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Montezuma Cruz

E a repórter foi à ZBM, de bicicleta!


Cristina Ávila - Gente de Opinião
Cristina Ávila
Setembro de 1979: no bairro do Roque e de suas casas noturnas com suas luzes estroboscópicas e mulheres bem-vestidas, o segundo escalão da zona do baixo meretrício (ZBM) sonhava frequentemente com a chegada de garimpeiros a Porto Velho. Noutros pontos também era assim – o Bar Santo Antônio de seu Januário, por exemplo, na Avenida 7 de Setembro próximo ao Mercado do Km 1 e o Curral das Éguas, do Chicão, também funcionavam assim. 

No Curral das Éguas, a “pastora” com menos quilômetros rodados de cama estava na casa dos 40 anos, o que garantia a ambas as partes um papo mais sério e de efetivos resultados. Reúno aqui mais uns trechos do meu livro "Território dourado", com adendo para explicar quem é a jornalista gaúcha Cristina Ávila. 👇

Antes do advento da fama de Mutum-Paraná, qualquer peão que se aventurasse por lá seria tratado a “leite de pata” e chamado de doutor. Depois, quando muito, conseguia lugar numa banqueta para beber canja requentada e com mais dificuldade ainda, uma velha “pastora” para passar algumas horas num quartinho dos fundos.

Disputados por brasileiros e bolivianos, Tamborete e Palmeiral foram palco de tiroteios, fuzilamentos e mortes, deixando dolorosas marcas da tragédia amazônica que acontece na zona urbana e na floresta. O Exército Boliviano espancava e prendia garimpeiros, tomando-lhes o metal apurado.

Foi com os irmãos Geraldo (da Riomar) e Edson (da Boate Christian, no Bairro Nossa Senhora das Graças, que a vida noturna de Porto Velho conheceu o apogeu.  Até que um dia, aquela casa que também se chamou “Florestal” e, ao agonizar, “Fantasma”, sobreviveu apenas em nossas memórias.

O empresário Edson pareceu picado pela mosca azul dos burareiros [assentados pelo Incra em terras para o plantio de cacau] endinheirados que desembarcavam da Bahia em Ariquemes, e mudou-se para lá de malas e bagagem. Só não levou junto as “pastoras”, mulheres que faziam ponto em sua boate e ajeitavam suas conhecidas para a clientela.

Antes de ir embora, ele contava que Ariquemes já havia abrigado uma parte das "pastoras" de Porto Velho. E que as senhoras evangélicas de hoje me perdoem com a leitura desta parte do livro: “pastora”, entre 1970 e 1980 era a designação da mulher que se entregava aos “serviços femininos” nas noites porto-velhenses.

O asfaltamento da BR-364 facilitava a vida do empresário Edson, e ele via nesse progresso a oportunidade de promover o vaivém das meninas, semana sim, semana não.

Numa cidade sem maiores opções, boêmios e notívagos – incluindo-se alguns políticos, jornalistas, empresários e profissionais liberais – encontravam nas casas de prostituição do Roque o único meio de gastar as energias, outros, o minguado excedente do salário-mínimo. Alguns empresários e garimpeiros sempre dominavam o espaço da ZBM, até mesmo patrocinando noitadas dos amigos mais chegados.

Em proporção vantajosa e diante do sempre crescente número de mulheres, além do sexo barato, eles eram disputados à porta pelas sôfregas “pastoras”. Na ZBM da Capital, eles chegavam geralmente em grupos de cinco ou de até dez homens que arrebanhavam tudo o que encontravam pela frente. A fama desses conquistadores de barranco chegava forte aos cafundós do Madeira, tanto que as chamadas “garimpeiras do sexo” (mulheres que se prostituíam naquele período) circulavam todas as noites pelas imediações e lá dentro das boates.

Nas ruas sem asfalto, driblando os lamaçais, até meninas menores de idade eram vistas em seus indefectíveis shorts fazendo o trottoir. No Bar do Januário, no Chicão e na ZBM do Roque a presença das moçoilas animava o fã clube despertando, ao mesmo tempo raiva nas colegas mais velhas, medo nos donos dos estabelecimentos e pensamento de jerico nos frequentadores.
E a repórter foi à ZBM, de bicicleta! - Gente de Opinião
Mas o cenário movia-se da rara felicidade nos puteiros ao consultório farmacêutico ou hospitalar. Aqueles homens nômades vindos de outros estados amazônicos e de diversas regiões brasileiras engordavam as estatísticas da malária, consumindo altos volumes de boldo, jurubeba, eparema, aralém e eparex. Esses remédios diminuíam-lhes a ânsia de salvar o fígado.

“Entre meus melhores anos de vida, estão os primeiros anos de jornalismo. Eu era uma jovem deslumbrada que deixara Porto Alegre para experimentar a Amazônia. Nas redações porto-velhenses [ou porto-velhacas como a gente dizia] encontrei meu amigo-guru Montezuma, e mostrava pra ele cada lead que eu escrevia” – conta a jornalista Cristina Ávila, atualmente uma das melhores jornalistas ambientais do País.

