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Montezuma Cruz

Dió, um acreano em defesa dos oprimidos em Rondônia


Dió, um acreano em defesa dos oprimidos em Rondônia - Gente de Opinião

Dionísio Xavier é uma legenda no jornalismo rondoniense: pela ousadia e pelo que sofreu ao perseverar na profissão com altivez e dignidade /ÁLBUM DE FAMÍLIA
 

 

MONTEZUMA CRUZ
Editor de Amazônias

Perseguido, espancado e ameaçado de morte, o saudoso comunista acreano Dionísio Xavier Silveira, o Dió, nascido em sete de outubro de 1925, não abriu mão dos seus princípios durante o tempo em que escreveu e imprimiu artesanalmente A Palavra, na velha tipografia instalada numa casa de madeira do Bairro Casa Preta em Vila Rondônia (antigo nome de Ji-Paraná), a 370 quilômetros de Porto Velho.

Franzino, impressionava também pela calma e pela simplicidade. Tornou-se jornalista pelo conteúdo ideológico e de ser humano, penetrando nas entranhas do extinto Território Federal de Rondônia para oferecer à sua gente um jornal que traduzisse o momento conturbado vivido sob o tacão do regime militar. Nos anos de 1970, sempre comandado por coronéis do Exército, Rondônia começava a receber migrantes procedentes de diversas regiões brasileiras, especialmente do Paraná.

Tão logo deixou a terra natal, Rio Branco (AC), em 1947, Dió ficou sabendo pelos companheiros que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) seria posto na ilegalidade naquele ano. Rondônia recebia, então, um presente para a sua ribalta político-partidária. Coube-lhe contatar o então governador de São Paulo, Adhemar Pereira de Barros, para conseguir a legenda do Partido Social Progressista (PSP) para abrigar a Frente Popular da época e enfrentar a oligarquia comandada pelo coronel Aluízio Ferreira, que foi presidente da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e governador territorial.

Floresta era o cemitério

Dió era destemido. Conquistou o mandato de vereador na Câmara Municipal de Porto Velho, da qual foi secretário. Em Vila Rondônia ele travava uma luta solitária em defesa dos camponeses, especialmente aqueles migrantes pobres sem contas bancárias e sem títulos de terras, esperançosos por encontrar novos horizontes. Alguns conseguiam, mas uma grande parte não sobrevivia à malária e seus corpos eram ali mesmo sepultados.

Dió, um acreano em defesa dos oprimidos em Rondônia - Gente de Opinião

Na esquina da Rua José de Alencar com Avenida Sete de Setembro, num dia qualquer dos anos 1980: contemplando a capital /ÁLBUM DE FAMÍLIA
 

A experiência de farmacêutico aproximou-o da população de Porto Velho e dos poucos militantes do PCB. Graças a eles chegou a circular em alguns lugares da Amazônia Ocidental o jornal Voz Operária. "Uma figura humana extraordinária, sem dúvida!", comenta a jornalista Mara Paraguassu, que com ele trabalhou na Secretaria de Administração: "Conheci-o na Sedam. Trabalhou comigo na biblioteca do órgão. Adorava os livros e lamentava-se da perda da visão, a cada dia acentuada, o que impedia a leitura por tempo mais prolongado."

Vivência amazônica

O semanário A Palavra criticava a invasão da terra indígena e os sucessivos erros na colonização rural e na vida urbana de Vila Rondônia. As famílias não tinham assistência técnica, condições de trabalho, muito menos de saúde. Jogadas em projetos do Incra no meio da floresta corriam o risco de multiplicar as doenças — hepatite, leishmaniose, por exemplo — sem ter chance de chegar pelo menos ao corredor do hospital mais próximo. E não havia hospitais públicos no interior rondoniense.

Diórelatava essas dificuldades com o sentimento de amazônida. Conheceu "inimigos", aqueles que rejeitavam seus escritos por serem grileiros de terras públicas ou pelo simples fato de se aliarem aos poderosos de plantão no governo e no policialesco Incra.

Dentes quebrados

Antes de qualquer repórter de Brasília, São Paulo ou do Rio de Janeiro "descobrir" a pólvora nas matas rondonienses, o sábioDió acumulara a experiência inesquecível de presenciar não apenas a chegada das empresas de colonização – especialmente a Calama, em Vila Rondônia. Vira tombar nas ruas poeirentas, corpos perfurados de bala, ou então jogados nas águas turvas do Rio Machado.

Entre outras ameaças sofridas no exercício de jornalista editor do único porta-voz dos oprimidos, foi agredido pelo então administrador de Vila Rondônia, Roberto Geraldo, o Jotão, que também era proprietário de postos de gasolina. Os socos de Jotão quebraram-lhe os dentes. O filho Zola Silveira recorda:

– Gravei de maneira emblemática na memória dois episódios da vida de meu pai em Vila Rondônia: seu rosto levou até a morte a marca de um deles, quando o tal Jotão o agrediu numa discussão sobre grilagem de terras. Soube depois que o agressor era um dos principais grileiros naquela época.

