Crise chega à mesa: vetada a adição de fécula de mandioca no pão, trigo sobe 25%
MONTEZUMA CRUZ
Agência Amazônia
BRASÍLIA – Não foi um retrocesso na ciência, mas certamente uma bobeada muito grande do governo. O time estava ganhando e foi modificado. Na mesma semana em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicou no Diário Oficial da União o veto integral à lei que determinava a adição de farinha de mandioca refinada, de farinha de raspa de mandioca ou de fécula de mandioca à farinha de trigo, a crise mundial chegou ao comércio da panificação e à indústria de massas e biscoitos. A alta do dólar encarece em 25% o preço do trigo no atacado. O pão subirá 15%, o macarrão 20% e os biscoitos 15%.
Pesquisadores, técnicos do Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa e mandioqueiros cancelaram o jantar com degustação de pão adicionado com fécula que promoveriam na próxima quarta-feira num restaurante de Brasília. Deputados integrantes da Comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural pretendem se reunir esta semana para estudar como colocar novamente o assunto na pauta do Congresso.
Economia seria superior a US$ 100 milhões
Lula tomou a decisão amparado em parecer editado pelos ministérios da Fazenda, Justiça e Agricultura. Ouviu o setor moageiro e pouco prestou atenção aos estudos oferecidos pelos mandioqueiros, estes, sem lobby algum no Palácio Planalto. A Associação Brasileira de Produtores de Amido de Mandioca (Abam) manifestou sua estranheza, porque numa reunião da Câmara Setorial de Mandioca o ministério nada interpôs à adição (leia abaixo).
Atualmente, o País importa cerca de 75% da farinha de trigo que consome. Estimativas indicam que a mistura das duas farinhas proporcionaria uma economia anual em torno de US$ 104 milhões. A cada ano, o Brasil consome mais de dez milhões de toneladas de trigo e importa sete milhões de toneladas. O produto é sensível a oscilações do mercado internacional e à cotação do dólar.
Produtores de trigo dos Estados Unidos, que são os maiores exportadores mundiais do cereal, anunciaram que vão substituir parte de suas lavouras por outras culturas na primavera. Na véspera da publicação do veto, contratos para março do ano que vem fecharam nas Bolsas de Kansas e Chicago a US$ 6,5750 e a US$ 6,29 o bushel (27,21 quilos), indicando altas de 3,75 centavos e 4,25 centavos, respectivamente.
|
Rita de Cássia: "Substituição de 10% da farinha por fécula de mandioca é viável" / ITAL |
Com aprovação do Ital
Recentemente a Abam divulgou uma minuciosa pesquisa do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), na qual o consumidor aprovou a utilização da fécula de mandioca no pão francês.
Os testes incluíram adição de 5%, 10% e 15% de fécula. Além das análises físicoquímicas, os pesquisadores Francy Zambrano, Rita de Cássia Ormenese, Flávio Montenegro e Eliete de Faria pediram a um grupo de 50 pessoas para avaliarem aparência, textura, sabor e possibilidade de compra.
O resultado apontou que o pão com 10% de fécula de mandioca foi bem aceito em sabor, textura e aparência, mas a aceitação dos consumidores caía à medida que se aumentava a porcentagem de fécula e o tempo de estocagem. É possível acrescentar até 10% de fécula de mandioca na produção de pão francês.
Pesquisadores recomendaram apenas que seja utilizada na mistura uma farinha de trigo forte, que tem maior capacidade de retenção de gás carbônico e proporciona maior crescimento da massa. Também sugeriram que a quantidade de água e o tempo de mistura sejam menores e que seja avaliada a utilização de aditivos, entre eles, agentes oxidantes e emulsificantes.
A justificativa de Lula
|
Lula: fechando os olhos às conquistas da Embrapa, que ele premia e leva ao exterior |
O veto presidencial inclui também o regime tributário especial para a farinha de trigo misturada. "Como a produção será distinta quando destinada ao governo e ao mercado tradicional, os moinhos terão que preparar lotes específicos, o que tenderá a aumentar o custo e o preço do produto", explica o texto.
O projeto prevê que para o setor público a adição seria obrigatória e opcional para o setor privado. O governo entendeu que a sua participação nas compras não seria expressiva. Assim, os benefícios da proposta "não seriam alcançados". Pouco importou a discussão e aprovação do projeto na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Decidiu e pronto.
