Terça-feira, 6 de novembro de 2012 - 07h20
O sentimento de insegurança generalizado faz pensar em alternativas que não são novas e nem inovadoras, mas que funcionam como formas de avivamento da violência institucional. Do Estado Penal à subtração dos direitos civis, como no Patriot Act, da edição de leis “pesadas” – como no RDD – aos acordos com a máfia do crime organizado, tudo quer se passar como ação institucional em favor da ordem e da paz social. Ocorre que, quando temos tudo isso misturado, sem propor uma alternativa legítima, o que se faz nada mais é do que recuperar formas de poder perigosas do passado. São formas autocráticas e ilegítimas de poder porque, sem legitimidade real, apenas encontravam eco nas próprias leis injustas criadas para justificar o poder autocrático.
Neste sentido, o maior perigo que ressoa da onda de violência que ocupa o Estado de São Paulo, ao menos desde o triste episódio do Carandiru e a posterior formação do PCC (como pior facção do crime organizado), é a retomada de medidas de exceção para conter os efeitos da guerra civil provocada pelo próprio Estado. Ao não-combater adequadamente, ao estimular a formação de um monopólio criminoso, o Estado foi uma espécie de agente duplo. Ao permitir a formação dessa estrutura mafiosa ramificada no Estado, o Estado colocou a sociedade em uma situação muito grave e indefesa, como refém. Há muito tempo que se ouve, que se fala que o PCC financia a formação de profissionais do direito, seja para a advocacia, seja para a magistratura – alguns receberiam, inclusive, incentivos para se formarem no exterior. A facção criminosa também investiria na eleição de candidatos que depois representariam seus interesses no Legislativo. Sem contar que os “advogados do PCC” contrariam toda prerrogativa legal da própria advocacia.
O maior perigo, portanto, vem da justificativa de que para conter a crise de segurança pública, social, jurídica, moral, possam algumas estruturas do direito nazista ser resgatadas, fazendo-se substituir a inteligência social pela força bruta e pelos mecanismos de exceção. Não há diferença alguma entre os grupos de extermínio formados por policiais no Estado de São Paulo e o famoso Esquadrão Le Cocq, criado no Rio de Janeiro na década de 1960. A escuderia foi criada, como vingança pública, para vingar a morte de Milton Le Cocq: policial e integrante da guarda pessoal de Getúlio Vargas. A escuderia Le Cocq já transformada em associação reuniu mais de sete mil membros. De vingança privada institucionalizada, colocou-se o nobre objetivo da repressão ao crime. Seus líderes eram policiais pertencentes à força de elite da polícia, e queriam "limpar" a cidade.Quando o Estado permite que atuem esquadrões da morte, diretamente copiados ou inspirados no passado, sua inércia se assemelha aos grupos de extermínio da polícia secreta nazista: SS.
Pode-se dizer com segurança que o Estado de Direito Nazista, de modo geral e, mais especificamente, o direito penal são herdeiros do Direito Germânico e da aberrante figura do homem-lobo. O crime contra a ordem pública sofria a pena do banimento direto: negava-se o habitare inter homines.
De certo modo, é assim que se reinventa e se redefine de maneira viável o significado do bellum omnium contra omnes; o “homem, lobo do homem”, do Estado-Leviatã hobbesiano. Dos históricos fundamentos do Estado Moderno à atual fase do Estado Penal, em que há um direito para amigos e outros para os inimigos, houve um interstício nazista.
No nazismo vigorava uma lógica hitleriana, em que o Estado seria originário e devedor da comunidade do povo – a Nação, ela própria fundada na comunidade do sangue e do solo. À frente sempre estivera o Mito da Raça Ariana, como defesa contra à contaminação inerente à inferioridade das demais raças (negros, judeus, ciganos) e minorias ou oposições (comunistas, liberais, democratas, socialistas, humanistas):
A “comunidade do povo” somente se expressava através do espírito “guiador” do Führer(Fürhung: orientação do chefe); o direito era o seu pensamento, prevalecente à lei escrita. É dizer, vigorava o sistema do líder, o Führerprinzip, o caudilhismo exacerbado. O nacional-socialismo de Hitler, em 1935, suprimiu o princípio da legalidade [...] Em seu lugar, passou a vigorar: “nenhum delito sem pena” (Arruda, 2009, p. 143 – grifos nossos).
Nunca em toda a história da civilização o direito foi tão politizado, isto é, armado em decorrência dos interesses do Estado e do status quo. O fim justificaria a perseguição de todos os meios disponíveis ou possíveis para a consecução da defesa do povo, a elevação ética da nação e o direito penal seria uma real arma da auto-polícia, a supressão das liberdades civis, o poder repressor de toda sociedade. Este que seria o âmago do chamado Estado de Polícia, capitaneado pela Gestapo (polícia política):
A função histórica do Estado absoluto consiste em reconstruir (ou construir) a unidade do Estado e da sociedade, em passar de uma situação de divisão com privilégios das ordens (sucessores ou sucedâneos dos privilégios feudais) para uma situação de coesão nacional, com relativa igualdade de vínculos ao poder (ainda que na diversidade de direitos e deveres) (...) Sobretudo no século XVIII, a lei prevalece sobre o costume como fonte do Direito e esboça-se o movimento de codificação, reforça-se a justiça, consolida-se a função pública, criam-se exércitos nacionais e o Estado intervém em alguns setores até aí ignorados da cultura, da economia e da assistência social. Incrementa-se, entretanto, o capitalismo, primeiro comercial, depois industrial, e a burguesia revela-se o setor mais dinâmico da sociedade (Miranda, 2002, 44).
