ANA MARIA MEJIA
Agência Amazônia
GUAJARÁ-MIRIM, RO – Ao ver o teto caindo, vidros quebrados, goteiras em várias partes, o diretor do Museu Histórico de Guajará-Mirim, Cláudio Furlaneto, 76 anos, se preocupou com a segurança. Chamou os bombeiros. A prefeitura, que há anos promete investir na recuperação, até agora silencia diante do desmoronamento de um dos símbolos da cidade e da Amazônia. É um silêncio melancólico com a própria história da região, especialmente da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, construída no início do século passado e considerada a mais isolada do mundo.
O prédio construído em 1912 foi interditado pelo Corpo de Bombeiros do município por causa do risco de desabamento. Há dois meses, todo o acervo está ali abandonado, sob poeira, goteiras e muito descaso. O museu, que nos últimos seis meses recebeu seis mil visitantes, não passou por nenhuma reforma em 15 anos e rendeu-se ao próprio destino.
|
O teto arrebentado /M.CRUZ |
Relíquias da antiga Prelazia
Já há alguns anos, a parte superior do prédio estava fechada. Lá está a bicicleta com a qual o bispo da antiga Prelazia de Guajará-Mirim, Dom Francisco Xavier Rey, percorria as ruas da cidade. Também estão os paramentos, roupas, fotografias, a mala usada nas viagens, livros, piano, a vagonete na qual ele seguia pelos trilhos da Madeira-Mamoré (Porto Velho-Guajará-Mirim). A fronteira fica 362 quilômetros da capital rondoniense. No segundo piso estão fechados à visitação e expostos à poeira e umidade que lentamente o destroem.
No início do ano, eram bem visíveis as paredes descascadas, quebradas e rachadas; o telhado e o forro caindo; vidros e janelas também quebrados; baldes espalhados pelas salas, evidenciando as goteiras que teimavam em aumentar.
Ninguém quis, Cláudio ficou
|
Cláudio: última reforma tem 15 anos /M.CRUZ |
No posto de organizador e diretor do museu, Cláudio Furlanetto, francês, naturalizado brasileiro, disse que ao completar 70 anos se aposentou e procurou o prefeito para entregar as chaves. "Ele não aceitou. Não havia ninguém para tomar conta do museu. Fiquei". Há quatro anos a prefeitura o contratou para continuar o trabalho iniciado em 1983, quando então coletou e selecionou o atual acervo.
De madeira de cedro e argamassa feita com cal e areia grossa, o prédio corre o risco de desmoronar. "Depois de 70 anos, a cal perde a liga e começa a cair", explica candidamente o diretor. Cláudio conta que a última reforma foi feita há 15 anos. Vê com
|
Cerâmica indígena, preciosidade /M.CRUZ |
tristeza essa situação, mas não tem nem de quem cobrar. O prédio é patrimônio federal e o governo brasileiro não quer investir no museu, muito menos a prefeitura. "O pessoal da cidade formou a Associação de Amigos do Museu, prometeu ajudar; estudantes da Universidade de Rondônia vieram. Eu acreditei que eles teriam força de reorganizar a burocracia e não aconteceu nada", lamenta.
Expedição a Pedras Negras
Ainda jovem e aventureiro museólogo, Cláudio Furlanetto chegou a Rondônia e se apaixonou pela região. Sobrava espaço no prédio da antiga Estação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e foi aí que surgiu a idéia de organizar o Museu Histórico. O primeiro trabalho foi organizar a expedição para começar a coleta de material, ele relembra. "Em 1983 subimos o rio até Pedras Negras. Lá havia muito artesanato que mostrava a mistura da arte indígena e africana".
|
Até fechar, museu recebia 60 pessoas por dia, até estrangeiros /M.CRUZ |
Segundo Cláudio, Pedras Negras guarda um povo quilombola formado por ex-escravos fugidos do Forte Príncipe da Beira. Para a captura de animais, ele viajava acompanhado de um caçador experiente que abatia dois bichos por dia, os quais ele ia empalhando. Aves, mamíferos, répteis... Muita paciência e atenção para a técnica da taxidermia. Assim surgiu a "arvore" onde se exibem vários animais – onça pintada, jaguatirica, macacos, aves, cobras e outros animais que podem ser observados, embora estejam em mau estado de conservação.
