MONTEZUMA CRUZ
Agência Amazônia
Logo após o 11º Encontro Nacional das Entidades Médicas, um documento denominado Carta aos Brasileiros afirma que os médicos "entram em estado de alerta permanente em defesa da saúde da população". Menos na Amazônia. No documento, a classe exige a regulamentação, em caráter de urgência, da Emenda Constitucional nº 29, que estabelece a fixação de ações em saúde, a destinação obrigatória de recursos por parte da União, Estados e municípios e, principalmente, quais gastos podem ser efetivamente considerados investimentos no setor. Parabéns.
A EC 29 é descumprida, no mínimo, por 18 estados e em mais de 2 mil municípios.
Ainda na Carta aos Brasileiros, os médicos, em sua maioria moradores em estados do Sul e do Sudeste, postulam a ampliação da residência médica, adequando as vagas existentes às necessidades sociais e técnicas, preservando-se a autonomia da comissão nacional que regulamenta o setor. Estão certos.
O documento enfatiza que "médicos brasileiros e estrangeiros devem se adequar à legislação vigente". Ou seja, para os formados no exterior, exige-se a revalidação do diploma "em moldes uniformes, definidos por comissão bipartite, governo e entidades médicas, sob a supervisão do Ministério da Educação (MEC) em universidades públicas". Esses moldes uniformes deixam a desejar.
Em 2005 e 2006 o MEC fez vistas grossas a algumas imperfeições desse exame. À fraude e ao abuso cometido por universidades federais, por exemplo, especialmente a do Estado do Amazonas. Lá, dedicados profissionais, bem formados no exterior, daqueles que estudaram de verdade e se submeteram a estágios hospitalares antes mesmo de retornar ao Brasil se vêem obrigados a recolher uma taxa exorbitante acima de R$ 5 mil. Mesmo assim são subavaliados e excluídos do mercado. Ou ignorados, quando professores que deveriam testá-los se encastelam em casa e nos consultórios particulares depois de greves quase intermináveis.
O que ocorreu em Manaus é caso de Procon. Mas os conselheiros nacionais de Educação enxergam apenas o legalismo. Pobres daqueles que, em plena era da globalização, se formam em qualquer país sul-americano. A fraude — acréscimo de uma questão a caneta num depois da prova iniciada — fora denunciada em Brasília, ao Conselho Nacional de Educação. Tomaram alguma providência? Abriram inquérito administrativo? Puniram os fraudadores? Ressarciram os depósitos em dinheiro feitos pelos prejudicados?
"Os médicos brasileiros repudiam todo e qualquer acordo que fira a legislação e privilegie profissionais formados em qualquer país", radicaliza o documento. Algum médico dirigente da classe e nascido na Amazônia assinou o documento em sã consciência?
Agem desta maneira, mesmo sabendo que contribuem para a mais alta concentração de médicos de todos os tempos nas grandes cidades. Nesse lamentável vacilo, deixam sem médicos diversos municípios rondonienses, acreanos, norte mato-grossenses, roraimenses, paraenses, amazonenses, amapaenses e até do Estado do Tocantins. Disse vacilo? Isso mais parece um crime de lesa-pátria, além do desprovimento de sentimento cristão e humanitário.
Que tipo de (meia) preocupação é esta que alardeia situações sem considerar, com voz firme e com todas as letras, as deficiências do sistema de saúde na Amazônia, cujos municípios e capitais importam médicos a peso de ouro e promovem mutirões com médicos de universidades paulistas e cariocas? Ao que parece, não bastaram as sucessivas denúncias na imprensa, nem os debates administrativos e acadêmicos. O insensível e míope consciente Conselho Federal de Medicina mantém um doentio e execrável corporativismo ao impedir o médico formado no estrangeiro de trabalhar. Ao mesmo tempo em que permite morrer à míngua o doente amazônico.
Salvo honrosas exceções, médicos formados no Brasil trabalham onde querem. Noventa e nove por cento ignoram carências amazônicas, confundem Rondônia com Roraima, Boa Vista com Porto Velho, Manaus com Belém. E os que sabem não se sentem estimulados a trabalhar na região. No entanto, o sábio conselho que os ampara faz vistas grossas.
Por acaso alguém já ouviu ou viu campanhas incentivando os recém-formados no Brasil a trabalhar temporariamente em municípios carentes na Amazônia ou no Nordeste, repetindo a saga do Projeto Rondon? Talvez, a contratação de profissionais por programas do Ministério da Saúde tenha suprido parte do enorme vazio de médicos na região. Por pouco tempo.
Esqueceram-se do projeto do então senador Roberto Freire (PPS-PE), bombardeado e engavetado depois de propor que o médico formado no País passe pelo menos um ano trabalhando em município carente. Até agora, o corporativismo não permitiu que projetos semelhantes fossem aprovados. Formado no exterior, então...
Impossível que tão delicado assunto permaneça na inércia das sábias decisões da classe, país afora. O mesmo rigor na pressão médica sobre o Congresso não é visto em relação à salvação da gente pobre que estrebucha nas filas dos postos de saúde nos confins amazônicos. Onde ficou o Juramento de Hipócrates feito pelos senhores? Perdão, senhores, não merecemos tamanho descaso.
Sexta-feira, 27 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)