Quinta-feira, 7 de julho de 2022 - 10h08
Com raríssimas exceções, poucas
pessoas em Porto Velho têm na memória o que ocorreu por aqui em 1964. Em seu
livro mais recente, o escritor Edilson Pereira trata do assunto, lembrando que
o capitão de engenharia Anachreonte Coury Gomes, lotado no 27º Batalhão de
Caçadores em Manaus, foi o ator principal no cenário do golpe militar. E o
encarnou no personagem Policrates Vilela de Almeida, transferido do Rio
de Janeiro para Manaus para ocultar um caso de pederastia. As Forças Armadas
não toleravam homossexuais.
O quase interventor – o Exército nunca mostrou documento que o enviara oficialmente em nome do Comando Revolucionário –desembarcou silenciosamente no aeroporto Caiari, de um voo procedente de Manaus no dia 28 de março de 1964, confome registra o jornalista Lúcio Albuquerque.
Na expectativa de agradar a esse
comando e certo de que seria premiado com o retorno ao Rio de Janeiro,
Policrates – ou
Anachreonte como queiram – fez o “limpa”. Prendeu diversas pessoas acusadas de
comunistas por serem apenas críticas ou integrantes do grupo político oposicionista
“pele curta”. Algumas delas realmente professavam a doutrina.
“Só prendem peles-curtas”,
protestava a professora Marise Castiel. Segundo explicava o historiador
Francisco Matias, “ser pele-curta era mais popular, com raízes nas camadas
menos favorecidas da população, nos profissionais liberais, nos professores e
no renatismo [seguidores do deputado Renato Medeiros].” “A condução da política rondoniense em 64, no
período, estava com a corrente pele-curta, neo-seguidor do janguismo e que
havia derrotado o candidato aluizista nas eleições de 1962. Neste caso, o
governador de plantão, Abelardo Mafra, era um aliado político do deputado
federal Renato Medeiros, o que era raro nas relações entre o executivo e a
classe política local”, acrescentava Matias em artigo.
Salvo exceções da
criatividade do autor, sua obra de ficção desnuda a realidade, pois dá nomes de
personagens que viveram diversas situações. A maioria morreu, e os que vivem,
confirmam tudo, caso do comerciante e poeta Carmênio Barroso.
O então secretário geral de governo, Eudes Campomizzi, “pegou gripe” [por sugestão de Anachreonte] e ficou em casa até a poeira baixar. Mas Floriano Rica, Raphael Castiel, Miguel Chaquian, Oswaldo Távora Buarque, Cloter Saldanha Mota, João Lobo, Harry Covas, Eliezer Santos, José Castillo, Sinfrônio Arcoverde e Carmênio Barroso foram presos.
Ou seja: mesmo antes da chegada e da posse do novo governador, José Luís Manuel Lutz da Cunha Menezes, em substituição ao capitão da aeronáutica Abelardo Mafra [que governou o território em dois períodos], o arrogante e desconhecido capitão vindo de Manaus fazia uma devassa na política local.
O oposicionista Mafra [era filiado ao Partido Trabalhista Nacional] recebeu um breve telegrama exonerando-o do cargo de governador em 24 de abril de 1964. Pior: ficou preso52 dias a bordo do navio Princesa Leopoldina, no Rio.
Uma semana depois de voltar da prisão no navio, ele foi chamado ao Ministério da Guerra [nome do Ministério do Exército] e lá era ouvido pelo general Aurélio de Lira Tavares que o mandou para a reserva e até o expulsou do Exército. Dona Beatriz, esposa de Mafra, desancou o comando revolucionário numa contundente carta. Mais tarde o aposentaram na patente de general. Mas essa é outra história.
Revolução ou golpe? O historiador Francisco Matias buscava esta definição: “O dia 31 de março de 1964, uma terça-feira, seria um dia como outro qualquer em Rondônia não fosse por conta de uma notícia veiculada pela Rádio Nacional e pelo movimento nos quartéis. A matéria dava conta da deposição do presidente João Goulart e da posse de um novo mandatário da Nação, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, chefe da Revolução. Eis aí um nó difícil de desatar. Afinal, foi golpe de Estado ou Revolução? No entendimento da Direita, foi uma Revolução, haja vista ter contado com a participação da Igreja Católica e ter sido antecedida pela Grande Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade, evento organizado pela Igreja Católica que reuniu no Rio de Janeiro milhares de donas de casa marchando contra o comunismo.”
