Sexta-feira, 22 de março de 2019 - 09h19
Indígenas Karitiana bebem água fresca e pura, de cipós e árvores amazônicas, mas estão temerosos com a iminente destruição de seu maior patrimônio no interior do município de Porto Velho, pelos mesmos interesses de madeireiros em espécies nobres de madeira no território Uru-eu-au-au, conhecido por alta diversidade biológica. Isolados na floresta e no campo da aldeia central a 40 quilômetros da BR-364 e a cerca de 100 Km de Porto Velho, no sentido Guajará-Mirim, os Karitiana são acessados pelo ramal Maria Conga.
“Sede de água boa, aqui, ninguém passa”, orgulha-se o cacique Antônio José Karitiana, 44 anos. Ele e outros descendentes de antigos chefes desse povo, só lamentam a perda do professor dos remédios e dos bens oferecidos pela floresta: o pajé Sizino mudou-se para Candeias do Jamari, a 18 quilômetros de Porto Velho. É um dos últimos pajés no estado.
Reunidos terça-feira (19) no pátio da Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental e Médio Kyowã, eles participaram de breves palestras feitas por integrantes da coordenadoria de educação ambiental da Secretaria Estadual do Desenvolvimento Ambiental (Sedam), em comemoração ao Dia da Água (22 de março).
Aonde morre o desperdício, nasce a vida – estampava um banner levado pela coordenadoria. Outro, alertava: Economizar água é fácil, difícil é ficar sem!
Os Karitiana não desperdiçam água, entretanto, querem saber como aproveitar da melhor maneira possível igarapés que cortam sua floresta, e a melhor maneira de utilizar água de poço.
“Meus filhos todos nasceram na aldeia, e conhecem o valor da água”, comentou Luiz Carlos Karitiana, 40, quatro filhos. E disse sorridente nomes e idades de cada um: Marlúcia, 22, Vanderlúcio, 21, Emília, 14, e Luiz Carlos, 3.
Mas todo cuidado do mundo ainda é pouco, e isso Luiz Carlos captou, ouvindo atentamente a palestra do geógrafo Anderson Alves, alertando-os para o perigo de embalagens de produtos e diversos lixos jogados no chão e em rios distantes do asfalto das cidades.
O tenente Lopes e o cabo Jeferson, ambos do Batalhão de Polícia Ambiental (BPA) sediado em Candeias do Jamari, abriram o encontro. Nos pilares, entre outros banners, havia um bem didático: o mapa da hidrologia nos continentes, elaborado pela Agência Nacional de Águas (ANA).
Dirigindo-se ao cacique Antônio, o tenente Lopes pediu-lhe parceria para fiscalizar ilícitos na região. “Ela será tão importante quanto outras que temos com a Sedam e universidades”, enfatizou.
“Precisamos deixar a natureza pronta para os que vierem depois de nós”, apelou por sua vez o sargento do BPA e atualmente funcionário da coordenadoria de educação ambiental da Sedam, Fábio França.
O tenente Lopes explicou aos Karitiana que o Centro de Recuperação de Áreas Degradadas oferece mudas para reflorestamento, no âmbito do BPA.
O geógrafo Anderson Alves lembrou a Declaração Universal do Direito das Águas, a sua origem no planeta e a sua importância para a humanidade, desde a formação das primeiras cidades do Mediterrâneo. Explicou ainda a diferença entre água potável e água mineral, água doce e água salgada.
“Pra mim, a melhor água é a da raiz da árvore”, disse-lhe o cacique Antônio.
O cacique perguntou-lhe a respeito o uso da água da chuva. Ele aprovou prontamente, explicando que, quando recolhida diretamente em vasilhas limpas ou de plantas, normalmente pode ser ingerida sem purificação.
Luiz Carlos perguntou como tratar água barrenta. Anderson lembrou o exemplo nordestino, sugerindo a decantação que separa o material leve do pesado, porém, alertou: “O silte (fragmento de mineral ou rocha menor do que areia fina e maior do que argila) não decanta”. Em seguida, comentou o depósito de mercúrio no rio Madeira, por garimpos de ouro: “O metal se concentra no peixe, se tornando perigoso para a fauna ictiológica e para o ser humano.”
