Riqueza desperdiçada na agricultura familiar amazônica polui solos e rios, exigindo ação imediata dos governos federal e do Pará. Em cada fecularia, uma tonelada de raízes produz três mil litros desse líquido, informa o pesquisador Raimundo Brabo Alves.
MONTEZUMA CRUZ
Agência Amazônia
BELÉM, PA – No rastro da roça sem fogo com bons resultados, um grave problema desafia o Pará: o despejo de um milhão 200 mil de metros cúbicos de manipueira por ano em rios e igarapés do Baixo Tocantins. Contendo ácido cianídrico, esse volume de líquido leitoso da prensagem da mandioca, liberado por 53 casas de farinha na zona rural dos municípios mandioqueiros da região, pode contribuir para a grande mortandade de peixes nos rios Guamá, Jeju e Moju. O ácido cianídrico é uma substância altamente tóxica que interfere na condução do oxigênio às células do organismo.
A situação foi constatada pelos pesquisadores Raimundo Nonato Brabo Alves e Sônia Botelho, da Embrapa Amazônia Oriental. A exemplo da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, eles aguardam respostas com vistas a solucionar esse problema que afeta atualmente a comunidade farinheira paraense.
Há mais de seis anos, a Unidade Experimental de Pesquisa Ambiental do Centro Universitário Luterano de Santarém projeta o reaproveitamento do rio Moju com tambaqui, uma das principais espécies amazônicas. Esse peixe pode alcançar até 20 quilos.
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A exemplo dessa casa de farinha no velho método artesanal, em Igarapé-Açu, a maioria das casas não aproveita a manipueira liberada diariamente /EMBRAPA
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O sabor adocicado da manipueira atrai peixes e animais. “É preciso pesquisar a fundo para se concluir o quanto a toxicidade prejudica os cardumes”, propõe Sônia Botelho. “É um grande problema, porque, em cada fecularia, uma tonelada de raízes produz três mil litros de manipueira”, explica Brabo Alves. “E o número vem aumentando a cada ano”, alerta o pesquisador.
Há relatos de morte de animais que beberam da água aonde ocorreram descargas da manipueira. A mortandade de peixes é fato comum. Na fabricação da farinha, devido à forma como as raízes são processadas, a concentração da manipueira em matéria orgânica e linamarina (princípio tóxico da mandioca) é muito elevada, correspondendo à fração aquosa da raiz. O potencial tóxico e poluente é agravado, principalmente, por ser a linamarina muito solúvel em água.
Vivem da farinha
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"Estamos jogando ouro fora", queixa-se a pesquisadora Sônia Botelho, da Embrapa Amazônia Oriental /MONTEZUMA CRUZ
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Ouvidos pela Agência Amazônia, os dois concordam num aspecto: se esse líquido for armazenado em tanques apropriados para ser comercializado com pecuaristas, perde a toxidade e deixa de poluir o solo e as águas, por infiltração. A renda pode se reverter em benefício dos próprios farinheiros. “Transformada, a manipueira serve para adubação, controle biológico de pragas e fertiirrigação do solo”, lembra Sônia. “Estamos jogando ouro fora”, adverte.
A socióloga e pesquisadora Dalva Maria da Mota lembra que, a partir de 1980 o cultivo da mandioca na região de Moju intensificou-se por conta da venda da farinha. “A comercialização desse produto também foi facilitada pela ação sistemática de atravessadores (intermediários que recolhem os produtos nos próprios povoados para revendê-los)”, ela observou.
“Embora os valores adquiridos com a venda da farinha não sejam altamente compensadores, atualmente a atividade garante trabalho a toda a família e a renda gerada continua possibilitando a aquisição de produtos da cidade (principalmente alimentos e remédios), que cada vez mais substituem os produtos da floresta. Esse sistema assegura, portanto, a reprodução social da comunidade”, analisou.
Requerimentos de patentes por pesquisadores brasileiros para a fabricação de biofertilizantes ou para a obtenção da manipueira em pó continuam emperrados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. No ano passado, ao receber do deputado Fernando Melo (PT-AC) fotos mostrando o despejo da manipueira a céu aberto no município de Sena Madureira (AC), o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende Machado, mandou vasculhar processos no Rio de Janeiro, mas ainda não há resposta aos pedidos.
Riqueza desperdiçada
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Resultado disso é que o líquido leitoso da mandioca se infiltra no solo e corre para os afluentes e até para grandes rios. É o caso do Moju, cuja pesca há anos está ameaçada por substâncias tóxicas /MONTEZUMA CRUZ "
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O Pará produz 4,5 milhões de toneladas de raízes de mandioca e os seus 300 mil hectares cultivados representam R$ 500 milhões na economia paraense. É a terceira cultura em ocupação de mão-de-obra, com um total de um milhão de empregos, quase todos na fabricação de farinha.