E acrescentava: “No entendimento da Esquerda, entretanto, foi um golpe de Estado, na medida em que teve na força militar o principal instrumento de pressão e opressão, e não teria contado com a participação popular, propriamente dita. Além do mais, teve a interferência direta dos EUA, país considerado por importantes segmentos da Esquerda à época como o Grande Satã do capitalismo selvagem. De um ou de outro modo, foi um golpe de Estado e uma Revolução, mesmo porque mobilizou o país inteiro e derrubou um governo legalmente constituído, formalmente instalado, mas, de forte tendência para o socialismo soviético. Não se pode esquecer que o mundo vivenciava o início da Guerra Fria, e estava dividido entre as forças que venceram a II Guerra Mundial 19 anos antes.”
Talvez o autor de Mi
Puerto Viejo querido não precisasse chamar de Policrates o capitão
responsável pelo pagamento em quarteis amazônicos e que aqui chegou
intitulando-se “agente da Revolução”.
Edilson Pereira misturou propositalmente
nomes reais de pessoas, vítimas do golpe de 1964, ou partícipes na condição de
colaboradores, algo palpável no caso da substituição de titulares de cargos
públicos e aceitáveis em se tratando de prostitutas para as quais escolheu
nomes risíveis e de frequentadores dos lupanares existentes à época.
Se o leitor local saberá
distinguir quem é quem, o de fora tenderá a guardar alguma dúvida, embora, nas
221 páginas do livro estejam, instigantes, todos os ingredientes para avaliar o
ridículo, o soberbo e o arbitrário que aqui pairaram no espoucar do golpe.
Os presos considerados
comunistas ou simpatizantes foram alojados numa sala de oficiais da antiga 3ª
Companhia de Fronteira, com alimentação servida no rancho dos graduados;
membros do governo e da prefeitura foram colocados num barracão coberto de
palha no quartel da Guarda Territorial.
Antes mesmo do 1º capítulo,
Pereira publica uma “advertência”: Este é um livro de ficção em que figuras da
história se entrelaçam com figuras que deveriam ter feito parte da história,
mas, por um descuido imperdoável, decidiram aparecer apenas neste relato.”
O capitão pagador usou
suas prerrogativas para ser simpático aos pais de alunos, ocupando parte do
tempo em dar aulas de moral e cívica no Colégio Carmela Dutra, contava o
historiador Abnael Machado de Lima, falecido em julho, três anos atrás. “Ele
foi arrogante e arbitrário”, dizia Lima.
Pereira mostra o capitão na
condição de “burocrata sem escrúpulos” (...) “que chegou a Porto Velho como uma
sombra e se foi como uma assombração; esse sujeito poderia jogar irmão contra
irmão, pai contra filho, marido contra mulher e amigo contra amigo.”
Anachreonte deixou Porto Velho em 21 de abril de 1964. Mesmo sendo designado interventor
em Manaus, não deu certo, e voltou ao Rio.
Reconhecido sem muita
pompa militar pela “limpeza” feita em Porto Velho, Anachreonte (ou Policrates) voltou
à vida normal, a seu gosto, e um dia convidou um amante para um jantar em seu
apartamento. Ele próprio cozinhou, e no final foi assassinado. Saiu nos jornais
do Rio, à época.
Não havia como hoje, a
necessidade de o comandante do Exército ou o presidente da República se
livrarem de incômodos e perigosos arquivos vivos. Afinal, perpetuava-se o golpe
militar, e dele diversos atores participaram.
O autor preferiu dar outro
final à história do capitão interventor: “matou-o” depois que o amante “preparou
um café para ele” e negou-se a beijá-lo.
Trecho do capítulo 5:
Os golpistas contavam com
ele. Aquilo foi música para Policrates.
“Pode deixar Rondônia comigo!”.
“Bico fechado até segunda ordem!”.
“Pode contar comigo.”
Policrates sabia que não seria grande problema. Ele sabia tudo sobre Rondônia.
Naqueles primeiros meses de 1964, o Território Federal se resumia a dois
municípios, a Capital Porto Velho e Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia.
Sua economia era
extrativista mineral e vegetal com pequena produção agrícola e pecuária de
subsistência. A representação política se resumia a um deputado federal. Não
havia Câmara de Vereadores, e os prefeitos das duas cidades eram nomeados por
um governador que por sua vez também era nomeado pelo presidente da República.
