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Montezuma Cruz

Até quando a retórica?

A Amazônia não é prioridade nacional


Até quando a retórica? - Gente de Opinião

A Amazônia não é prioridade nacional. Esta verdade contraria a retórica dos discursos e das mensagens publicitárias. Mas ficou mais uma vez evidenciada  pela polêmica desencadeada em torno da reforma do Código Florestal. O eixo do combate, travado (para efeito de simplificação) entre “preservacionistas” e “desenvolvimentistas”, era a redução ou ampliação da possibilidade de desmatamento na região.

Na semana passada, os segundos venceram: conseguiram uma aprovação tranqiuila (10 votos contra 3) para a emenda do deputado Moacir Micheletto (PMDB do Paraná), numa comissão mista do Congresso Nacional, voltando a ampliar de 20 para 50% a área que pode ser desmatada em plena floresta amazônica, além de outras modificações que tornam mais permissivas as normas ambientais brasileiras.

Os chamados ruralistas deixaram de lado uma democrática negociação de três meses mantida pelos representantes de todos os grupos envolvidos ou interessados na questão, que fluiu dentro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para um projeto de lei apresentado pelo governo ao Congresso, e virou a mesa. O substitutivo de Micheletto volta em alguns pontos ao texto original do Código Florestal, de 1965, e, em vários outros, a muito aquém, como se nesse período a humanidade não tivesse evoluído para a compreensão dos problemas ecológicos do planeta.

Nada mais natural do que a reação generalizada contra a decisão tomada pela comissão parlamentar. O governo foi acusado de fazer corpo mole à manobra dos ruralistas em troca dos votos da bancada mais conservadora do Congresso, em favor da aprovação do salário mínimo de R$ 151, em votações que ocorreram simultaneamente. Tentando se desvencilhar da acusação, o governo anunciou de pronto que vetará a emenda Micheletto se ela for aprovada em plenário, a próxima etapa da sua trajetória. Até lá, estará restabelecido todo o clima de tensão e desgaste que parecia ter sido superado com o acordo em torno do projeto de lei referendado pelo Conama.

Entre o inferno e o paraíso

A aprovação do texto patrocinado pelos ruralistas é um retrocesso tão explícito que parece difícil sustentá-lo diante dos protestos surgidos de todos os lados, fora (como de regra) e – principalmente – dentro do país. Mas nem a emenda Micheletto era a antessala do inferno, nem sua rejeição abrirá as portas do paraíso. A Amazônia continuará naquele terrível círculo intermediário descrito pelo poeta italiano Dante Alighieri na sua Divina Comédia: o purgatório.

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Em 1996 (ver Jornal Pessoal 144) o governo decidiu elevar de 50% para 80% a área de reserva legal de cada imóvel rural estabelecido em floresta densa amazônica. Era a reação à nova expansão dos desmatamentos a partir de 1991, depois de um decréscimo registrado desde 1988, sucedendo o pique de derrubadas em 1987 (80 mil quilômetros quadrados de selva tropical vieram abaixo nesse ano, triste recorde mundial batido pelo Brasil, sem contar outros 120 mil km2 de outras coberturas vegetais derrubadas só na Amazônia).

Apesar dessa providência, o percentual de desmatamento na Amazônia pulou dos 12% dessa época para os atuais 15% da superfície da região, índice que se torna ainda mais grave quando se toma como referência não a área total (os 100%), mas o limite passível de desmatamento (80% na versão ainda em vigor ou mesmo os 50% do deputado Micheletto). Na verdade, restariam 20% ou, no máximo, 40% de áreas legalmente desmatáveis.

Só que, ao invés do que aconteceu em 1996 (uma medida restritiva, eficiente ou não, como resposta à tendência detectada de crescimento das derrubadas), agora se propõe abrir ainda mais as porteiras, quando até mesmo o bom senso recomenda exatamente o inverso. De positivo, há a reação, o protesto e a indignação que tomaram conta da maioria da população brasileira. No entanto, um segmento ainda expressivo dela – e, dentro dele, um grupo agressivo e poderoso – teima em seguir na direção oposta, dispondo a tudo para alcançar seu objetivo.

Como está provado na prática pelos dois anos recentes de crescimento continuado dos desmatamentos, após uma estabilização nos dois anos anteriores, a mera norma legal não é o bastante para inibir os processos econômicos irracionais e destrutivos na Amazônia. Em parte porque é difícil fazer cumprir a lei numa região tão grande. Em parte, também, porque, quando há os instrumentos para executá-la, uma série de interferências tira a eficiência e a eficácia na hora de colocá-la em prática (dificuldades em relação às quais serve de exemplo a série de escândalos no Ibama do Pará).

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Entretanto, se houver vontade, a situação pode começar a mudar. A vontade é poderosa quando está bem motivada, solidamente sustentada. Infelizmente, os brasileiros ainda desconhecem o que é a Amazônia (mais desgraçadamente ainda, nem os habitantes da região têm essa consciência). 

Seria improvável – para não dizer impossível – que os ruralistas e seus Michelettos conseguissem audiência se a nação estivesse convencida de algumas premissas fundamentais da “questão amazônica”, que já são consideradas como verdades pela ciência. Tais pressupostos fariam esses senhores se tornarem tão anacrônicos e ridículos quanto um finlandês defender a destruição de suas florestas (de produtividade incomparavelmente superior à brasileira, embora com um recurso natural incomparavelmente inferior).