A mensagem de Lula explica que a farinha de trigo, tanto no estado puro, quanto misturada ou associada a outras matérias, já se encontra desonerada da contribuição de PIS/Pasep e da Cofins. "O artigo 12 do projeto, que propõe que a venda de farinha de trigo seja subsidiada por meio de tributação reversa, tornando a aquisição de um produto já totalmente desonerado em sua cadeia de produção em um meio de obtenção de incentivos fiscais na forma de créditos tributários é uma forma de concessão de subsídio que exige observância do Artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal".
R$ 17 bi de importações
Moageiros comemoram. Mesmo diante da alta – mais uma – do preço do produto no mercado internacional, eles se sentem um pouco aliviados, porque não precisarão adequar qualquer estrutura de máquinas e equipamentos para produzir um produto diferenciado, embora de qualidade excelente, conforme atestam pesquisadores da Embrapa e do Ital.
Boa parte das compras de trigo feitas pelo Brasil no estrangeiro ocorre nos Estados Unidos. O País também compra trigo do Canadá, da Rússia e da Argentina). A Companhia Nacional de Abastecimento informa que, somente nos derradeiros dez anos o Brasil gastou mais de R$ 17 bilhões com a importação de trigo.
À Agência Amazônia a direção da Abam considerou que o veto veio na contramão do desenvolvimento e contribui para a defesa dos interesses comerciais dos grandes importadores de trigo estabelecidos no País. "Alguns dos maiores moinhos instalados no Brasil se localizam próximos aos portos, de onde recebem os grandes carregamentos de trigo, trazidos por navios estrangeiros. São favorecidos com prazos de pagamentos longos, com juros e subsídios internacionais, benefícios a que poucos brasileiros têm acesso". (M.C.)
|
Linha de produção do amido de mandioca produzido em Paranavaí, no Paraná /ABAM |
Surpresa na Abam
A pedido do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, com participação de membros das Câmaras Setoriais da Mandioca e de Culturas de Inverno (trigo), em maio deste ano houve uma reunião em Brasília, da qual participaram ambos os presidentes das referidas Câmaras Setoriais: João Eduardo Pasquini e Rui Polidoro Pinto.
Eles saíram com a nítida impressão de que estavam ali para participar de um feito histórico para o País: a formatação de um importante instrumento de valorização de uma cultura essencialmente nacional, que viria favorecer, principalmente, pequenos produtores. Saíram com a certeza de que estavam optando pelo melhor caminho para o Brasil.
Em nota, a Abam afirma: "Causou-nos estranheza sabermos que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento foi favorável ao veto, visto não haver se manifestado neste sentido em tal encontro". Para a entidade, o veto presidencial choca-se com os interesses dos agricultores e da agroindústria brasileira. "Ccontraria os interesses econômicos do País e incentiva a continuidade da dependência do Brasil do trigo estrangeiro, cujos preços são balizados pelo mercado internacional e pela variação cambial, que, diga-se de passagem, tem amedrontado os mercados em todo o mundo, inclusive no Brasil, onde a moeda tem atingido patamares preocupantes", assinala a entidade. (M.C.)
Palavra de um especialista
|
Joselito: ensinando acreanos a fazer pizzaioca, a pizza de mandioca /AGÊNCIA AMAZÔNIA |
"
O sabor e a textura agradaram ao consumidor. O pão fica macio, com textura suave e agradável ao paladar. Além disso, sua vida de prateleira dobra em seis horas. O pão comum dura apenas três", afirmou o pesquisador Joselito da Silva Motta.
Desde 2002, a Embrapa Mandioca e Fruticultura Tropical promoveu mais de 80 palestras em 42 municípios, seguidas de degustação do pão adicionado com fécula em 19 estados. "Além de ser tecnicamente viável, a fécula vem também melhorar a qualidade nutricional, o sabor, a textura, a aparência e a vida útil do pão nosso de cada dia", lembrou.
Em pleno século XXI, a aprovação do projeto foi o maior feito para a agricultura brasileira, principalmente a familiar. É uma prova de que a associação de um produto nobre como o trigo com um considerado tipo tupiniquim é viável, não só pelo aspecto social e econômico: vem beneficiar toda a cadeia da mandioca, melhorar a qualidade de vida do pequeno agricultor, criar mais emprego e renda". (M.C.)
Fonte: Montezuma Cruz - A Agênciaamazônia é parceira do Gentedeopinião.
Segunda-feira, 25 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)