“Eu era fascinada por aquela Rondônia que se transformara em estado um mês antes da minha chegada, um território federal que cresceria com a ajuda de motosserra e correntão. Foi nele que me apaixonei pelas questões ambientais e indígenas. E foi lá que aprendi a ser jornalista, provocada pelos valiosos colegas que já exerciam a profissão há alguns anos, com muito gosto e competência. O Monte pediu-me para fazer uma matéria na zona de meretrício, no Roque.

“Depois eu fui descobrir que era só uma provocação, uma brincadeira no meio da tarde na Redação do jornal A Tribuna, mas eu acreditei e fui – de bicicleta e à noite! – prossegue Cristina.

“Não havia ainda a mordomia de carro fora de hora para a equipe. Chegando ao Roque, deixei a magrela no canto da rua, que era tomada de barracos caindo aos pedaços dos dois lados, e entrei no puteiro. Saí de lá feliz, de madrugada, depois de tomar cervejas vendidas a preço de ouro e anotar muitas histórias. Deixei muitas moças e garimpeiros sem entender coisa nenhuma. Não conseguiam conceber porque uma guria de 25 anos estava mais interessada em conversar do que em arrematar algumas daquelas pepitas que brilhavam em abundância em cima das mesas” – ela acrescenta rindo muito.
E a repórter foi à ZBM, de bicicleta! - Gente de Opinião
Táxis chegavam e saíam, trazendo e levando homens de todos os tipos e caráter. Em frente a uma das seis banquinhas (quiosques-lanchonetes) das imediações das boates, a do conhecido Degas era a mais frequentada. Prato feito e sopa custavam 20 cruzeiros a unidade, e churrasquinhos, dez cruzeiros. Ao lado funcionava o snooker Taco de Ouro, cujo proprietário, conhecido por Baiano, arrendaria em 1979 a Boate Copacabana, que nasceu após a interdição definitiva da Boate Riomar, a mais frequentada por menores.

A promiscuidade amazônica começava nesse período a se chocar com a Lei, porém, sem o impacto causado pela internet – que só chegaria 18 anos depois – e mediante vergonhosos acordos entre molestadores, vítimas e pais que concordavam em receber dinheiro para esconder sua cumplicidade com a “venda” do corpo da filha.

O jornalista Jorcêne Martínez, de A Tribuna, e comigo, editor do jornal mensal Barranco, constatava situações dolorosas e ao mesmo tempo banais: “Olha, ontem um pai com 47 anos de idade me revelou casos de amigos que ofereceram filhas! Ele me disse que os conhecidos dele sabem qual será o destino delas, mas concluem que uma boca a menos é mais forte que a vergonha”.

A permissividade amazônica ali estava diante do repórter que tempos antes se surpreendera no bairro Papoco, em Rio Branco, ao relatar que uma menina de 11 anos dera à luz um bebê. E o noticiário dando conta de pais e mães “vendendo” filhas prossegue até os dias de hoje.

De alguns de seus entrevistados na ZBM, Martínez ouvia frases que pareciam ensaiadas, porém, denotavam sentimentos verdadeiros. Nessa linha: “Quando conheço uma situação de pai que entrega a filha, lembro das minhas menores; daí, quando me vejo numa enroscada igual dou um dinheirinho à mocinha e não fico mesmo. É horrível para uma virgem começar a vida num bordel.”

Com a Riomar agonizava a vida noturna porto-velhense, e nem a sua pretensa substituta, a Paissandu, a menos de cem passos da Copacabana, conseguiria reeditá-la.

Casa da Anita, Rosa dos Ventos, Stúdio 29, Cema, Tartaruga, todas com características próprias, tornavam frenética a noite em Porto Velho. Esses lugares encantavam não apenas garimpeiros, mas uma enorme casta de profissionais liberais, políticos, jornalistas e aqueles menos endinheirados, tais quais os estudantes de colégio. 
(Voltarei ao assunto

___ 

NOTA
Cristina Avila, hoje com mais de 40 anos dedicados à reportagem, começou conosco, no saudoso jornal A Tribuna em Porto Velho. A provocação para ir à Zona do Baixo Meretrício deve ter inoculado em suas veias o jornalismo de vanguarda que um dia fizemos naquele diário do igualmente saudoso advogado e jornalista Rochilmer Mello da Rocha. Atualmente, Cris conclui pesquisa iniciada há mais de dez anos, a respeito do  impacto da abertura na Transamazônica nos povos indígenas; os Arara são os que mais sentiram as consequências. A BR-230 fora aberta durante o regime militar. Para compor seu livro-reportagem, ela já viajou de ônibus, pau-de-arara, balsa, naviozinho, rabeta (pequena canoa motorizada) e de Niño, que vem a ser um Uno 2001 adaptado para ser um minúsculo motorhome, no qual cabem um colchonete, um fogãozinho, uma mesinha para trabalho e um bagageiro, esse talvez o mais importante dos acessórios. Nele, vão as peças de roupa femininas, em muito boa qualidade, que recebe das amigas. Comida, já experimentou de tudo um pouco, até carne de bichos. Vem aí um baita livro. (M.C.)

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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