Sexta-feira, 17 de setembro de 2010 - 19h53
RONDÔNIA DE ONTEM
MONTEZUMA CRUZ
Editor de Amazônias
As chacinas cometidas sem dó nem piedade pelos homens de Manoel Lucindo ocorreram durante o período em que “soldados da borracha” cearenses e outros nordestinos de fibra, seduzidos por falsas promessas, trocaram o teatro da 2ª Guerra Mundial pela rudeza da selva amazônica, onde muitos morreram vítimas do beribéri, do impaludismo, do abandono e da solidão.
Nas florestas do Acre e de Rondônia alguns deles foram incitados a perseguir indígenas nas conhecidas “correrias” e sofreram as conseqüências disso.
Só em 1991 a Funai conseguiu retirar Lucindo das áreas que ocupava dentro da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau. Os índios Oro Win retornaram às origens só depois da criação do Posto Indígena São Luiz, numa área de sacrifício e de mortes.
Indígenas que conseguiam escapar sofriam perseguições a tiros de rifles e carabinas. Mulheres e crianças sobreviventes ao ataque eram capturadas e levadas para viver com seus algozes /CADERNOS DA DIOCESE |
Surgiram nos seringais amazônicos as “correrias”. Patrões seringalistas queriam que “as feras selvagens” abandonassem suas terras, para que pudessem expandir os seringais e abarrotar as balsas com borracha. Índio, então, era obstáculo, tanto na Amazônia Brasileira quanto na Amazônia Boliviana ou na Peruana.
A exemplo de outros seringalistas, no seringal de sua propriedade, Lucindo montou a sua expedição armada para cercar malocas e matar famílias indígenas. Aqueles que conseguiram escapar sofriam perseguições e eram baleados com tiros de rifle e carabina. Mulheres e crianças sobreviventes ao ataque eram capturadas e levadas para viver com seus algozes.
No início dos anos 2000 não restavam mais que 80 indivíduos Oro Win, a maioria descendente de duas famílias. Segundo registra o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), do massacre contra o clã Oro Iaprajé, no Igarapé Água Branca, apenas um índio sobreviveu. Mas ocorreu um fato positivo nesta década: na aldeia São Luiz, alguns Oro Win se casaram com Oro Wari’ e Oro Nao (Pacaás-nova).
Em meados de 1981 um edital do processo-crime nº 6.362 denunciou na Comarca de Guajará-Mirim a expedição organizada por Lucindo, “a fim de prender e matar indígenas que vivem nas margens do rio Oro-Win (mesmo nome da tribo)”. O mesmo processo foi retomado pela Justiça, 12 anos depois.
Naquela época, conforme lembrou o bispo da Diocese de Guajará-Mirim, dom Geraldo Verdier, dizia-se: “Índio bom é índio morto”.
Denunciado em novembro de 1963, Lucindo passou 30 anos impune. O Tribunal do Júri só foi julgá-lo em 11 de maio de 1994, condenando-o por unanimidade. Sua sentença foi 15 anos de prisão, com base no artigo 1º, letra A da Lei 2.889, de 1º de outubro de 1956: genocídio. “Atirou contra membros de uma etnia com intuito de dizimá-los”. Por ser idoso, cumpriu prisão domiciliar.
“Amnésia geral”: dom Geraldo lembra que as tribos do Guaporé quase foram aniquiladas /M.CRUZ |
Anteriormente a dom Geraldo, o bispo pioneiro dom Francisco Xavier Rey lembrava em 1950 a existência de cerca de 30 mil índios habitando os vales do Guaporé e Mamoré. Meio século depois, eles não passam de três mil. Morreram baleados, esfaqueados e de doenças contagiosas.
Em 1976, quando cheguei a Rondônia, ouvia histórias de crimes atribuídos a seringalistas dessas regiões. Algumas pessoas diziam que os índios “atacavam” brancos nos seringais. Circulavam fotos de seringueiros flechados e uma delas surpreendia, por mostrar um jovem com braços e pernas cortadas. Para o índio, esse gesto não significava profanação de corpos, mas um costume ancestral de apropriação das virtudes do inimigo ou do parente falecido.
Indígenas de Rondônia sempre se defenderam daqueles que lhes tomaram as terras. A memória histórica mutilada ainda esconde o trágico destino dos Oro Win, Oro-Wari, Pacáas-nova, Nambikwara (mais próximos a Vilhena, Cerejeiras, Colorado do Oeste) e outros que viviam em paz na floresta até que tiveram seu território devastado pela corrida ao ouro, aos minérios, às terras.
Massacravam tribos inteiras. Além dos golpes de facão em mulheres e crianças, dos tiros de rifles e de espingardas, “peões” envenenavam roupas e as jogavam sobre as aldeias. O contato era fatal.
Apesar de todas as maldades praticadas contra os povos indígenas e da reação deles à aproximação forçada, a Igreja Católica semeou a paz no Vale do Guaporé. Um texto de dom Geraldo Verdier, divulgado em 1993, exatamente três décadas após os massacres, diz: “Se existem em Guajará-Mirim algumas famílias que foram vítimas dos índios, o que lamentamos profundamente, podemos garantir que não existe nenhum índio de seus 30 e 40 anos que não tenha avós, pais ou irmãos chacinados pelos brancos. É preciso escutar o lamento deles, quando recordam essas violências”.
Dom Geraldo percebeu que grande parte da população rondoniense e de toda Amazônia não sabia desses fatos, ou não queria mais saber. Quase aniquiladas, as tribos foram vítimas daquilo que prelado classificou de “amnésia geral”.
Assim, referindo-se ao processo-crime contra Lucindo, o bispo diz não esperar vingança. O seringalista já era uma pessoa idosa em 1990. “Ele pagou o seu quinhão de esforços e sofrimentos nesta terra. E os índios nada nutrem de sentimentos de vingança para com ninguém”, escreveu o bispo naquele documento.
Os massacres ficaram na história do passado dos Oro Win. Quarenta anos depois, as precárias condições de saúde nas aldeias são tão fulminantes quanto aqueles ataques.
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