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Montezuma Cruz

Piloto de 'voadeira' viaja por rios amazônicos até de olhos fechados



Conhecedor de todas as cabeceiras de rios, Chico de Souza trabalha há 23 anos. Transporta servidores públicos, missões estrangeiras e indígenas.


MONTEZUMA CRUZ
Agência Amazônia 

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SENA MADUREIRA, AC – Desvia daqui, desvia dali, vê-se que os galhos vêm de todos os lados, trazidos pela forte correnteza. Em pé, Francisco Nunes de Souza, 48 anos, o Chico, desacelera o motor de popa, deixa a lancha “voadeira” recuar uns dois metros, e os galhos menores desenroscam da hélice. Faz isso durante todo o período de cheia nos rios Caeté, Macauã e Yaco, entre os estados do Acre e Amazonas. No dia em que completou 23 anos de trabalho na Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar (Seaprof) viajamos duas horas e meia com ele pelas águas do Caeté.

É força de expressão dizer que ele conhece os caminhos do rio até de olhos fechados. No entanto, em plena cheia, navegamos com ele meia hora no escuro até nos aproximarmos da barranca de acesso à Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, a 40 quilômetros da sede do município de Sena Madureira. De que maneira obteria êxito no percurso, se não conhecesse todos os trechos do rio? Chegamos à barranca de acesso à Resex por volta de 19h. 
Piloto de 'voadeira' viaja por rios amazônicos até de olhos fechados  - Gente de Opinião

Chico Souza é um "az do volante" nas águas dos rios acreanos /MONTEZUMA CRUZ



A viagem demora mais que o esperado. A cada 15 minutos galhos pequenos e grandes aparecem no leito do Caeté, obrigando o piloto a manobrar caprichosamente sobre as ondas para evitar transtornos. Bater num tronco é risco de naufrágio e só se salvará quem usar colete salva-vidas e souber nadar bem. Ou, na pior das hipóteses, se tiver braços amigos a lhe guarnecer numa situação dessas. Felizmente, não foi o nosso caso.

A invasão de galhos é um dos fenômenos da cheia amazônica. Dura até quatro meses, atrapalha a navegação e prejudica tanto pilotos experientes quanto os novos. Estivesse contemplada pelos programas de manutenção de hidrovias, a região seria atendida na remoção de tocos ou cepos de árvores do leito do rio; retirada de pedras ou lajes que oferecem perigo à navegação; desobstrução de canais; dragagem (desassoreamento); e até sinalização nas margens. Mas o Acre não possui hidrovias. A única na Amazônia é a do Rio Madeira, nascida para escoar grãos de Rondônia e Mato Grosso.

– Já passamos o Salpico e o São Pedro. Daqui a duas voltas a gente chega do Chiburema – diz categórico o piloto. Chico de Souza conhece a localização de cada um dos igarapés entre Sena e o destino. São pelo menos dez, nos dois lados do rio. E as curvas passam de 20. 


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Não apenas galhos, mas troncos inteiros se tornam perigosos para as viagens de canoa e lanchas, único meio de transporte na região /MONTEZUMA CRUZ

Viagens inesquecíveis

O piloto entrou na Seaprof em 1986 e quando não está na “voadeira” é motorista. A família sente falta dele. Em algumas viagens levou a mulher, dona Maria Maconice, 43, e os filhos Geovane, 21, e Julia, 15. A saudade diminui.

– Nem sempre é possível – ele reconhece. Conforme o compromisso do viajante, Chico permanece até três dias fora de casa. Ele transporta funcionários do governo, prefeito, vereadores, professores, médicos, atendentes de saúde e outros profissionais e autoridades. Em julho conduziu parte da comitiva da Embaixada da Alemanha em visita à Resex Cazumbá. A cada parada para desobstruir o caminho, Jens Ochtrop (diretor de Programas de Manejo de Recursos Naturais do banco KFW) e Paul-Gregor Fischenich (coordenador da Agência de Cooperação Alemã) se entreolhavam, perguntando: “Mais um (galho)?”.

