Quinta-feira, 16 de maio de 2024 - 12h05
O jornalista Messias
Mendes, 73 anos, sofreu um bocado dormindo em colchão de palha e cama de pau,
mas alimentou a memória de migrante baiano em andanças no trabalho rural escravagista
que antecedeu sua mudança para Maringá (PR) nos anos 1960. Domingos Gonçalves de Almeida e a esposa Bernadete
Mendes de Almeida deixaram Pintadas (BA) rumo ao Paraná. E lá se foi o filho
Messias incorporar-se ao contingente de baianos desembarcados da jardineira
(ônibus modelo antigo) que fazia o trajeto até Santa Cruz do Monte Castelo, em
cujo interior ficava a Fazenda Sessenta Alqueires.
Santa Cruz era parte da “nova fronteira agrícola” que
avançava em direção ao Rio Paraná, na divisa com Mato Grosso, hoje do Sul.
Facilmente identifico-me com Messias, a quem conheci em 1988, pela semelhança do nosso passado de trabalhadores da comunicação. A exemplo dele, nos anos 1960 também fui engraxate, jornaleiro e repórter de rádio, até entrar numa Redação de jornal e ali caminhar nesta empolgante profissão.
Em períodos diferentes trabalhamos na sucursal de Maringá da “Folha de Londrina”, jornal de maior circulação no estado. Por isso, li com muito gosto seu livro “Orelha de jegue”, lançado em 2023 com apoio do Sindicato dos Jornalistas do Norte do Paraná.
A narrativa de Messias é empolgante ao lembrar da estrada de chão batido, da chuva e da viagem “que parecia uma eternidade, sem atrativos e a poesia do trem (São Paulo-Ourinhos-Maringá), além daquele cheiro de óleo diesel que me dava engulho.”
“De Santa Cruz fomos de jipe até a fazenda. Pai estava na roça, não sabia que a mulher e os cinco barrigudinhos tinham chegado. A filharada correu para o abraço, os olhos de mãe brilhavam feito jabuticaba molhada (...)”
Ali Messias aprendeu o sentido do nome que deu ao livro: “Batiam à porta do escritório do seu Germano: solte aí uma orelha de jegue que preciso ir à cidade buscar di cumê” – diziam.
O fazendeiro rasgava o papel em formato de uma orelha de jegue e assinava em baixo “Tá aqui Dominguinho, compre o que quiser. Se você não tiver como trazer a mercadoria diga pro Juca da Casa Sertãozinho que eu pedi pra ele fazer este favor.”
“O jegue não merecia ser o símbolo de uma perversidade daquelas. Mas foi a forma que os colonos nordestinos encontraram para ironizar aquele pedaço de papel porcamente rasgado e assinado como vale para as compras no armazém de um parente ou agregado do fazendeiro” – lembra o autor.
Messias: “Normalmente os pais de família deixavam mulheres e filhos e seguiam em viagens longas e desconfortáveis, para ficar um ou mais anos trabalhando na colheita de café e mandando dinheiro para o sustento dos seus. Era raro, mas alguns sortudos conseguiam até fazer seu pezinho de meia.”
“Sortudos eram aqueles que tinham a felicidade de trabalhar para algum fazendeiro ou sitiante mais humano, que pagava corretamente pela mão de obra contratada. Esses, ao retornar, traziam na mala pouco mais do que saudade, traziam numerários suficientes para lhes permitir agregar ao modesto patrimônio algo de valor, como um animal de lida, geralmente burro ou jegue, e de quando em vez, algumas cabeças de gado, ovelha ou cabra...que garantiam o leite das crianças.”
Na Sessenta Alqueires Messias conheceu a situação que nos dias de hoje pode ser comparada àquela dos seringais amazônicos descritos no romance “Terra Caída”, de José Potyguara.
Cafezal e seringal tiveram a mesma escravidão, concluo após a leitura de “Orelha de jegue.”
Na Casa de Secos e Molhados Sertãozinho seu Domingos comprava de tudo um pouco: de farinha a jabá, lacto purga a panela de alumínio, alpargata roda a enxada, machado, foice, rastelo, peneira a torrador de café.
Não demorou muito tempo para Messias perceber a astúcia do jovem contador apelidado de Lô, neto de Germano. Foi na entrega da primeira colheita em cinco mil pés de café caturra.
