é bem maior do que a energia contida no produto.
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Farinheiros jovens e adultos encontram na mandioca a sobrevivência na floresta amazônica / M.CRUZ |
Brasil, o segundo do mundo.
Mas subsistência continua.
O Brasil é o segundo maior produtor mundial de mandioca, com 14 milhões de toneladas em 2000 (dados do IBGE). A maior parte destina-se ao consumo na forma de farinha de mandioca e pequena parte vai para as fecularias.
O pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e consultor do Projeto Mandioca da Comércio de Produtos Industriais e Florestais Ltda (Coagro), José Osmar Lorenzi, lembra que a produção mundial alcançou 17 milhões de hectares distribuídos na faixa tropical do globo terrestre. "Em quase todos os países ela se caracteriza, em maior ou menor escala, como cultura típica de subsistência, em pequenas áreas dispersas, em aparente harmonia e equilíbrio biológico com a natureza", ele diz.
Lembra Lorenzi que raras são as regiões de extensas áreas cultivadas contiguamente. "Isso sugere que a mandioca não foi ainda submetida suficientemente à pressão de seleção que permita ser cultivada em larga escala com segurança de produtividade e estabilifade de produção", alerta.
As pedras no caminho
A exploração secular da mandioca, especialmente em pequenas áreas, condicionou seu desenvolvimento tecnológico tal qual se encontra atualmente. De acordo com o pesquisador Lorenzi, as principais instituições do setor, dispostas a trabalhar com mandioca, viram-se presas a financiamentos de organismos internacionais que valorizaram por muito tempo melhorias do sistema produtivo tradicional, sem, no entanto, investir em tecnologias que viabilizassem o cultivo de grandes áreas.
Por essa razão, sucessivos worksops (reuniões de trabalho) anuais promovidos em Botucatu e Campinas relacionam – sem esconder de ninguém – os principais obstáculos agrícolas que dificultam e até restringem cultivos de mandioca em larga escala:
– Material de plantio (qualidade, disponbilidade e manejo);
– Variedades (produtividade, arquitetura da parte aérea e resistência);
– Tratamento de manivas (necessidade, produtos, aplicação e eficiência);
– Plantio (máquinas, qualidade e rendimento);
– Adubação (de plantio e cobertura);
– Controle do mato (químico, mecânico e manual), e de pragas (mandarová e outras);
– Colheita (máquinas e rendimentos) e mão-de-obra (quantidade, disponibilidade e qualidade).
COMPONENTE
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Mandioca
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Milho
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Cana-de açúcar
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Produtividade agrícola
(tonelada/hectare/ano)
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30
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8
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85
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Açúcares fermentados totais (%)
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35
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56
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14,5
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Produtividade em açúcares (t/ha/ano
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10,5
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4,5
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12,4
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Conversão etanol (metro cúbico)
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0,59
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0,59
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0,59
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Preço da matéria-prima (R$/t)
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435,48
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639,41
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427,24
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