Cerâmica, cesto, arco e flecha
Cerâmica indígena do Makurap, Jaboti, Tupary, recolhidos na Ilha Pau d'Óleo, no Rio Guaporé; utensílios domésticos – tipiti, cestaria, redes, arco, flexa, e paleontologia – fósseis de animais pré-históricos encontrados a 25 metros de profundidade e com idade média estimada entre 25 e 60 mil anos – enriquecem o acervo. Entre os fósseis se destaca a ossada de um boto. O maior réptil é uma sucuri anaconda.
|
Esqueleto de boto, com explicações: tesouro amazônico /M.CRUZ |
Foram muitas viagens, inclusive aquela na qual selecionou as peças da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré – placas de sinalização, pedaços de trilhos, instrumentos de trabalho em geral –que permaneceriam expostas. Do Acre vieram duas espadas que teriam pertencido ao comandante da Revolução Acreana, Plácido de Castro. Na entrada do prédio há uma pequena amostra de borboletas, besouros, pedras semipreciosas – topázio, ametista, quartzo, etc. Carapaças de quelônios de várias espécies estavam pendurados na parede. Uma das salas guarda aquários vazios, com restos de terra, crânios, pedras, em total desordem e semidestruídos.
|
Aquários, telhas e madeira amontoados /M.CRUZ |
O futuro em jogo
Mobília de época, fotografias históricas, a exemplo da foto da viagem inaugural entre Guajará-Mirim e Porto Velho pela extinta Viação Rondônia, em 1967, que ironicamente coincide com a paralisação da ferrovia. "O Imparcial", semanário da cidade noticiava na edição 479 a morte de cidadãos atingidos por flechas. Bem observado, o museu proporcionava ao visitante uma "viagem" ao passado distante, recente e ao presente.
E no futuro, haverá museu? Se depender do número de visitantes que até o fechamento se manteve na média de 60 por dia – entre brasileiros vindos de vários estados, muitos bolivianos e outros estrangeiros, o fim dessa história poderá ser outro.
Junto à estação, a locomotiva 4-6-0 Baldwin, n° 20, fabricada em 1909, n° de série 34.004, com farol Sunbean ainda
|
Desalento: nem o governo federal quer o museu |
é uma atração, especialmente para crianças. a praça da estação, lugar predileto para se fotografar, está exposta sobre um pedestal de 1,5 m uma belíssima locomotiva a vapor Mikado 2-8-2, n° 17, com a inscrição "Eng° Hildegard Nunes — EFMM" na cabine. A placa indica Berliner Maschinenbau Actien-Gesellschaft, 1936, n° 10.609, Vormla L. Schwarzkopff, Berlin Também nesta locomotiva está acoplado um vagão-prancha.
Presidente checo conhece o trem
GUAJARÁ-MIRIM, RO – Quando não se encontrava na prefeitura, José Máximo Lemos cuidava da manutenção dos poucos quilômetros ainda praticáveis no trem que voltou a funcionar em 1986 em Guajará-Mirim. O trem voltou para turista ver – e andar. Filho de maquinista, Lemos construiu uma modesta casa à beira dos trilhos e ali em frente estacionava o trole a motor utilizado na época para trabalhar na linha.
Levou muitos turistas até a Colônia do Iata, no antigo Km 330 da ferrovia. Em agosto de 2001 o então presidente da República da Tchecoloslováquia, Rudolf Schuster ali esteve, acompanhado de uns dez guarda-costas, segundo relatou Lemos. "Foram todos agachados em outro trole, atrás da gente. Olhavam tudo ao redor", lembrou.
|
Locomotiva 5, depredada, ainda resiste ao tempo ao lado do prédio do museu /M.CRUZ |
O presidente checo sentou no banquinho do trole, sorriu e não pronunciou uma só palavra a viagem toda, testemunhou o então funcionário Lemos. "Quando inteira, sem ladrões nem maus administradores, a EFMM foi digna de um estatuto de Patrimônio da Humanidade", afirmou à
Agência Amazônia o arquiteto Luiz Leite Oliveira, do Conselho de Administração da Associação dos Amigos da Madeira-Mamoré, com sede em Porto Velho. De acordo com Luiz Leite, hoje a situação é "desesperadora". As peças de altíssimo valor do museu da ferrovia, na beira do Rio Madeira, a título de reforma do prédio para a construção de um restaurante e da própria revitalização, foram amontoadas num barracão. Algumas sumiram.
Desativada e erradicada pelo regime militar, a Madeira-Mamoré foi substituída por uma rodovia entre 1966 e 1972. (A.M.M.)
Fonte: Montezuma Cruz - Agênciaamazônia é parceira do Gentedeopinião.