Segundo Anderson, a água de poços (ou cacimbas) não possui contaminantes, mesmo assim, defendeu a precaução de todos, sugerindo-lhes requerer à Sedam exames de laboratório para qualquer amostra d’água no território da aldeia central.
SOROROCA E SAMAÚMA
Encontrados na Amazônia Brasileira, os cipós cruz (ou cruzeiro), cipó d’água e a gigantesca samaúma têm água em abundância. Enquanto águas de rios e igarapés possuem microorganismos nocivos à saúde e precisam ser filtradas antes de bebidas, cipós cortados ao meio pingam água limpa.
Sororoca , uma planta semelhante à bananeira, também é encontrada na TI Karitiana e noutras regiões rondonienses. Nela, basta um furo na base da haste para recolher a água acumulada.
Além de servir de prato para servir refeições, tem utilização medicinal: devidamente limpa com soro fisiológico, suas folhas servem para proteger contra infecção para vítimas de queimaduras, uma vez que não aderem aos ferimentos e ainda ajudam na cicatrização. A vítima pode deitar em cima das folhas ou cobrir os ferimentos com elas.
A samaúma é a “mãe de todas as árvores”, segundo indígenas brasileiros. Ela consegue retirar a água das profundezas do solo amazônico e trazer não apenas para abastecer a si mesma, mas também pra repartir com outras espécies. De crescimento relativamente rápido, a árvore pode alcançar os 40 metros de altura. Em determinadas épocas estrondam, irrigando toda a área em torno dela e o reino vegetal que a circunda.
A samaumeira é tipicamente amazônica, conhecida como a “árvore da vida” ou “escada do céu”. Em margens de riachos secos, as raízes descobertas da sumaúma fornecem água potável no verão. A seiva da sumaúma é usada no tratamento de conjuntivite.
O chá feito com sua casca é diurético e recomendado para curar hidropisia do abdômen e malária. Certas substâncias químicas extraídas da casca das raízes combatem algumas bactérias e fungos.
Cercada de lendas, a sumaúma tem seu espírito invocado por xamãs em rituais de cura. Os índios ticunas dizem que a sumaúma acabou com uma noite sem fim e deu origem ao dia — ou seja, é elemento fundamental de seu mito da criação do mundo. Considerada o telefone da floresta, suas sapopemas ecoam ao ser tocadas, avisando desse modo, com seu tronco, a presença de alguém.
A presença da Sedam foi importante para os Karitiana, que apesar se situarem no interior do município de Porto Velho, ainda são pouco estudados pela antropologia. Segundo o Instituto Socioambiental, o principal problema desse povo diz respeito à sua reprodução física e sociocultural, o que depende diretamente dos limites de seu território.
A língua karitiana – a única remanescente da família linguística Arikém –, bem como de valorização dos costumes e histórias que os particularizam como povo precisam ser mantidas, eles reivindicam, sustentando esse pilar da mesma forma como ocorre com a língua Oro Nao, na Aldeia Deolinda, no rio Mamoré.
“Não se conhece a origem ou a etimologia da palavra Karitiana, que os próprios índios afirmam ter-lhes sido atribuída por seringueiros que penetraram seu território no final do século XIX e início do século XX. Os Karitiana denominam-se simplesmente Yjxa, pronome da primeira pessoa do plural inclusivo – nós, também traduzido como gente –, em oposição aos Opok, os não-índios em geral, e aos opok pita, os outros índios”.
A população Karitiana atual é de cerca de 320 pessoas (comunicação pessoal, Nelson Karitiana). Em agosto de 2003, Felipe Ferreira Vander Velden fez um recenseamento que registrou 270 pessoas, das quais cerca de 230 residiam na aldeia Karitiana, ao passo que os outros 40 estavam distribuídos nas cidades de Porto Velho e Cacoal.
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