MONTEZUMA CRUZ
Amazônias
BRASÍLIA — Ao completar 45 anos de carreira profissional, Luiz Salgado Ribeiro oferece um presente aos jovens e aos brasileiros de modo geral: o livro “Andanças” — histórias de um jornalista à moda antiga. Seus capítulos dão o sabor de folhear novamente as páginas de O Estado de S. Paulo, formatadas em oito colunas, com seções fixas de Terras, Índios, Igreja, e a última página sempre reservada a uma reportagem especial.
Em relatos emocionantes e esclarecedores, Salgado testemunha uma parte significativa da vida no Brasil Central e na Amazônia dos anos 1960 e 70. Para a Primavera Editorial, o livro caracterizado por relatos emocionantes e esclarecedores agradará jovens jornalistas interessados na história da imprensa brasileira.
Paulista de Pindamonhangaba, o autor de “Andanças” começou a trabalhar em 1964, na revisão do extinto A Gazeta, mas alcançou o auge da carreira no Estadão. Foi correspondente em Manaus e coordenou a criação da Agência Estado. Trabalhou também na Folha S. Paulo. Durante a chegada de gaúchos retirados da Reserva Indígena de Nonoai (RS), mudou-se para a recém-nascida Canarana, no leste de Mato Grosso, e ali editou o Jornal da Terra.
Suas histórias se misturam à trajetória do jornalismo nacional. Ele viveu talvez o melhor tempo de bom plantio e de grandes colheitas no Estadão, bem antes do fax e do e-mail.Tempo em que o rádio, o radioamador, o telefone a manivela, os correios, os cabineiros — que recebiam notícias com o fone no ouvido — os telex, os teletipos e os tradutores faziam pulsar o jornal, de Beirute, a capital do Líbano, a Rio Branco (AC).
Por sinal, foi esta a descrição perfeita do cotidiano do Estadão, noticiada numa reportagem especial a respeito do dia em que o jornal celebrou cem anos de vida independente, em quatro de janeiro de 1975.
“Nenhuma ONG protestou. Nenhum leitor também”.
Quatro décadas atrás, o repórter especial Salgado acompanhou construção da rodovia BR-230, a Transamazônica. Com muita disposição, indiferente a permanecer semanas e meses longe de casa,
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BR-163: de Cuiabá a Santarém, 1.777 km de novidades para um destemido repórter /SOCIOAMBIENTAL
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participou de contatos com indígenas isolados ao longo da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém); conviveu com os sertanistas irmãos Villas-Bôas; ajudou o pastor luterano, líder cooperativista e deputado constituinte Norberto Schwantes a construir cidades na selva mato-grossense. Enfim, preferiu retratar o Brasil real, mesmo tendo oportunidade de conhecer países europeus.
A respeito de si mesmo e da transformação vivida pelas Redações, o autor desabafa:
— (…) Como a onça pintada, o urso panda e a baleia azul, eu também pertenço a uma espécie em extinção: a dos jornalistas que viveram o tempo em que um jornal de papel e tinta tinha muito mais informação, emoção, vida e força que o jornalismo da televisão.
E a óbvia conclusão, diante de um público possivelmente anestesiado diante do tempo real da internet e talvez conformado com a essência dos jornais da atualidade, feitos sem aquele investimento tão salutar na reportagem, mesmo aquelas feitas no cafundó do Judas:
— Com tamanhas e tão profundas transformações no ecossistema dos jornais, que jornalista da velha espécie poderia, ou ainda pode, sobreviver? Pena, nenhuma ONG protestou. Pior, parece que nenhum leitor também.
À procura dos “índios gigantes”
Página 110
(…) “Em janeiro de 1972, eu e o fotógrafo Rolando de Freitas, acompanhamos o início da expedição dos irmãos Orlando e Claudio Villas Bôas, que procuravam afastar os índios kranhacârores da rota da rodovia Cuiabá-Santarém.
Esses índios estavam completamente isolados, não tinham contato nem com outros índios da mesma nação. Eles viviam perto da divisa do Pará com o Mato Grosso, na altura da Serra do Cachimbo e deveriam ser levados para o Parque do Xingu, porque a sobrevivência deles estava ameaçada pela estrada.
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Construção da BR-230, Rodovia Transamazônica teve reportagens de Salgado no Estadão /IBGE
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Eles eram tidos como gigantes por um fato curioso: anos antes, quando os Villas Bôas contataram os txucaramães, encontraram na tribo um índio, chamado Mengrire, com 2,04 metros de altura. Como os demais não chegavam a 1,80 m, isso chamou a atenção. Os irmãos sertanistas procuraram saber a história de Mengrire e os txucaramães disseram que ele havia sido roubado, ainda criança, de uma tribo, a dos kranhacârores e que lá, todos eram altos como ele. ”
O outro lado da Transamazônica
Página 130
(…) “A construção da Transamazônica foi a principal peça de propaganda do governo Médici. No final dos anos 1970, todos os jornais e revistas do País estampavam reportagens ufanistas a respeito da estrada, apresentando-a como a grande solução para integrar e desenvolver a gigantesca região coberta de selvas e, até então, praticamente intocada. Todos não.
Desde a tal entrevista dada e negada pelo diretor do DER do amazonas, o Estadão apresentava críticas contundentes ao grande projeto federal, apontando falhas que iam da concepção até a contratação
de empreiteiras… ”
Cumprindo ordens
Página 150
(…) “Estava em Cuiabá, dando por terminada uma maratona de quinze dias por diversos municípios mato-grossenses para escrever uma reportagem sobre violência e corrupção na Polícia Militar de Mato Grosso. Era manhã de sábado, 27 de outubro de 1976 e já me preparava para pegar o avião de volta para São Paulo.
