Atividade tão rejeitada durante a “invasão dos paulistas” nos anos 1970 incorporou-se ao modo de vida dos assentados. Mas eles estão impedidos de vender o gado
MONTEZUMA CRUZ
Agência Amazônia
RESEX ALTO RIO JURUÁ, AC – Eles não podem derrubar uma só árvore para construir uma casa. Fogo, nem pensar. Cada família pode criar 30 cabeças de bois. Esta é a lei das reservas extrativistas que poderá sofrer alterações no acalorado debate do novo Código Florestal Brasileiro. O gado solto nos currais e nas pastagens naturais das Resex do Acre forma atualmente pequenos plantéis, totalizando pelo menos 15 mil cabeças. Ou seja, aquela atividade tão rejeitada durante a “invasão dos paulistas” nos anos 1970, está praticamente incorporada ao modo de vida dos assentados.
Parece irracional criar boi em Resex, mas é uma necessidade, raciocina o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e professor da Universidade Federal do Estado do Acre, Evandro Ferreira. Em janeiro de 2010 a criação das Resex completará 20 anos.
– Obviamente, ninguém por lá vai ter a chance de virar fazendeiro – ele comenta.
Ferreira conhece a realidade regional. Já participou de diversas reuniões com representantes do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Na concepção dos técnicos desses institutos, as reservas foram criadas por decreto presidencial para abrigar extrativistas.
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Famílias de assentados na não têm renda para pagar tratamento médico e estudo dos filhos na cidade. Venda do gado seria alternativa econômica, mas contraria princípios da Resex /ÁLBUM ANTÔNIA AMARAL
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– Quem discordar, é convidado a sair, caso insista em virar fazendeiro – disse um técnico em alto e bom som para Ferreira e outros pesquisadores ouvirem.
“Hipocrisia”
Para a deputada Antonia Sales (PMDB), nascida em Ucayali, território peruano e com uma vida inteira dedicada ao povo do Vale do Juruá, a sobrevivência econômica dos moradores das Resex merece reparos: “Temos que acabar com essa hipocrisia propagandeada pelo Governo do PT. Os povos que eles sempre defenderam quando faziam oposição estão hoje morrendo à míngua por falta de assistência médica”.
Na semana passada, a Agência Amazônia percebeu a inquietação entre pequenos agricultores na Resex do Alto Rio Juruá. Lá, contam-se nos dedos os extrativistas. Eles vivem a encruzilhada entre os princípios que nortearam a reserva e a possibilidade de venderem gado, aproveitando a próxima abertura da Rodovia Transoceânica, que ligará o Acre aos portos do Oceano Pacífico, no Peru. Aquele país pretende comprar muita carne no Acre.
Que será um dilema, o governo já sabe. Novamente, o professor Ferreira observa:
– Não muito distante das reservas existem assentamentos do Incra e nos projetos de assentamento agrícola pequenos agricultores podem abrir áreas para criar gado, sem a pressão que os extrativistas sofrem dentro da Resex. Torço para que os extrativistas não desistam de ser extrativistas e se mudem para o projeto do Incra.
Enquanto o destino dessas famílias amazônicas é discutido nos escalões ministeriais em Brasília, o boi continua freqüentando as praias de água doce que margeiam os rios da região.
Criar ou não criar, eis a questão
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A floresta esta em pé o boi acreano não representa ameaça ao aumento de gás na atmosfera, dizem especialistas /MONTEZUMA CRUZ
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LAGO CEARÁ – O gado da Resex do Alto Rio Juruá alimenta-se da boa vegetação rasteira nativa e não depende de pastos exóticos. “Aqui a gente não derruba para fazer pasto, porque tem pasto de sobra”, aponta Antonio Guimarães, um dos antigos moradores da região. Ele nunca adquiriu ração para seu rebanho, constituído por gado misto. As distâncias também impediriam o abastecimento regular
Mas os pequenos produtores de fumo e feijão do Lago Ceará estão apreensivos, porque o pequeno plantel de alguns ultrapassa o permitido. Criar ou não criar, eis o dilema. Quando o assunto é o boi, a própria Secretaria Estadual de Meio Ambiente não entra em choque com a Secretaria Estadual de Produção e Florestas.
