Quinta-feira, 26 de janeiro de 2023 - 17h51
No dia 1º de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão cobrando uma resposta do Brasil para “proteger a vida, a integridade pessoal e a saúde dos membros dos povos indígenas yanomami, ye’kwana e munduruku”. A comissão que avaliou o caso disse que a situação dos indivíduos dessas três populações era de “extrema gravidade e urgência”.
Entre as medidas que o país precisaria tomar, a corte apontou a necessidade de “proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e água potável” desses povos.
Além disso, a corte pedia ao Estado brasileiro um relatório com um resumo das ações que foram tomadas para reverter a situação até o dia 20 de setembro de 2022. Depois disso, pedia novas atualizações sobre o caso a cada três meses.
A BBC News Brasil entrou em contato com a Corte Interamericana de Direitos Humanos para saber se o país estava cumprindo as medidas.
Por meio da assessoria de comunicação, o órgão afirmou que, “até o dia de hoje, a corte está esperando uma resposta por parte do Estado brasileiro”.
Como o caso começou
Em 17 de maio de 2022, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que é responsável por encaminhar pedidos à corte, fez uma solicitação de medidas provisórias a respeito dos povos yanomami, ye’kwana e munduruku.
Nesse contexto, medidas provisórias são decisões que a corte toma para “casos de extrema gravidade e urgência, quando é necessário evitar danos irreparáveis às pessoas”.
“Em muitas ocasiões, essas medidas provisórias podem salvar a vida de uma pessoa ou um grupo contra o qual a garantia dos direitos humanos está sendo ameaçada”, explica a própria corte no site oficial.
Como justificativa para o pedido, a comissão apontou que esses três povos estão “numa situação de violência” por causa dos “conflitos entre os indígenas e pessoas não autorizadas que estão explorando ilegalmente minérios” — os garimpeiros.
Como evidências desses conflitos, os responsáveis pela denúncia citam as ameaças à vida e a perseguição de líderes indígenas que denunciaram o garimpo, os ataques com armas de fogo, as ameaças em grupos de WhatsApp, o deslocamento forçado de populações, a violência sexual contra meninas e mulheres e a exploração infantil.
A comissão ainda informou que houve “um avanço na atividade de garimpo na terra indígena yanomami em 2022”. Segundo eles, a exploração de minérios veio acompanhada do tráfico de drogas e armas.
Especificamente sobre os efeitos desse cenário na saúde, o documento afirma que houve “um aumento nas enfermidades relacionadas à contaminação da água pelo mercúrio”, a “propagação de doenças infecciosas”, como a covid-19 e a malária, a “falta de medicamentos básicos” e o “agravamento da desnutrição infantil”.
A resposta do Brasil
Após esse primeiro relatório de maio de 2022, o Estado brasileiro enviou uma resposta em que alega “improcedência, devido a falta de caracterização de uma situação de extrema gravidade e urgência”.
Os representantes do país também argumentaram que “a maioria dos fatos listados pela comissão já foram considerados” e que não havia “uma ação deliberada do Estado” nesta crise.
Por fim, o documento ainda informa que todas as ações requeridas pela comissão já haviam sido colocadas em prática — como, por exemplo, o início de investigações da Polícia Federal sobre os casos de violência e homicídio, a criação de barreiras sanitárias para impedir a transmissão de doenças e o reforço nos programas de atenção básica de saúde entre os indígenas.
O Brasil, então, solicitou que o pedido de medidas provisórias fosse rechaçado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O veredito
Mesmo diante dos argumentos apresentados pelo Brasil, os membros da corte manifestaram “grande preocupação” com o que acontece com os três povos indígenas.
Na decisão, divulgada em julho de 2022, os autores reforçam e deixam claro que se trata de uma situação de extrema gravidade e urgência.
Eles também apontam que “as violações seguem ocorrendo”.
A partir dessa análise, a corte determinou por unanimidade a adoção de oitos medidas provisórias pelo Estado brasileiro:
Proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e água potável dos membros dos povos indígenas yanomami, ye’kwana e munduruku, a partir de uma perspectiva culturalmente adequada, com um enfoque em gênero e idade;
Prevenir a exploração e a violência sexual contra as mulheres e as meninas dos povos indígenas;
Prevenir a propagação e mitigar o contágio por enfermidades, especialmente a covid-19, prestando aos indígenas uma atenção médica adequada, de acordo com as normas internacionais aplicáveis;
Proteger a vida e a integridade pessoal das lideranças indígenas que se encontram ameaçadas;
Coordenar de forma imediata esse plano de ações e informar os líderes indígenas sobre o avanço das medidas;
Apresentar um relatório atualizado sobre as medidas tomadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos até 20 de setembro de 2022;
Pedir que os representantes dos povos indígenas façam observações sobre o relatório apresentado em setembro, para que as ideias sejam discutidas e aprimoradas;
Apresentar novos relatórios sobre a situação a cada três meses.
O Brasil faz parte da Convenção Americana de Direitos Humanos desde 25 de setembro de 1992. O país também reconhece a autoridade desta corte internacional desde 10 de dezembro de 1998.
Na prática, isso significa que as sentenças e as medidas provisórias emitidas pelo órgão são de cumprimento obrigatório por todos os Estados-membros (como é o caso do Brasil).
Na prática, porém, as medidas foram ignoradas. Como citado no início da reportagem, a assessoria de comunicação da corte informou à BBC News Brasil que “aguarda uma resposta do Estado brasileiro” e não foram enviados os relatórios nos prazos indicados — o primeiro deles em setembro de 2022 e, a partir de então, a cada três meses.
A maior reserva indígena do Brasil
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), a terra indígena yanomami é habitada por oito povos, possui cerca de 26,7 mil habitantes e compreende uma área de 9,6 milhões de hectares.
Ela foi homologada e reconhecida pelo governo brasileiro em 1992, por meio de um decreto assinado pelo então presidente Fernando Collor (PTB).
O território está localizado entre os Estados do Amazonas e de Roraima, ao norte, na divisa de Brasil e Venezuela.
Entre os povos que habitam o local, estão os yanomami, os ye’kwana (ambos citados na decisão da Corte Interamericana), os isolados da Serra da Estrutura, os isolados do Amajari, os isolados do Auaris/Fronteira, os isolados do Baixo Rio Cauaburis, os isolados Parawa u e os isolados Surucucu/Kataroa.
Já os munduruku habitam regiões e territórios de floresta e rios navegáveis no Pará, no Amazonas e no Mato Grosso. O principal território indígena dessa população fica próximo do rio Cururu, um afluente do Tapajós.
O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana, com assessoria técnica do ISA, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios nessa região.
“Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%”, aponta o texto.
O levantamento das associações mostra que, em outubro de 2018, a área total destruída pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares.
“Desde então, a área impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2021 o total de 3.272 hectares”, continua a publicação.
O relatório informa que o avanço do garimpo sobre as terras indígenas está atrelado a “perdas consideráveis” na qualidade de vida dos moradores da região, com pioras nos indicadores de violência, saúde e suporte social.
O garimpo ilegal também é a principal fonte de problemas entre os munduruku.
Segundo o ISA, esta terra indígena “está entre as mais pressionadas e ameaçadas pelo garimpo ilegal na Amazônia”.
“O monitoramento Sirad-I identificou 440 hectares de floresta desmatada no interior do território desde o início do ano – 136 hectares só no mês de outubro. Desde 2020, quando a TI começou a ser monitorada, 1,5 milhão de árvores foram derrubadas”, informa o órgão.
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