Areia, pedras e galhos obstruem “estrada” dos ribeirinhos, causando acidentes. Melhor jeito de viajar no verão é usar a rabeta.
MONTEZUMA CRUZ
Agência Amazônia
RIOS AMÔNIA E JURUÁ, AC – A viagem entre Marechal Thaumaturgo e o Lago Ceará, na Reserva Extrativista do Alto Rio Juruá expõe a verdadeira face da Amazônia sem estradas e com suas águas poluídas por sedimentos, galhos de árvores e com muitos trechos assoreados. Décimo sétimo rio do mundo, o Juruá vem sendo vítima da “poluição” pela própria natureza, a exemplo de outras águas no período do verão (seca) em estados do norte brasileiro.
Pelo menos dez vezes a lancha voadeira parou. Seus condutores se revezaram numa espécie de via-sacra aquática sem altar, exigindo muita paciência para chegar ao Lago do Ceará, alcançado pelos rios Amônia e Juruá. Só canoas com motores de rabeca viajam normalmente. Seus pilotos sabem que não serão prejudicados. Tanto vencem trechos com menos de meio metro d’água, quanto os “encachoeirados”, próximos a pedras e onde a profundidade alcança dois metros e a correnteza pode provocar acidentes.
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15h de sabado: Marlon conserta o motor-de-pôpa da lancha, avariado no percurso entre Marechal Thaumaturgo e a Resex Alto Rio Juruá /MONTEZUMA CRUZ
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(Leia informações a respeito do rio Juruá na reportagem anterior)
O “carro do ribeirinho”
É de 60 litros o consumo de óleo combustível numa lancha na viagem de ida e volta entre o porto de Thaumaturgo e a Resex. Nossa lancha levou um tambor reserva de 20 litros. A área portuária da cidade possui três pequenos embarcadouros, onde se adquire óleo.
Com as curvas, povoadas de praias, 40 quilômetros do percurso se transformam em quase cem. O vaivém de canoas levando bebês, crianças e adultos incorpora-se à paisagem. Entre eles são intercalados colchões, malas, baldes, gêneros alimentícios e o que mais for possível transportar sob o mormaço ou debaixo de chuva. Os mais cuidadosos não ligam o motor sem levar uma lona para cobrir as “traias”.
No trecho entre a sede do município e a Resex são bem visíveis nos barrancos os buracos feitos por caranguejos. Parece um tabuleiro. Bois descem de uma altura de dez a 30 metros para as praias, ali permanecendo até o entardecer. Alimentam-se no viçoso capinzal.
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Árvores inteiras caem na água, são arrastadas, obstruem o caminho das embarcações e ficam anos ali /MONTEZUMA CRUZ
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Perto do rebanho vêem-se uma árvores imbaúbas uma ao lado da outra. Nasceram e cresceram assim. Na beira da água há marrecos, urubus e garças-brancas. No alto das árvores, ninhos de japiim, um pássaro conhecido pela imitação do som de outros, entre os quais, periquito, arara, tucano e capitão-do-mato.
Lancha puxada por cordas
A voadeira não vence duas “cachoeiras” – trechos de correnteza. No atual período de seca, os pilotos têm que descer e puxá-la por cordas. Foi o que ocorreu sábado à tarde com os jovens Marlon da Silva e Átilon Pinheiro. A lancha deixou de navegar e precisou ser arrastada. “No inverno é bem mais fácil”, diz Pinheiro.
A cada curva de rio, a cada quilômetro de praia, galhadas e troncos surgem à frente. Estão ali inertes, há muitos anos, atrapalhando a navegação de canoas, barcos, lanchas voadeiras e dos batelões. Galhos, areia e pedras danificam as hélices das embarcações. Potência não conta nessas viagens. Só os motores dois tempos com rabeta obtêm êxito.
Se alguém conseguisse retirar das águas galhos e árvores inteiras liberados do alto dos barrancos, teria um estoque de lenha suficiente para alguns anos. Ninguém, nem o poder público se interessa por essa lenha. A lenha levada pela correnteza se espalha por quilômetros nos leitos obstruídos dos rios Amônia e Juruá.