Quase sempre oficial do Exército. Quase sempre um coronel.
Quando o plano de derrubar
João Goulart já estava em marcha e chegou a hora de os militares golpistas
escolherem quem mandar para Rondônia, o general Golbery do Couto e Silva mais
uma vez recorreu ao general Teófilo Canabarro.
O nome estava em seu
colete. Quer dizer, no bolso da farda.
“Como fica Rondônia?”
“Policrates é o homem para o serviço”.
“Quem?”
“Capitão de engenharia Policrates Vilela de Almeida.”
Golbery olhou mais uma vez a ficha do capitão.
“Este é o invertido que foi mandado para Manaus.”
Canabarro esperava por isso:
“Ele é bom de serviço, de
confiança e fora o vício da pederastia, é competente. E tem mais, o território
está
sob o comando dos esquerdistas. Policrates conhece o lugar porque está sempre
lá para fazer o pagamento nos quartéis. E para finalizar, não temos outro. Sem
contar que ninguém se interessa por Rondônia.”
Os argumentos eram fortes.
Ninguém realmente estava preocupado com o território. Além disso, Golbery sabia que no Exército às
vezes se cometiam injustiças. Ele lembrou do episódio de sua transferência para
Belo Horizonte. Aquilo foi uma injustiça. Talvez o caso do capitão fosse algo
parecido.
“Onde ele está agora?”
No 27º Batalhão de Caçadores de Manaus.”
Porto Velho não era
prioridade. O homem seria Policrates. “Fale para ele ir com antecedência.”
Canabarro disse:
“Se a vitória for nossa,
Policrates coloca ordem na casa. Depois mandamos alguém qualificado.”
Golbery confiava em
Canabarro, que ligou para Policrates na metade de março. Disse-lhe que ficasse
de prontidão. A missão era a chance de voltar a ser alguém no Exército depois
do afastamento do Rio de Janeiro.
Nos dois últimos anos não
recebeu promoção. Nem menção na ordem do dia. Nem citação. Nenhuma medalha. O
seu posto era quase invisível, pois não ficava em lugar nenhum. Apenas voando
de um lado para outro, para fazer pagamentos.
Canabarro orientou
Policrates:
“Você será agente da
revolução. Chega antes, levante as condições do terreno. Mas esteja lá no dia
31 de março. Limpe a área antes da chegada do novo governador.”
Trecho do capítulo 22:
“O capitão Policrates era um imoral.”
“Verdade?”
“Sim”.
Ser depravado e imoral não espantava muita gente. Ser
depravado não era tão reprovável em alguns lugares do Brasil – e imoralidade, desde que contida e reservada entre
quatro paredes, chegava ser condimento necessário para os folguedos amorosos
não caírem na rotina e no tédio. O problema era aquele detalhe que mudava tudo:
“Você não entendeu.”
“Entendi, sim. Ele é um
depravado. Ele gosta de macho!” Claro que sempre existiram homens que gostavam
de machos. Desde os tempos antigos, da Grécia e de Roma. Nos últimos séculos,
no entanto, com a propagação do cristianismo pelo ocidente e do islamismo pelo
oriente e na África, o uranismo passou para uma categoria abominável. As duas
religiões reprovam o ato entre pessoas do mesmo sexo. O islamismo ainda mais.
Em alguns lugares onde a palavra do Profeta era reverenciada os pederastas eram
jogados de muros e prédios para se esborracharem no chão.
E se não se esborrachavam, a turba furiosa terminava o serviço. Em outros eram
submetidos a julgamentos sumários e condenados à morte por apedrejamento. Mais
uma vez a turba comparecia com pedras e arremessos. Mas era inegável que, mesmo
assim, existiam homossexuais em todos os lugares do planeta. O espanto, no
caso, era saber que um capitão do Exército Brasileiro era afeminado. Ainda
mais, um agente da revolução.
Naturalmente, se fosse um
militar comunista seria compreensível, porque os padres diziam que os
comunistas faziam lavagem cerebral, e neste caso poderia ser lavada a parte
masculina do cérebro da pessoa e ele ficava afeminada. Mas não era aquele caso.
A parte da cidade que
ignorava as predileções do capitão estremeceu de espanto:
“Um agente da revolução?
Bonequinha de luxo! Não acredito.”
“Pois acredite. É notícia que vem de Manaus.”
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