Terça-feira, 9 de outubro de 2007 - 15h43
MONTEZUMA CRUZ — BRASÍLIA — Venham colonizar a região mais promissora de Mato Grosso —dizia um anúncio publicado na imprensa em Cuiabá. Atraídos , os peões protagonizaram a grande corrida rumo a uma frustrada conquista do emprego rural. Iam abraçar a escravidão e enfrentar cárceres privados. Jovens que abriam picadas e derrubavam árvores foram igualmente explorados em 1977.
No ano da CPI da Terra, esta foi uma das piores feridas sociais nos estados amazônicos. Prolongou-se até 1980, tempo em que surgiram novas cidades e o Território Federal de Rondônia se transformaria em Estado. De sul a norte, o Brasil tinha 4,5 milhões de crianças na agricultura.
Embora proibida por lei, a utilização de crianças em derrubadas promovidas por cooperativas fantasmas e colonizadoras sem registro no Incra era vista com naturalidade. As secretarias de promoção social identificavam jovens e adultos e lhes fornecia passagens de ônibus. Só a partir da década de 80 os grupos de fiscalização móvel das delegacias regionais do Ministério do Trabalho começaram a fazer as primeiras inspeções em fazendas e a combater ao trabalho escravo.
Muitos gatos foram responsáveis pela abertura de clareiras na floresta e pelas primeiras colheitas de café na Pré-Amazônia. Em algumas surgiram cidades. Jeito simples, franco na conversa, Odário Américo Garcia, 33 anos, um gato que trabalhou na região de Alta Floresta em 1977, manipulava altas somas em dinheiro. Por semana, movimentava de 80 mil a 100 mil cruzeiros para transportar peões geralmente recrutados nas estações rodoviárias de Campo Grande, Cuiabá, Cáceres, Jauru, Vilhena e Ji-Paraná.
Para desmatar com rapidez, Odário mandava buscar peões no Paraná. A maioria chegava de ônibus, com passagens pagas. Os contratados num raio de 200 quilômetros das derrubadas viajavam em cima de caminhões e caminhonetes. “Não tenho problema aqui, sempre tem gente querendo trabalhar”, dizia o gato.
Corpos enrolados na rede
O drama desse intermediário era encontrar a melhor mão-de-obra. Muitos Odários atuavam nos pontos estratégicos da colonização, em Mato Grosso e Rondônia. Adiantavam mil, dois mil cruzeiros aos peões e garantiam o embarque. As levas de trabalhadores partiam com algum dinheiro no bolso, mas, na maioria das vezes voltava de mãos abanando, cansada e doente.
As glebas do nortão mato-grossense absorviam empregados sem carteira profissional. Aqueles que se embrenhavam na selva, deixavam por longo tempo as famílias sem notícias. Foi assim com um grupo de dez jovens do Bairro Cruzinha, em Cuiabá, recrutados para trabalhar numa cooperativa fantasma da região do Roosevelt, entre Mato Grosso e Rondônia. Três morreram e um foi internado no Hospital Santa Mônica, em Ji-Paraná.
Trabalhavam doentes, passavam fome e não sabiam conversar com os índios Cintas-largas, cuja reserva ficava perto da frente de abertura de picadas. “Embrulharam três companheiros nossos em redes e jogaram eles num buraco perto do rio”, contava Mamedes Pereira Leite, 17 anos, um dos rapazes, conseguiu fugir. “Contaram pra nós que eles morreram afogados, mas eu duvido”, queixou-se.
A versão não colou. Em Cuiabá, as mães disseram que os filhos sabiam nadar, “e bem”. No depoimento prestado ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e na Delegacia de Polícia do Bairro do Porto, em Cuiabá, disse que foram contratados por Mozart Machado Fortuna e João Milena, de Cuiabá e Várzea Grande. Ambos não comprovaram à polícia a idoneidade da empresa.
Constatada a morte dos três jovens, sem explicações convincentes, o tenente reformado do Exército Lúcio Sigarini, pai de Avelino Epifânio Sigarini, 17 anos – atacado pela malária – liderou um movimento para cobrar a volta dos que ainda se encontravam no Roosevelt e no Aripuanã. Eles voltavam, combalidos. Além de espancados dia e noite, sofriam quando atacados pela malária.
Isolamento
O vendedor de lotes da Indeco em Cuiabá, Amaro Benetty, queixava-se de que “não havia gente cem por cento”. Classificava de lerdos os peões mato-grossenses, aos quais também defendia: “São honestos”. Eles vinham de Acorizal, Alto Paraguai e Poconé. E defendia medidas severas para evitar a fuga dos trabalhadores: “O jeito é levar essa gente para lugares onde não existe estrada; se o peão ruim achar um trilhozinho, abandona tudo e foge com o que tem no bolso”.
Gatos e patrões só tinham controle sobre os peões quando os mantinham distantes de tudo e completamente isolados. As histórias de Benetty povoavam o mundo rural e selvagem daquele período.
Nos botecos da velha e acanhada rodoviária de Cuiabá, na rua Miranda Reis, ouviam-se diariamente relatos sobre a fama de cada lugar. O palco do acerto de serviço e das contratações (verbais) eram pequenos hotéis e pensões nas adjacências, onde os peões se hospedavam.
De que maneira reconhecer um peão preguiçoso? Ele ria: “Quando algum ficava doente a gente sabe logo, mas alguns se dizem abatidos e a solução é fazer eles beberem um remédio (não disse a fórmula) que dá a maior dor de barriga; acaba a doença inventada, e ninguém mais fica doente”.
Benetty contou ao repórter que já fazia isso antes de chegar a Mato Grosso. “Funciona”, gabava-se.
Padre acha os culpados
No início de 1980, aos 75 anos, o padre salesiano Ângelo Spadari, de Vilhena, culpava os fazendeiros procedentes do sul do País. “Foram eles que começaram esse regime de escravidão”, dizia. O padre testemunhava a entrada de trabalhadores em fazendas e das quais nem todos retornavam. “Chegam uns 200 aí na rodoviária, andam pela cidade e vão para as derrubadas e formação de pastos; voltam só uns 40 ou 50”, dizia.
O posto da Secretaria de Promoção Social do Governo de Rondônia registrava situações angustiantes entre os que escapavam do cativeiro das derrubadas no Aripuanã e no Roosevelt: peões sem dinheiro corriam em busca da passagem de ônibus para Cuiabá. Antes, porém, trabalhavam para uma indústria madeireira de Vilhena.
Fonte: montezuma@agenciaamazonia.com.br - A Agenciaamazonia é parceira do Gentedeopinião
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