Dados do governo revelam que, em 2001, a pecuária ocupava 80% das áreas desmatadas. Embora as atividades extrativistas da castanha e da borracha sejam prioritárias, a pequena pecuária de subsistência familiar aumentou dentro das reservas. O Ibama teme “a perda da integridade das reservas”.
Renda e sustentabilidade
O Acre possui 1,3 milhão de hectares de pastagens, com taxa de lotação média de 1,38 cabeça/ha. A Unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) demonstra que novas tecnologias possibilitaram aos pequenos, médios e grandes produtores adotarem sistemas intensivos com maior renda e sustentabilidade.
Atualmente, o estado mantém 88% de cobertura floresta. Com menos desmatamento e o uso indiscriminado do fogo na produção de grãos e na criação de gado, certamente haverá uma redução na emissão de gás carbônico (CO²).
A situação da Resex do Alto Rio Juruá é semelhante à da Resex Cazumbá-Iracema: a floresta continua em pé, o gado pasta, mas ninguém pode vender o gado ao frigorífico mais próximo. Em resumo: dinheiro desse negócio não entra no bolso do assentado. (M.C.)
Universidades estudam até borboletas. E daí?
RIO BRANCO – O projeto "Pesquisa e Monitoramento Participativos em Áreas de Conservação Gerenciadas por Populações Tradicionais", no âmbito do Programa Piloto para a Conservação das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7) levou professores e alunos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade de Brasília (UnB) a uma sólida parceria com a Universidade Federal do Acre (Ufac) e Universidade Federal de Viçosa (UFV) para pesquisas e aplicação de métodos os qualidade de vida.
Resumo desses trabalhos consta na Enciclopédia da Floresta, editada pela Companhia das Letras, no Manual de Monitoramento Ambiental Usando Borboletas e Libélulas, todas elas, acessíveis a seringueiros e ribeirinhos. A criação de gado bovino na Amazônia, atividade acusada de aumentar a produção de gás metano, ficou fora.
Um dos projetos de êxito foi o Atlas Histórico do Rio Bagé, fruto de pesquisa cooperativa com as populações locais. A obra foi financiada pelo Instituto Internacional de História Social. No entanto, os pesquisadores da floresta foram embora, o gado criado no pasto natural aumentou e a discussão tomou outro rumo.
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Urubus também fazem parte da paisagem da praia /MONTEZUMA CRUZ
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Ibama x trabalhadores
Em 2008, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri rebelou-se contra o Ibama por causa do prazo dado pelo instituto para que os assentados retirassem da Resex Chico Mendes o gado em excesso. A entidade defendeu a criação de bois “como forma de complementar a renda dos seringueiros”. O Ibama contrapôs, alegando que “para abrigar tantos bois”, o desmatamento dentro da área protegida já atingia 450 quilômetros quadrados – cerca de um terço do município de São Paulo”.
Segundo disseram à Agência Amazônia os assentados do Alto Rio Juruá, o gado representa hoje alguma possibilidade econômica. Para os moradores da isolada Resex do Alto Rio Juruá, onde só se chega pelo rio, criar bois é tal qual cultivar fumo, algo que eles fazem há anos, silenciosamente. Trata-se de uma mercadoria de fácil conversão, em caso de qualquer emergência, de necessidade de tratamento medico ou para custear o estudo dos filhos na cidade. Mas o risco de expulsão da reserva, em conseqüência do descumprimento da lei virou um tormento. (M.C.)
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Moradores do Alto Rio Juruá usam a canoa diariamente para se deslocar até o regatão, onde compram gêneros; à escola, para levar o filho; ou a Marechal Thaumaturgo, para a busca de socorro médico /MONTEZUMA CRUZ
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O repórter visitou comunidades do Alto Rio Juruá, na fronteira brasileira com o Peru. Siga o repórter: www.twitter.com/MontezumaCruz
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Fonte: Montezuma Cruz - A Agência Amazônia é parceira do Gentedeopinião