Na volta, um dia depois, galhos, pedaços de tronco, ou troncos inteiros ficam bem mais visíveis. Cuidadoso, o piloto recolhe os equipamentos da lancha, cobre a carga com lona plástica, pára no meio do rio e dá orientações a outros pilotos, inclusive para os bombeiros municipais de Sena – estes, também acostumados a percorrer a região em qualquer época do ano. 
Piloto de 'voadeira' viaja por rios amazônicos até de olhos fechados  - Gente de Opinião

A fotógraga Ângela Peres viajou na lancha "voadeira" até a Resex Cazumbá, de olho nas casas, quintais, praias e árvores gigantes / MONTEZUMA CRUZ



Às 9h da manhã, a neblina é intensa e impede os passageiros de Chico de contemplar melhor a paisagem. Dali a meia hora, os raios de sol diminuem o frio e a repórter fotográfica Ângela Péres, da Secretaria de Comunicação do Governo do Acre, não perde de vista os casebres, roupas no varal, pequenas praias e a floresta às margens dos rios. Com sua teleobjetiva, mira pássaros, castanheiras, toaris e outras espécies de grande porte. 


Índios não se mexem


Chico já esteve nas cabeceiras de todos os rios da região. Pelos relatos, suas viagens são inesquecíveis. Numa ocasião, chegou à fronteira com o Peru, onde buscou e levou de volta indígenas de três aldeias da etnia Kulina que foram a Rio Branco (capital acreana) para fazer um curso de educação.

– Eles sentam ou se acocoram aí no banco e no chão da lancha, se aprumam bem, olham para a frente e não se mexem o tempo todo da viagem todinha – conta.

E que viagem! São seis dias de rio, entre Sena Madureira e Santa Rosa do Purus. Noutra viagem transportou um deputado federal, a mulher dele e um assessor. Disse que o parlamentar apreciou “um tanto” a paisagem, mas em dado momento cochilou.

A maior parte dos rios da Amazônia Brasileira é constituída por rios de baixo curso (rios de planície). Com certeza, neles não haverá tão cedo solução para evitar os galhos. 

Limpeza é cara e quase inexistente 

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Jens e Paul-Gregor testemunharam as agruras e as destrezas de um piloto de lancha na Amazônia / MONTEZUMA CRUZ

SENA MADUREIRA – A retirada de troncos, árvores caídas e galhos semi-enterrados no leito é um trabalho preliminar de grande utilidade na fase da cheia, mas não há gente suficiente na Prefeitura de Sena Madureira para cuidar desse setor. Muito menor por parte das autoridades fluviais, que estão a mais de mil quilômetros dali.

A obstrução de igarapés e rios compromete o retorno dos cardumes e o acesso as embarcações dos pescadores. Além disso, diminui a renda dos pescadores e, conseqüentemente, a qualidade de vida de suas famílias

Esses obstáculos que se repetem a cada ano representam perigo para as embarcações. A luta pela desobstrução é quase inócua em rios maiores na Amazônia Ocidental, entre os quais o Acre e o Purus, cujas águas se encontram próximo ao município de Boca do Acre.

Em grande número de rios amazônicos, florestas enterradas, em camadas superpostas, vão aparecendo na proporção em que se retiram as primeiras. Além disso, a instabilidade das margens e as mudanças contínuas do leito, às vezes repentinas – “terras caídas” – põem a perder trabalhos, que são caros e penosos.

Retirar galhos e troncos de árvores nesta parte da Amazônia é tal qual a remoção de camalotes, aguapés e outras plantas aquáticas que descem os rios, concentrando-se em determinados locais e formando grandes ilhas flutuantes, que chegam a obstruir completamente a via navegável. É um serviço que põe em teste permanente a paciência dos balseiros. 
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Uma família com crianças, bebês e um cão (na proa) cruza com a lancha pilotada por Chico Souza, no rio Caeté/ MONTEZUMA CRUZ


Quando é feita alguma dragagem dos baixios, ela tem que ser feita após cada enchente, ou simples repiquete, fenômeno ocorrido quando aumenta e diminui repentinamente o volume de água que desce das cabeceiras dos rios, em conseqüência das chuvas. Os igarapés são inacessíveis por terra, logo, nenhum trator se aproximará deles. Estão cercados por florestas.

Este ano, emendas de parlamentares ao Orçamento Geral da União totalizam mais de R$ 1 milhão para serviços de desobstrução de 98 hectares de lagos naturais e limpeza de 34 quilômetros igarapés no Estado do Acre. Serão beneficiadas 1.570 famílias de pescadores nos municípios de Sena Madureira, Feijó, Tarauacá e Jordão. Mas esses recursos são insuficientes para atender à demanda, bem maior.

É pouco, principalmente levando-se em consideração o fato de os serviços não alcançarem todo o Vale do Purus. Em Sena Madureira, apenas os igarapés Mariomba e São João foram contemplados com esse tipo de limpeza. (M.C.). 

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Fonte: Montezuma Cruz - A Agênciaamazônia é parceira do Gentedeopinião

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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