“Aqui é assim mesmo”, diz o piloto conformado
LAGO DO CEARÁ, AC – À noite, Marlon da Silva se revela um pé-de-valsa – ou pé-de-xote. Dança à vontade, com todas as meninas e mulheres, sejam amigas, primas ou sobrinhas. O baile é improvisado numa sala e num dos quartos da casa de madeira de um morador.
Amanhece o domingo e o som de um CD repete bregas dos anos 1970 e 80. São 6h30: o sol penetra na neblina que ainda cobre lavouras de fumo e feijão, pomares, escolinha, casas, e os abrigos de bois, cabritos, porcos e ovelhas. Alguns dançarinos reclamam do fim da festa, outros reclamam e se deitam no assoalho do casarão de dona Ainda Guimarães, o ponto de encontro das famílias deste canto da Reserva Extrativista Alto Rio Juruá.
Visitantes e moradores caminham até a beira do rio para a despedida. Já sabem que lanchas voadeiras não terão vez, mesmo com potentes motores-de-pôpa. Para vencer as distâncias, devagar e sempre, vale muito mais a pequena hélice da rabequinha, girando feito cata-vento.
– Aqui é assim mesmo, toda vez que seca. A gente se acostuma a fazer o povo descer, enquanto a gente puxa ou empurra, principalmente lanchas – comenta o sorridente Marlon, sem demonstrar o mínimo estresse com a profissão. (M.C.)
No campinho de futebol, crianças e animais
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7h da tarde (não há horário de vão na Resex): meninos e meninas vão começar o joguinho de futebol; ao fundo, bois passeiam dentro do campo/MONTEZUMA CRUZ
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LAGO DO CEARÁ, AC – Primeiramente entram os cachorros, depois ovelhas e cabras, enfileirados. Em seguida, bois e vacas atravessam o gramado em busca de abrigo. Nuvens escuras cobrem o céu do Lago do Ceará, mas os pequenos jogadores de futebol não estão nem aí: jogam, gritam e sorriem.
Meninos e meninas só não se mostram indiferentes aos visitantes no momento em que são chamados para fotos. Como gostam! Querem vê-las em seguida ao clique, comentam cada cena retratada.
O campinho não possui círculo central, meia-lua, áreas e laterais demarcadas. As traves são de pau. O que move cada um é a vontade de correr, se conhecer, brincar. Fazem isso quase todo dia, relatam, sem participar das discussões de pais e professores que se irritam com a Prefeitura de Thaumaturgo, por causa da substituição de merendeiras sem contrato permanente.
Risco no transporte
As “arengas” se sucedem, como em todas as cidades nas quais os mandantes da educação fingem ignorar a realidade de pais e professores. Adultos analfabetos perdem a oportunidade de aprender a ler e a escrever. A escuridão das letras é tão ruim quanto a falta de energia elétrica no lugar. Querem que o município contrate pelo menos duas pessoas para conduzir as crianças que vêm de praias distantes – da Fazenda Natal (Caipora), Breu, Pintada, Caiporinha, Tartaruga, Fazenda Cachoeira e Belfort – para aprender na escolinha. Viajam em canoas pelo rio Juruá. O piloto não pode cuidar delas e, ao mesmo tempo, conduzir o veículo.
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Marcos, Messias e Milene com o "troféu" do Lago Ceará: um jabuti /MONTEZUMA CRUZ
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Marcos, Messias e Milene, estudantes da primeira série e do pré-escolar, respectivamente, adiantam-se para mostrar as coisas do lugar. Deixam o campo depois de meia hora, com o placar de zero a zero, levam o repórter aos barracões onde são secas as folhas de fumo e armazenados alguns sacos de feijão.
– O senhor já viu esse bicho? É uma tartaruga viva – diz Messias, erguendo o bicho.
A facilidade com que brincam com animais impressiona. Minutos depois de apresentar o quelônio, o menino convida o repórter para assistir à revoada de papagaios e maracanãs. O barulho dos pássaros é incrível. Todos olham para o alto. (M.C.)
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Analfabetismo...
O repórter passou o feriadão em comunidades do no Alto Rio Juruá, na fronteira brasileira com o Peru. www.twitter.com/MontezumaCruz
Fonte: Montezuma Cruz - A Agência Amazônia é parceira do Gentedeopinião