Segunda-feira, 7 de novembro de 2022 - 12h51
Ignorados em planos de saúde e assistência técnica por administradores regionais e do próprio governo federal, alguns se entregaram de corpo e alma a alguns comerciantes de grãos, criadores de gado bovino e a políticos que lhes mentem 24 horas.
Há exceções, mas são mínimas entre os ensandecidos. Outros mandaram a História às favas para, em troca, viver sob influência e favores de brancos gananciosos.
Ainda nos ano 1970, o Povo Nambiquara nas “terras da Zilo Agropecuária” eram envenenados por arsênico embutido em roupas jogadas de avião sobre as aldeias. Desse horror nada se fala em Vilhena, tampouco os índios se lembram. O apagão memorial vem acontecendo há mais de duas décadas com a morte de seus mais antigos líderes.
Talvez, em meio às fakes que esses indígenas recebem diariamente, tenha chegado a informação verdadeira no final do ano passado, quando o presidente da República freou processos de demarcação de TIs, causando uma avalanche de ações no Ministério Público Federal e na Justiça. “Nenhum palmo de terra para índios”, vociferava Bolsonaro em campanha.
Os contatos e as relações entre o Nambiquara e não-indígenas ocorreram ao longo dos séculos de forma processual. As etnias da Serra do Norte e Chapada dos Parecis foram vistas pela Comissão Rondon, antropólogos, e o antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) desde o início do século XX.
Até a década de 1970 os grupos do Vale do Guaporé eram considerados “índios isolados”, ou “arredios” pela Funai, embora fossem assistidos pela South America Indian Mission com a anuência do próprio órgão.
Em 1980, quando apresentou o documentário “Mão Branca contra o povo cinza” ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI), escrito e fotografado por Vincent Carelli e Milton Severiano, o falecido bispo de Goiás, dom Tomás Balduíno alertava: “O que é grave aí é que esta história é apenas uma pequena parcela da nossa História do Brasil. E são também brasileiros os envolvidos como autores do extermínio. Os fatos não são de séculos remotos. São fatos de agora. E não se trata de um caso isolado de índios Nambiquaras do Vale do Guaporé. Na realidade não há grupo indígena no País que não esteja sofrendo algum conflito grave por causa de suas terras.”
Severiano escrevia: “O grande azar do povo cinza [como ficaram conhecidos os Nambiquaras] foi a BR-364, rodovia Cuiabá-Porto Velho, rasgada a partir de 1960 e transitável em 63. Ela escancarou o noroeste do Mato Grosso à ocupação branca, voraz: antes que o primeiro caminhão trouxesse a primeira máquina, no papel o Vale do Guaporé já tinha vários “donos” – menos, é claro, os que ali viviam há milênios.”
Estradas, campos de aviação, derrubadas, capim, vaca, arame. Ao fim de um ano dá-se o primeiro contato com um grupo Nambiquara do Vale. Ao fim de sete anos, 8 grupos em contato - principalmente com missionários americanos: Mamaindê, Negarotê, Alantesu, Hahaintesu, Wasusu, Alakatesu, Waiksu e os índios do Sararé.
Os contatos foram chamados de “pacíficos”, mas...
Alguns bisnetos de alguns desses grupos se fizeram presentes no inferno da interdição deste mês de novembro de 2022, participando de bate-bocas com a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Ministério Público Federal. Destes, contam-se também nos dedos quem estudou a História Brasileira para saber do envenenamento e da invasão do território Nambiquara nos anos 1960.
Lamentava o jornalista Severiano em 1980 que poucas informações circulavam a respeito dos primeiros contatos entre Nambiquaras e empresas agropecuárias. Basta dizer que o órgão oficial de proteção aos índios não estava presente na região. Dentre os poucos episódios conhecidos, o tratamento dado a alguns que recusaram o contato “pacífico”. Aconteceu em fins de 1967. Seis índios, homens e mulheres, foram trucidados por indivíduos armados, que invadiram uma aldeia do Sararé ainda arredia, perto de Vila Bella da Santíssima Trindade. Tem-se notícia de que, em janeiro de 1968, um tenente-coronel comandante da 9ª Região Militar [em Campo Grande, ainda Mato Grosso] apurava o crime.
“Índio não é gado, e por isso não pode ser trocado de invernada ao sabor da vontade dos poderosos e oportunistas. Ser humano, ele tem direito às suas terras, a cultura e tradições”.
Quando chefe da Ajudância da Funai em Vilhena, o falecido sertanista gaúcho Aimoré Cunha da Silva advertia Brasília quanto ao remanejamento de famílias inteiras de Nambikwara e denunciava ao mesmo tempo a situação dos Paiter-Suruí, cujas terras haviam sido invadidas alguns anos depois de serem “palestinos”, migrando do noroeste mato-grossense para Cacoal, onde estão até hoje.
Aimoré era descendente de indígenas Guarani da região de Torres, no Rio Grande do Sul.
Voltando ao relato de Severiano: “Por interesses nacionais”, conforme o documentário assinado pelo jornalista, passou a ser legal transferir o índio mesmo que morra. Em 1980, um Wasusu então com 40 anos e se lembra de tudo, pois quando “civilizado” chegou era um moço de 24 anos.
“Os Nambiquaras foram dos que mais sofreram nas mãos do novo órgão protetor dos índios. Primeiro a Funai criou a Reserva Nambiquara. Quanta generosidade! Nada menos que 1 milhão de hectares, ou 10 mil quilômetros quadrados. Do tamanho de alguns países do mundo, como Chipre ou Líbano ou Jamaica. Generoso e cruel: a reserva decretada em outubro de 1968 não ficava no Vale do Guaporé, mas sim na Chapada dos Parecis, lugar habitado por apenas 1 em cada 10 Nambiquaras – pudera, em lugar 70% coberto de terras áridas, cerrado e areia.
“Boa pergunta seria: por que não ficaram os brancos com a Chapada? Nambiquara ali morreria à míngua, trazendo para sua nação, em 1970, um título: miserável entre os miseráveis.” Biafra Brasileira.
No Natal de 1971, equipes da FAB e da Funai tiveram de resgatar de helicóptero os índios dispersos pelo Vale. O que tinha escapado da fome, agora pegou a doença de branco para a qual não tem defesas: sarampo. Na epidemia, morreu toda a população Nambiquara menor de 15 anos.
Em setembro de 2021, a Câmara Temática Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, ligada à Procuradoria-Geral da Justiça revelou que houve aumento de 340% no número de ações civis públicas impetradas pelo país contra o governo federal ou a Funai, visando o início ou conclusão de procedimento de regularização fundiária.
É possível agora que o novo governo restabeleça tudo o que ficou para trás engavetado por obra de uma péssima visão humanitária e de reconhecimento ético. Esse risco tem que ser eliminado o mais breve possível.
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