“A caneta esferográfica não parava nas mãos finas daquele rapaz de jeitinho esquisito. Quando ele passou um traço embaixo de uma torre de números, sublinhando o total da dívida e depois fazendo uma conta de menos, veio o calafrio para seu Domingos: café entregue menos despesa de armazém.”
O pernambucano Cícero dizia: “Lá na minha terra o sujeito pode morrer na ponta da faca, aqui a gente é assassinado pela caneta do menino Lô.”
Na descrição da diáspora nordestina, Messias lembra nomes de tias, partos, doenças, e das roças em Pintadas. “Como esquecer a roça de milho meio esturricada e eu soltando o peito com cantos de aboio e tocando silicora para chamar chuva?”. Em 1986, depois de 20 anos, ele voltou lá pela primeira vez.
De braços dados com a avó materna Dindinha Alvina, de 90 anos, saiu a passear pela cidade natal. “Este é o Missía, metido a jornalista” – ela o mostrava a todos narrando sua nova vida no Paraná. “Deus te abençoe, meu filho” – respondia receptiva, mesmo para aqueles que não tinham com ela nenhum grau de parentesco.
Em 2004 Messias acompanhou o então prefeito João Ivo Caleffi a uma solenidade em Paranavaí, e ali se apresentou ao prefeito Deusdete Cerqueira, no jantar no Country Clube em comemoração à entrega do título de cidadão honorário ao deputado federal Odílio Balbinotti, “rei das emendas parlamentares” na região noroeste.
“Seu Deusdete, o senhor sabia que sou da sua cidade na Bahia, Mairi?”
“Não acredito, pois não conheço ninguém nessas redondezas que seja de Mairi. Então, prove.”
“Olhe só: quem assinou meu registro de nascimento foi a cartorária Castorina.”
A esposa do prefeito sorriu, surpresa:
“Vixi, bem, foi ela que assinou nossa certidão de casamento!
Nas páginas finais o autor descreve campanhas políticas e alguns métodos sórdidos que marcavam o jeito de administrar de antigamente. para
No “cerzir desta história”, conforme assinala Messias, a vinda de levas de nordestinos colher café no Sul, sobretudo no Norte do Paraná, não está diretamente relacionada ao eldorado que representava a cafeicultura.
Ele explica: “Na ‘Triste partida’, por exemplo, Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré falam do retirante que fugiu do flagelo da seca e caiu num flagelo maior, o da cidade grande, São Paulo na maioria das vezes. No caso em questão, a gente convivia com a seca, mas também com a esperança do inverno, que pelo menos uma vez por ano fazia pipocar a trovoada e cobrir o terreiro de tanajura.”
Messias descreve a fuga da família das terras da Fazenda Sessenta Alqueires: “Sem ver a cor do dinheiro, meu pai resolveu aplicar no patrão o golpe do ‘milho intercalado’. Vendeu sem ele saber uma carga de milho que plantou no meio do café. Isso foi possível graças à amizade que o velho Domingos fez com um caminhoneiro que passava quase toda tarde na cabeceira da fazenda de volta de Santa Cruz do Monte Castelo ou Querência do Norte, para onde transportava cereais.”
“Da colônia até a estrada que passava na cabeceira da fazenda dava uns três quilômetros. A gente não tinha mobília, apenas algumas roupas e panelas de alumínio que levamos em sacos de estopa. As camas eram tarimbas (feitas de pau-d’alho) e os colchões, de palha de milho. (...) Ninguém dava um pio. Era preciso até prender a respiração para evitar que o administrador percebesse a fuga. Minha mãe rezava baixinho, eu e meus irmãos fechamos a boca e meu pai, suando frio, seguia na frente com o saco maior nas costas.”
“Às 6h em ponto de uma manhã escura, mas céu ainda estrelado, o Chevrolet partiu da Sessenta Alqueires rumo à Liberdade. O futuro era incerto, mas nos olhos meio azulados de seu Domingos brilhava a esperança. Vamos tentar a sorte em Maringá.”
Seu Domingos voltou a trabalhar em outro cafezal, em Mandaguari, e em 1962 morou em um barraco na Favela Cleópatra, perto do cemitério. A experiência rural e urbana formava, então, um jornalista conhecedor da saga nordestina no Paraná, da qual ele foi um dos mais notáveis participantes.
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