AMAZÔNIA QUE ACABOU


Um pressuposto é de que 500 mil quilômetros quadrados já perderam sua cobertura vegetal original na Amazônia. É uma área do tamanho de São Paulo, na qual a característica especificamente amazônica desapareceu: os solos estão expostos à lavagem da chuva e à laterização provocada pelos elementos naturais, sem a reciclagem natural de nutrientes derivada da massa vegetal e sem seu guarda-chuva protetor. 

Desses 500 mil Km² que, paisagisticamente falando, se tornaram semelhantes ao restante das áreas tropicais brasileiras, 160 mil Km² estão abandonados. O rendimento dessas áreas decresceu, enquanto os investimentos necessários para mantê-las em produção subiram em progressão diametralmente inversa. É o retrato do que acontecerá com o remanescente da área que ainda tem sua floresta nativa.

Um exame ponderado e corajoso da situação levará a uma conclusão óbvia: a penetração no que ainda é a hileia amazônica precisa ser feita de forma diversa do padrão da colonização realizada até agora. É a maneira de não reduzir o que era (e será cada vez mais) um potencial de riquezas fantástico num acervo empobrecido, dilapidado.

O problema para difundir essa percepção está na própria lógica dessa máquina de destruição: como a recuperação de uma área degradada na Amazônia é cara, prefere-se expandir a fronteira econômica, que sai mais barato. Num raciocínio de curto prazo, é claro.

Sai mais “em conta” porque o Brasil se recusa a aceitar que a floresta vive num ciclo fechado com os demais elementos do ecossistema, sendo o seu principal componente, do qual dependem todos os demais, embora vivam em conjunto numa sinergia sofisticada e sutil, intimamente mutualista. 

Essa impressionante máquina da natureza garante a vida de árvores de 40 a 50 metros sobre um solo quimicamente pobre, com uma camada de nutrientes fina, de poucos centímetros, incapaz por si mesma de alimentar aqueles enormes seres vegetais.

Uma exploração econômica inteligente não pode ser desenvolvida na Amazônia causando curto-circuito nesse ciclo fechado de água-luz-floresta. O preço é provocar incêndios devastadores, em sentido real (como têm mostrado os satélites de informação) e, por enquanto (até que a ciência conclua cada um dos seus processos investigativos), em sentido figurado, a figuração de um desenvolvimento tão inovador que pensar nele agora parece coisa de profetas, loucos e poetas.

Os estrangeiros, com seus ciclos de produção de conhecimento mais adiantados, sabem que não é assim. Posicionam-se tentando extrair – legalmente ou clandestinamente, não importa muito – as informações, sobretudo genéticas, contidas no ecossistema amazônico, enquanto elas estão disponíveis. Gostariam que tudo parasse na região até terem podido inventariá-la. 

Como isso não parece factível, apressam-se a juntar o que podem e a tentar instalar-se nas áreas de maior interesse. Nessa busca podem chegar a conceber planos de anexação ou subtração? Essa é sempre uma hipótese a considerar, mas a melhor atitude não é a de negar os pressupostos de tal atitude, mas incorporá-la e sair na frente.

A conquista da Amazônia não é tarefa geopolítica, militar e nem mesmo “desenvolvimentista”, enquanto esse conceito estiver sendo manejado pelos que o entendem como a tradução de formas tradicionais em outras regiões (a agricultura ou a pecuária, quando não são irracionalidades, tornam-se subutilização insustentável fora das várzeas na Amazônia). A tarefa de penetrar na região é um desafio da ciência, da tecnologia, da educação. Sem esses três componentes, desenvolvidos na escala necessária, talvez nunca se consiga eliminar a desinteligência sobre a Amazônia.

Só quando ela não for mais do que uma mata fina, um capoeirão ou um cerrado imensos, talvez seja possível demonstrá-la como um organismo harmônico sem igual no planeta. A demonstração, nesse caso, será feita não mais no ambiente aberto, no campo propriamente geográfico, mas em museus. Com direito a passar por um muro das lamentações de tamanho amazônico, o único elemento amazônico que restará: a grandeza física.

Terá sido uma desgraça para os que chegaram a essa compreensão nos dias atuais não conseguir socializá-la, torná-la patrimônio coletivo. As ardorosas polêmicas em torno dessa emenda Micheletto mostram o primitivismo e a pobreza da concepção dominante sobre a região, por enquanto uma pérola rara atirada aos porcos. 

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Para garantir a integridade da Amazônia e o saudável exercício da soberania nacional sobre ela, o Brasil já devia ter conferido a qualquer proposta autorizando novos desmatamentos em áreas de floresta densa a classificação que merece: estupidez.

Não basta, porém, desautorizar essa visão de terra arrasada. É preciso construir uma maneira justa e adequada de utilização da Amazônia. Para ela se tornar possível, os orçamentos de ciência, tecnologia e educação na região precisam ser multiplicados várias vezes, o pessoal envolvido em tais tarefas se expandir em número e em interiorização, projetos experimentais devem ser implantados conforme a área e a atividade, num projeto que, para ser sério, tem que ser comparável a empreitadas como a conquista do espaço.

Enfim, para ser nossa de fato e de direito, a Amazônia exige um investimento que até agora o Brasil não se mostrou disposto a fazer e uma vontade que também não parece estar próxima porque as visões se estratificaram, refratárias à verdade. A Amazônia continua a ser uma bandeira e a uma retórica, ambas rotas e vazias.



* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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