No ano passado, por causa de ratos, baratas e descarte inadequado, duas casas de farinha foram fechadas pelo Ministério Público em Santa Maria, nordeste do estado, a 150 quilômetros de Belém. Cerca de 150 famílias sofreram as conseqüências. Registraram-se casos de diarréia.
O avanço das experiências no Baixo Tocantins mostram um contraditório: enquanto o Projetos Tipitamba, Roça Sem Fogo e Sistema Bragantino permitem que pequena agricultura do Baixo Tocantins possa se candidatar aos créditos de carbono, não conseguiram até agora evitar que as farinheiras despejem seus resíduos na natureza. Paralelamente, os pequenos agricultores sofrem com o vazamento da chamada “lama vermelha” da planta industrial da Alunorte, em Barcarena.
Tanques de azulejo
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Centro Universitário Luterano, de Santarém: projeto para repovoar o rio Moju com tambaqui /ULBRA
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De cada quatro toneladas de raiz, uma tonelada é da parte aérea da mandioca. A manipueira é rica em micronutrientes, especialmente fósforo e potássio, lembram os pesquisadores da Embrapa. Animais bovinos que a consomem, após dois dias de teste, engordam até um quilo por dia, registra o pesquisador Mauto de Souza, da Embrapa Mandioca e Fruticultura Tropical, em Cruz das Almas (BA). Mas o empresariado desconhece o assunto.
Consultadas, as prefeituras admitem construir tanques azulejados, retirando assim o odor característico e nauseante desse resíduo. Segundo Brabo Alves, a Secretaria de Meio Ambiente atua na mesma linha e poderá ter o apoio do Sebrae, que tem estudos para o aproveitamento sustentável da manipueira.
Fonte de consultas
Ao mesmo tempo em que a manipueira é um potente agente poluidor, dezenas de vezes superior ao esgoto doméstico, ela é também uma oportunidade devido ao seu multiaproveitamento. Além de alimentar bovinos e adubar o solo, ela também serve para fabricar tijolo, sabão, e para a produção de biogás.
O sistema de saúde público do Pará ainda não estudou o relacionamento entre a insalubridade dos resíduos de mandioca nos locais de produção com doenças que afetam os moradores locais. A Embrapa aponta a saída: a consulta aos estudos de seus pesquisadores.
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Pesquisador Brabo Alves alerta: número de farinheiras aumenta, mas falta controle ambiental /MONTEZUMA CRUZ
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Segundo Mauto de Souza, em Macaíba (RN), o aproveitamento da manipueira evitou a poluição do solo e do rio Jundiaí. “Não há mais mortandade de peixes e aumentou a renda dos produtores rurais, resultado do aumento da produção de leite e uma sensível redução dos gastos com a compra de fertilizantes industrializados, desde que a manipueira passou a ser usada como fertilizante e complemento alimentar para os animais”, ele registra.
Dramas são conhecidos
há duas décadas
BELÉM – Este município com mais de nove mil quilômetros quadrados de área é um dos sete perpassados pelo mineroduto de bauxita da Mina Paragominas, que possui 244 km de extensão. Outro drama do rio Moju é a existência de mercúrio em suas águas.
Em sua tese de doutorado, o médico veterinário Nilton Massuo Ishikawa, do Centro de Aqüicultura da Universidade Estadual Paulista em Jaboticabal (SP), menciona pesquisa de avaliação de peixes do reservatório da hidrelétrica de Tucuruí, em 1995 pelo cientista Petri Porvari, da Universidade de Helsinque (Finlândia). Ele constatou altas concentrações de meltimercúrio em peixes predadores; concentrações intermediárias em peixes planctófagos e omnívoros; e concentrações baixas em peixes herbívoros.
Segundo registro do Comitê Popular de Resistência Amazônica, nos anos 1980 cerca de cem representantes de comunidades quilombolas – há oito na região – pintaram o rosto com carvão e invadiram a cidade para capturar três pistoleiros que haviam torturado e matado um quilombola. Na ocasião, moradores da Comunidade de São Bernardino denunciaram a mortandade de peixes; o assoreamento dos igarapés; a mudança no gosto da água; a intrafegabilidade dos ramais (pequenas estradas na floresta), a morte de suas centenárias castanheiras; e a redução da caça. (M.C.)
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Fonte: Montezuma Cruz - A Agência Amazônia é parceira do Gentedeopinião