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Montezuma Cruz

'Um filme com muita pancadaria, especial para Espigão do Oeste'


  

RONDÔNIA DE ONTEM'Um filme com muita pancadaria, especial para Espigão do Oeste' - Gente de Opinião


MONTEZUMA CRUZ
Editor de Amazônias

 

O que se passa na cabeça de um locutor de alto-falante de interior ao reconhecer a sua cidade como palco de disputas fundiárias, invasão de terras indígenas, enfim, um autêntico faroeste neste canto amazônico ocidental? Ele conhecia muito bem a realidade e até ironizava a triste sina de um lugar marcado por ações policiais violentas, jaguncismo e desmandos do Incra.

A caravana de dirigentes e candidatos arenistas (*) deixava a BR-364 às seis horas da manhã de um dia de novembro de 1976, rumo a Espigão do Oeste, penúltima etapa da viagem de quatro dias, desde Porto Velho.

Cobri essa excursão para o jornal A Tribuna. Cheguei a Espigão, uma vila de agricultores capixabas, paranaenses e nordestinos que haviam colhido uma boa safra de arroz naquele ano, mas não tinham estradas para escoá-la. Suas casas eram todas de madeira. Cavalos pastavam no meio da rua e seus donos os amarravam em tocos, andando armados.

No começo da tarde a caravana entrava na vila, sob forte calor. Caetano, o dono do serviço de alto-falante anunciava a programação do cinema local: “Não percam, hoje, Vulcan, o filho de Júpiter. Um filme com muita pancadaria, especial para Espigão do Oeste!”.

'Um filme com muita pancadaria, especial para Espigão do Oeste' - Gente de Opinião
Cavalo na rua, homens armados, polícia arbitrária, disputa de terras: assim começou Espigão do Oeste /IRMO CELSO–Veja

Caetano diminuía esse tom entusiasmado ao perceber o ônibus da Viação Rondônia no qual viajavam os políticos, quase todos eles candidatos a vereador. Na época do território federal, governadores eram nomeados. Só havia eleições para deputado federal e para as Câmaras Municipais de Porto Velho e Guajará-Mirim.  “Vamos saber quem vem aí nesse ônibus e daqui a pouco daremos novidades aos nossos queridos ouvintes” dizia o locutor.

Não houve comício. Naquele dia o Ministério da Saúde promovia vacinação em massa contra a febre amarela e a fila extensa no posto de saúde fazia concorrência aos candidatos. O remédio foi visitarem as casas para distribuir panfletos e conversar ao pé do ouvido.

A fama de lugar violento vinha da arbitrariedade policial ali ocorrida ano antes. Em 23 de abril de 1975, o luterano Martino Tesch enviava carta para Amizael Silva, então chefe de gabinete do prefeito arenista de Porto Velho, Odacir Soares. Media as palavras, mas exprimia emoção: “Considerando que fazemos parte da população de Espigão do Oeste, explico ao senhor que ficamos chocados com as palavras dirigidas à nossa gente pela comissão do governo e do Incra. Ficamos numa situação embaraçosa, pois sentimos que perdemos a segurança de nossos direitos. Há casos criados por elementos que se dizem protegidos pelo Incra que promovem conflito com os colonos da Itaporanga (colonizadora). A insatisfação é geral e a qualquer momento, já que não temos polícia eficiente, poderá estourar uma manifestação contrária às mormas da lei”.

Dias depois da carta, Tesch e o colonizador Nilo Tranqüilo Melhorança chegavam aflitos à casa do governador interino Roberto Borborema. Na ausência do governador João Carlos Marques Henriques Neto, que estava em Brasília, eles denunciavam o Incra por querer diminuir o tamanho do lote para cem hectares e exigir a retirada do interdito proibitório.

Vinha a revolta. Os colonos serravam uma ponte sobre o igarapé Amola Faca, a fim de impedir a passagem de funcionários da Secretaria de Agricultura e Colonização e do Incra. Também interditavam o campo de pouso – ainda não havia aeroporto. A essa altura, o corte das terras seria feito em módulos de 42 alqueires.

Vigiados pela polícia de Vila Rondônia (mais tarde Ji-Paraná), os colonos acusavam funcionários do governo e do Incra – que ocupavam a mesma sala – de maltratar as pessoas e instigá-las a promover discórdias “umas contra as outras”.

No estilo dos lendários cangaceiros de Lampião, policiais invadiam Espigão, prendiam e abusaram de colonos. Sucedeu-se um entrevero entre o vereador arenista Amizael e o secretário de Segurança, Arthur Carbone, que prometia apurar os fatos, admitindo haver “culpados no âmbito da polícia e no círculo de elementos estranhos a ela”.

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Governador Marques Henriques (em solenidade na frente do Palácio Presidente Vargas) estava em Brasília quando moradores denunciaram a situação em Porto Velho /ARQUIVO GOVERNO DE RONDÔNIA

O secretário o acusava de fazer sensacionalismo nas páginas de O Guaporé. Amizael revidava: “O Sr. Carbone pretendia confundir as coisas, tentando minimizar a culpa de seus comandados, uma vez que a punição aos culpados era, na realidade, o que todos esperavam”.

Mesmo sendo o “partido da situação”, a Arena se rebelou contra a polícia territorial. Seu presidente regional, Cézar Zoghbi, reunia-se com o governador Marques Henriques e manifestava à imprensa o seu descontentamento. “A Arena não é contra os atos da polícia ou de qualquer outra autoridade para punir os corruptos, os marginais de qualquer espécie, agitadores etc, desde que essa punição seja executada dentro das normas da lei, mediante inquérito com amplo direito de defesa aos acusados, como sempre preconizou o nosso presidente Geisel. A Arena é sim, contra a violência, a desumanidade, castigos corporais, sem que ao menos se distinga mulheres e crianças”.

O governador Marques Henriques mandava abrir inquérito e punia os infratores, demitindo-os da Guarda Territorial, a polícia da época. Tudo parecia solucionado, quando Henriques deixava o cargo e era substituído pelo coronel Humberto da Silva Guedes, outro da confiança do general Geisel, escolhido a dedo para Rondônia.

Mudava o governador, mas Carbone fora mantido na Segurança Pública, nomeando um dos seus ajudantes para delegado de polícia em Vila Rondônia. Com poucos dias no cargo esse delegado ordenara a reabertura do processo de Espigão, na tentativa de enquadrar 12 agricultores na Lei de Segurança Nacional (*). Situação semelhante ocorreria cinco anos depois no conflito da Fazenda Cabixi, em Colorado do Oeste.

 

 

(*) Arenistas eram os filiados à Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido que apoiava o governo durante o regime militar.


(*) A Lei de Segurança Nacional, promulgada em 4 de abril de 1935, definia crimes contra a ordem política e social. Sua principal finalidade era transferir para uma legislação especial os crimes contra a segurança do Estado, submetendo-os a um regime mais rigoroso, com o abandono das garantias processuais. Foi revogada após a Campanha pela Anistia, entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980.

 

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