Um Estado policialesco em que se vigiava a vida pública e moral privada. A ação de controle da vida pública e privada, advém da intervenção cultural, moral. O controle social, ao invés de se entender como regulação da autonomia, fulgura como função pública, policialesca. A repressão cultural, em nome da estabilidade social, no fundo revelaria os germes do Estado Capitalista em pleno desenvolvimento. As principais instituições repressivas foram transmitidas por Erik Wolf, um dos pensadores do nazismo:
a)A pena careceria de eficácia ortodoxa [...] seu endereço era apenas segregar/aniquilar quem atacasse o povo alemão; b) A pena capital [...] era executada pela decapitação ou forca [...]; c) Ressurgiram os castigos corporais e a proscrição (banimento), correspondente à morte civil[...] g) Suprimira-se a linha divisória entre a autoria e a participação acessória, entre a consumação e a tentativa (todo o ato preparatório era punível) (Arruda, 2009, p. 144 – grifos nossos).
No período imediatamente anterior, coincidente à Constituição de Weimar, estava em gestação um tipo de Estado Cultural, ainda no pré-guerra da década de 40:
De uma garantia expressa como essa resultam os direitos fundamentais das Constituições, como por exemplo a igualdade perante a lei, a liberdade pessoal, a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, a liberdade de associação e de reunião, a liberdade de imprensa, de profissão, de coligação, de ir e vir. O traçado dos limites entre a atividade do Estado e a liberdade do cidadão está subordinado à história, como pode ser evidenciado através dos direitos econômicos, a liberdade de propriedade e de contrato; a antiga doutrina liberal desenvolvida especialmente por W. v. Humboldt (1792), de que o Estado enquanto ‘Estado de direito’ (em sentido restrito da palavra) deveria limitar-se a assegurar seus membros contra a injustiça, foi substituída pelo pensamento socialista de que o Estado, como ‘Estado Cultural’, deveria preocupar-se também com sua promoção positiva; mas para o pensamento constitucional é essencial que exista uma espécie de liberdade dos cidadãos separada do Estado, ao lado de sua participação no Estado, o que, em sentido menos restrito, também serve à idéia de Estado de direito (Radbruch, 1999, p. 43).
Ainda reafirmava-se o atavismo: teria jurídica da superioridade da raça ariana. Por ser contra toda esta orientação jurídica, Radbruch (1999) perdeu sua cátedra e prestígio como jurista.
Desse ponto de vista, está em andamento a frenética luta pela sobrevivência do próprio Estado, na eterna Luta por Conservação, e o poder supremo (do direito de gládio clássico ao patria potestas) que se iniciara no Alto Renascimento. Como escreveu H. Arendt, estão são definições milenares do poder, um poder que se busca divino e, como tal, não deveria suportar superlativos (tal qual a soberania):
Mais ainda, este antigo vocabulário foiestranhamente confirmado e reforçado pelo acréscimo da tradição judaico-cristã e sua “concepção imperativa da lei”. Este conceito não foi inventado pelos “realistas políticos”, sendo antes o resultado de uma generalizaçãomuito anterior e quase automática dos “mandamentos” de Deus, de acordo com a qual “a simples relação de comando e obediência” já era de fato suficiente para identificar a essência da lei (Arendt, p. 33 – grifos nossos).
Não se trata, então, simplesmente de um Mito do Poder? Toda lei, portanto, congrega plenos poderes. Como nos ensinou Foucault:
O poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la [...] Poderia ter tomado, em outro nível, o exemplo da pena de morte. Por muito tempo, ela foi, juntamente com a guerra, a outra forma do direito de gládio; constituía a resposta do soberano a quem atacava sua vontade, sua lei, sua pessoa(Foucault, 1988, pp. 127-9 – grifos nossos).
Sob o forte estímulo da pena de morte, aplicada contra os crimes de lesa majestade e/ou lesa pátria, a ultima ratio e o pater familias finalmente se uniram na Lei de Plenos Poderes nazista: a lei que naturalizou o homo sacer e o homem-lobo.
O Estado de (não)Direito Nazista, portanto, aplicava-se mais à exceção da lei do que e pautava por qualquer referência a princípios. A regra era, a partir de então, o que ressoava da própria exceção legal:
Não é a exceção que se subtrai à regra, mas a regra que, suspendendo-se, dá lugar à exceção e somente deste modo se constitui como regra, mantendo-se em relação com aquela. O particular “vigor” da lei consiste nessa capacidade de manter-se em relação com uma exterioridade [...] Na exceção soberana trata-se, na verdade, não tanto de controlar ou neutralizar o excesso, quanto, antes de tudo, de criar e definir o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter valor [...] Quando nosso tempo procurou dar uma localização visível permanente a este ilocalizável, o resultado foi o campo de concentração. Não é o cárcere, mas o campo, na realidade, o espaço que corresponde a esta estrutura originária do nómos. Isto mostra-se, ademais, no fato de que enquanto o direito carcerário não está fora do ordenamento normal, mas constitui apenas um âmbito particular do direito penal, a constelação jurídica que orienta o campo é [...] a lei marcial ou o estado de sítio (Agamben, 2002, pp. 26-7 – grifos nossos).
Trata-se de um direito penal de regulação e valoração do político. A lei de exceção procura incluir a política de exclusão e, assim, o direito penal se associa ao Estado de Sítio.
A Legalidade era a voz do Führer (Fürhung: orientação do chefe). Os campos de concentração o ícone da negação do Estado de Direito básico: a) prevalência dos direitos individuais; b) divisão dos poderes; c) império da lei. Ou melhor dizendo, o império da lei, como máscara imoral do Princípio da Legalidade, acabou por subverter e subordinar os demais princípios que compõem o Estado de Direito.
Bibliografia
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Vinício Carrilho Martinez
RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo : Martins Fontes,1999.
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
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