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Montezuma Cruz

Realizar, o verbo da hora


Montezuma Cruz
De tempos em tempos em tempos uma praga se dissemina nas lavouras das redações, no Congresso Nacional, nas universidades, no Poder Judiciário, nas repartições públicas e, surpreendentemente, nas escolas do Ensino Fundamental. Anteriormente, a mais praticada fora a nível de. Atualmente é o realizar, realização e derivados. De quebra, o estrangeirismo ataca em todos os quadrantes, de Macapá a Porto Alegre.
Realizar é verbo forte, mas virou arroz de festa nos títulos e nos subtítulos. Usá-lo excessivamente pode retirar do texto a elegância e prejudicar a criatividade.
Ocorre, professora Luísa, que nunca neste País se conjugou tanto o tal verbo. Nada mais se faz, adota, instala, promove ou produz. E outros carrapichos vêm a reboque, prosperando e arranhando sem dó. Praga sozinha não faz sucesso.
Ouve-se e lê-se à exaustão, nas internas e nas capas: “O curso será realizado; a polícia realiza blitz; o médico realizou o parto, os países do G-8 realizarão uma conferência em Londres; a Associação Comercial vai realizar um almoço de confraternização”. Conta-se uma dúzia de vezes esse verbo num só documento da 59ª Reunião da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência.
Nem os jornalões se poupam
Em sua edição de 5 de julho, O Estado de S.Paulo publica manchete de primeira página: Roriz renuncia e evita cassação pelo Senado, título objetivo. Na linha fina, o vacilo: Mesa ainda realizou manobra para adiar a saída, pedida à noite pelo senador. Um minuto a mais no raciocínio do editor, sairia: Mesa ainda manobrou para adiar etc.
Texto jornalístico, documentos comerciais, atas de reuniões de cientistas, discursos paroquiais e políticos são aviltados sem a menor cerimônia. Jornais, rádios, TV, sítios e portais na internet enroscam-se na teia de aranha desse vício. Por quê? Comodismo e pressa.
O Correio Braziliense, cuja editora de opinião, a brilhante libanesa Dad Squarisi, escreve uma coluna semanal e atua na TV com lições de bom português, publicou na edição de 28 de julho: Segundo o brigadeiro Kersul, o Cenipa já possui toda a transcrição das conversas realizadas na cabine do Airbus. Na legenda da foto de uma edição deste domingo, 29 de julho: Forças israelenses realizam treinamento.
Implante, só de fígado, dente ou rim
Pessoas ou instituições não são punidas, mas penalizadas; as vendas alavancam o comércio; o ministro Jobim vai implantar um programa enérgico de controle de vôos e a cana-de-açúcar, o pinhão-manso e o girassol devem gerar muito emprego no Paraná; a ministra Marina Silva priorizou o Parque do Tumucumaque. “Vossa excelência perfurou os poços em sua fazenda, com dinheiro público!”, disparou o deputado do PSOL. Disparou?
Na Agência Amazônia costumamos nos policiar para evitar ao máximo esses verbos. Implante, aqui, só vale se for dentário, de rim ou de fígado. Gerar, só se for no sentido energético ou se a mulher for ganhar um filho. Chega de geração de empregos!
Sinal verde é para guarda de trânsito
O governo, que deu sinal verde para as hidrelétricas do Rio Madeira (primeira página de O Globo, em 10 de julho), não vai disponibilizar mais recursos do MDA para os sem-terra do Pontal do Paranapanema. Sinal verde é para guarda de trânsito. Para quê disponibilizar se podemos oferecer?
Editores romperam com o hífen de médico-legista e de Instituto Médico-Legal. O Correio Braziliense é um deles. Não faz muito tempo, a Folha de S.Paulo retirou temporariamente o trema da palavra seqüestro. Depois, corrigiu-se.
José Luiz de Oliveira, falecido editor de Cidades do Jornal de Brasília, exclamava depois das 20h: “Minha filha, você tem Deus no coração? A missa não foi realizada na Capela Dom Bosco, foi celebrada!”.
Vixe! Até caixa eletrônico realiza !
Noto que o vírus também conquistou os publicitários. No caixa eletrônico do banco aparece na tela: “Um momento, estamos realizando o seu extrato”. Vejo a transmissão do jogo e o meu time não mais ataca; realiza um ataque. Crendospadre!
Temos que reconhecer os esforços em se promover a assepsia do texto no melhor estilo de enxugamento recomendado por Carlos Maranhão ao conceber o pioneiro manual da Editora Abril. O editor-chefe Wilson Marini comprou dois exemplares do Manual de Redação e o Manual de Hífens do mato-grossense Eduardo Martins e colocou-os para usufruto geral na redação de O Diário do Norte do Paraná, em Maringá. Quantos não fizeram o mesmo?
O manual orienta. É uma grande ferramenta, diriam os webianos, estes, campeões no uso da palavra desenvolver. A exemplo do dicionário, o manual é uma obra-prima. Até ser concluído demanda um esforço enorme. Deveria ser utilizado com boa vontade.  
Não existe no jornalismo quem não tenha uma só dúvida todo santo dia. Lembremos de Sócrates: “Só sei que nada sei”.
Enquanto Jesus não realiza um milagre — sem copidesques e revisores — para que a moçada e também os “vovôs” reabram os manuais, o jeito é suportar esse fardo pesado.
Pronto, completei o desabafo. Peço perdão pela chatice. Contra o desinteresse, sou eterno inconformado.
O autor é nosso colaborador e um dos editores da Agência Amazônia de Notícias
 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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