A quem apelaria o saudoso Dió, se a polícia naquele período atendia a quase tudo o que os governos e os administradores lhe pediam para fazer? Encontrou solidariedade apenas na Câmara Municipal de Porto Velho, onde alguns vereadores denunciaram a agressão.

O então deputado federal Jerônimo Garcia de Santana (MDB-RO), os vereadores Abelardo Townes de Castro Filho, Itamar Dantas, Paulo Struthos Filho e o saudoso Cloter Saldanha Mota repercutiam as denúncias de Dió. Santana, na tribuna da Câmara dos Deputados em Brasília; os demais, no Salão Bohemundo Álvares Afonso, da Câmara Municipal de Porto Velho.

Um correspondente francês

Há 36 anos a ex-Vila Rondônia concentrava os grandes interesses de empresários vindos das regiões sul e sudeste. Dió tinha uma visão discordante daquela ocupação induzida pelo regime militar. O jornal foi peça de resistência contra a grilagem de terras, quase sempre causadora da violência contra posseiros e indígenas.

Eu o conheci em 1976 e sempre estive diante de um paizão e companheiro que me entronizava nos hábitos, nas tradições amazônicas e nos perigos naturalmente provocados pelo enfrentamento dos poderosos. Fui revendo-o a cada viagem à BR-364. Cheguei atrasado a Porto Velho e não assisti ao melancólico final da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. No entanto, posso imaginá-lo em atividade no Plenário Bohemundo Álvares Afonso da Câmara Municipal, no período em que vereadores eram iguais aos antigos jogadores de futebol: trabalhavam por amor à camisa, ao paletó, e faziam jus à ideologia, qual fosse.

Zola Silveira, que se mudou para o Rio de Janeiro em 1972 e há vários anos mora em Maricá (RJ), lembra-se que o jovem francês Hervé Thery, pesquisador da Universidade Sorbonne, visitou a sede de A Palavra em Vila Rondônia, onde quis saber por que Dió dera esse nome ao jornal. Quando informado de que fora uma homenagem ao escritor Émile Zola, tornou-se amigo dele. Após concluir sua pesquisa, Hervé regressou a Paris, passando a enviar seus artigos para A Palavra. Assim, esse esquecido jornal rondoniense foi o único periódico amazônico a ter um correspondente na Europa, costumava brincar o velho jornalista.

Um dos textos de Hervé mostrava que "os verdadeiros donos da terra de Rondônia seriam os grandes empresários rurais, que depois do serviço de arrumação do solo tomavam conta de tudo, usando para isso as maneiras legais ou não". "Apesar de cercado por pistoleiros numa guerra desigual, meu pai viveu com alegria e ternura por toda aquela gente que sabia dos seus ideais", recorda Zola Silveira. 

 

Mais Sorbonne, menos Oxford

Vestido com calça de brim e camisa de algodão em cores claras, Dionísio Xavier encarnava o uso de critérios de política agrícola rondoniense, concebidos com dólares do Banco Mundial com os quais funcionava a Companhia de Desenvolvimento Agrícola de Rondônia (Codaron). Era 1981. A conhecida Codaron moldava-se por conceitos adotados pelo milionário Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil (Polonoroeste), levado de Washington e Brasília para o colo do governador coronel Jorge Teixeira de Oliveira, o Teixeirão.

 

Diósabia distinguir quem era quem no jogo. Para ele, a Universidade inglesa Oxford era mesmo a marca maior do capital, com suas 39 faculdades (colleges) atreladas ao Grupo Russel, uma associação das 19 maiores universidades do Reino Unido.

– Meu filho, ali está cheio de discípulos de Oxford, quando precisamos aplicar os princípios de Sorbonne (antiga Universidade de Paris) – dizia Dió,  quando visitava regularmente a sucursal do Diário de Rondônia, jornal de Claudionor Roriz. A representação ficava  no alto do Edifício Rio Madeira, onde eu trabalhava com o jornalista Paulo Queiroz. O também saudoso PQ cobria política e o editor, em Ji-Paraná, era o jornalista Jorcêne Martínez.

Com déficit de US$ 32 milhões, a Codaron faliu e fechou as portas. Secretaria da Agricultura e Emater permaneceram na formulação da política agrícola estadual rondoniense. O Incra continuou do mesmo jeito e até hoje abriga na missão da reforma agrária uma série de desmandos praticados por alguns de seus próprios funcionários e ex-funcionários, todos denunciados à Justiça.

Carências de crédito agrícola, de assistência técnica, de sementes e de condições para a comercialização da safra não era mais novidade nos anos 1980. Tanto que Rondônia importava arroz da... Bolívia! Enquanto colonos atacados pela malária morriam abandonados e as famílias carregavam os corpos em redes até a cova cavada na imensidão da floresta rondoniense.

A questão agrária em Rondônia se agravou. Meio século antes já era conhecida a "limpeza de terras" em antigos seringais, onde jagunços  matavam posseiros e indígenas. (M.C.)

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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