Aí recebi um telex do Raul Bastos, promovido a um dos chefes de redação do Estadão, função que exercia com Clóvis Rossi e Ludenberg Góes. Dizia que, na terça‑feira seguinte, o presidente Ernesto Geisel iria inaugurar a Cuiabá‑Santarém e que o jornal queria que eu fizesse uma ampla matéria de apresentação da estrada, com seus 1.777 quilômetros de chão batido. A reportagem deveria ser publicada com a notícia da inauguração. Minha vontade de voltar para casa sumiu na hora.”
A “dixieland band”
Página 229
(…) “Trabalhar na Folha depois de ter passado pelo Estadão, foi uma sensação semelhante a de um músico que deixa de tocar em uma orquestra e vai para uma “dixieland band”, troca partituras e rígida coordenação de um maestro pelo completo improviso.
No Estado, o repórter tinha à disposição um ótimo arquivo, onde podia encontrar, com facilidade, tudo que já fora publicado sobre o assunto que ele iria tratar naquele dia. Aí dava para ver qual a posição do jornal sobre aquele assunto e muitas outras coisas que seriam básicas para escrever uma boa matéria.
Além disso, os editores sempre enfocavam os pontos que deveriam ser destacados na reportagem e o repórter ia para a rua com a cabeça feita sobre aquele assunto. Na Folha, nada disso. O arquivo era ruim e ninguém o consultava.
Nair Suzuki, a pauteira da Editoria de Economia, tinha na cabeça todos os acontecimentos da área. Era um verdadeiro computador. Ajudava muito os repórteres a encontrar o foco para suas matérias, mas em síntese, suas pautas podiam ser traduzidas mais ou menos assim: “O assunto é tal. Vai lá e faça uma boa matéria!”.
Convocação: “Velhos repórteres,
libertem suas histórias”
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Nos anos 1970, Raul Bastos comandou a maior rede de sucursais e correspondentes da imprensa brasileira /ABI
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Coordenador chefe de sucursais e correspondentes de O Estado de S. Paulo
entre os anos 1960 e 1970, o jornalista Raul Martins Bastos apresenta o livro, dando a noção exata de como tudo funcionava. Para ele, se todos os velhos repórteres fizerem o que fez o autor de “Andanças”, haverá como resgatar e preservar tudo:
— Resgata-se a memória de um período extraordinário, complexo, rico, perigoso e fascinante de nossas vidas e da nossa história. Luiz Salgado Ribeiro não quer que sua história fique aprisionada nos arquivos — e nem em lugar nenhum —, daí a principal missão deste livro. Que, de certa maneira, é também um convite, uma convocação para os então jovens repórteres daquela época fazerem o mesmo. Libertem suas histórias.
Distribuídos por todos os Estados, eles somavam 150. Todos trabalhavam todos os dias, o ano inteiro, cobrindo tudo, do arbítrio ao futebol.
Para Bastos, há muito a ser contado e precisa ser contado por quem a viveu em todas as várias frentes do jornalismo daquela época.
— Não que as outras histórias — do papel do jornalismo no enfrentamento dos anos de chumbo — não tenham sua imensa importância aqui reconhecida, é bom que fique claro. Mas, a bem da realidade, não se deve deixar que só apenas o relato do jornalismo de combate ocupe totalmente a história do jornalismo daquela época. Por quê? Porque a despeito das dificuldades, da censura, das prisões, das torturas de jornalistas, o jornalismo avançou como nunca tinha avançado até então.
Produção quase não via os mateiros
Do Departamento de Produção saíam pautas, autorizações para viagem, pagamentos e tudo quanto se relacionasse à vida do correspondente. Pontual nas recordações da época de ouro do jornal, Bastos Lembra que o Estadão possuía um corpo de repórteres de primeira linha.
— Aliás, vários corpos de repórteres: os especiais, geral, saúde, educação, esportes, cultura, tecnologia, política, o de correspondentes nacionais, internacionais, do interior, uma enorme e magnífica máquina de capturar e produzir informações espalhada por todo País e no exterior.
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Salgado Ribeiro: “Pertenço a uma espécie em extinção /USP |
Quer sabê-los? Leia o livro.
— O doutor Julio Mesquita Neto bancou tudo isso e muito mais. E muito mais foi a corajosa luta contra a ditadura, a censura, o arbítrio. Dr. Julio precisa ter a sua história resgatada e contada direito, com o respeito e a consideração que ele merece.
Na Rua Major Quedinho nº 28, no prédio de esquina com um baita relógio no alto e, à altura do 1º andar, as manchetes correndo o dia todo no painel luminoso, Bastos comandava no centro de São Paulo uma gloriosa equipe espalhada por fronts a centenas e milhares de quilômetros de distância da sede.
— Nesse mundão de repórteres, havia uma turma que quase nunca víamos, uns ermitões, uma espécie de legião estrangeira das missões impossíveis, que, na falta de um nome melhor (e qual seria o nome melhor?), eram conhecidos como repórteres mateiros pela simples e boa razão de que trabalhavam preferencialmente no mato, no fim do mundo, no Brasil desconhecido. Eram eles que davam conta do mundo inimaginável para os leitores do Brasil e, pela reprodução de suas matérias, também aos leitores do mundo.
SERVIÇO
“Andanças”, 320 páginas (Primavera Editorial)
Exemplar: R$ 42,40
Lançamento: hoje, 20 de abril, às 19 horas, na Casa das Rosas (Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, na Avenida Paulista, 37, em São Paulo). O autor participa do projeto “Com todas as letras”: a série de encontros da Primavera Editorial que visa aproximar leitores, formadores de opinião e autores em torno de bate-papos descontraídos.