Quinta-feira, 10 de abril de 2025 - 15h04
Quando vivemos tempos de retrocesso, em que
verdadeiras organizações criminosas assaltam o Estado, os cofres públicos,
algumas instituições e institucionalidades precisam ser retomadas, como se
precisássemos readquirir a legitimidade das ações, a boa fé pública, a garantia
de que as ações públicas, institucionais, não reverberem somente os interesses
egoístas, mesquinhos[1].
Esse é o sentido mais geral proposto pelo conto A sereníssima república, em que Machado de Assis (1994) diagnostica a multiplicação de regras (sem legitimidade) e, com elas, os defeitos da coisa pública. Afinal, velhos jogadores da política, com regras novas, no jogo da “soma-zero”, terminam em confronto para agir pelas “lacunas da lei”. Talvez um exemplo emblemático de um confronto como esse seja o dos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023, quando grupos (de dentro do próprio Estado e de civis comuns) que rejeitavam o resultado eleitoral tentaram agir pelas lacunas da lei, buscando enfraquecer as instituições. A resposta do Estado, buscando a criminalização e a punição, com base em regras previamente estabelecidas – Constituição Federal de 1988 e Código Penal –, reafirmou o papel da heteronomia1 como fundamento da ordem jurídica e democrática.
Costuma-se
associar heteronomia à autonomia: por oposição. Porém, o que faria mais
sentido, do ponto de vista pragmático, seria a similitude negativa (por
exclusão) entre heteronomia e anomia: sendo a primeira uma imposição de
regras e de normas de forma coercitiva e generalista e, por exclusão, a anomia
implicando na “ausência de regras” ou em sua total ineficácia. A heteronomia se
associa a um sentido de organização (normas que normalizam sistemas e
funcionamentos), ao passo que a anomia aponta para o desmonte de uma “ordem projetada”,
e assim implica numa desordem do status quo. Pensemos na pandemia de
COVID-19: a fragilidade ou até mesmo ausência de normas sanitárias defendidas
por algumas figuras políticas e até mesmo do campo médico levou a situações de
quase anomia. A força da heteronomia é visível em casos em que foram
implementadas medidas como o uso obrigatório de máscaras e o distanciamento
social. Nesse período de crise, a heteronomia organizou a vida coletiva mesmo frente
à resistência de grupos que reivindicavam uma autonomia plena e irresponsável –
os chamados “não-vacinados”, ligados a um amplo segmento que defende a
“antivacina”.
Se a autonomia é associada à liberdade
(ou até emancipação), “tomar as rédeas para si”, controlar as escolhas e os
caminhos adotados, a heteronomia não implica exatamente no seu oposto, uma vez
que as escolhas continuam (ou podem continuar) a existir; apenas, digamos
assim, não são escolhas aleatórias, uma vez que ocorrem dentro de um cenário
possível (previsível), mais ou menos delimitado como horizonte dos fatos. E dessa
forma, a autonomia assinala a liberdade positiva (uma suposta “livre escolha”)
e a heteronomia sinaliza para a “liberdade negativa”: para garantir a liberdade
no exercício da cidadania, o Estado tem que ser limitado em seus poderes.
É dentro dessa “liberdade
comprometida” pela margem de ação, pelos marcos decididos, pelas regras
minimamente ajustadas, que a liberdade se manifesta: nunca haverá liberdade
plena, total, como um ideal absoluto; especialmente porque “onde todos podem
tudo, ninguém pode nada” (e, neste caso, teríamos anomia). Esse princípio pode
ser observado nos debates sobre o PL das Fakenews (PL 2630/2020), no Brasil. O
projeto tem como objetivo regular as plataformas digitais para coibir a
disseminação de desinformação, mas os grupos contrários a tal proposta (aqueles
velhos jogadores da política) afirmam que se trata de ameaça à liberdade de
expressão. O PL sinaliza a necessidade de se criar limites institucionais que
garantam a convivência democrática no espaço público digital[2].
Não é que na heteronomia a liberdade
seja vigiada ou que não exista autonomia nenhuma[3], mas sim que seja
definida, delimitada para todas e todos. Há um marco legal, ético, político,
cultural em que certas coisas, ações, decisões, são possíveis, aceitadas, e
outras são recusadas, anuladas, condenadas. Por exemplo, diante da
racionalidade o negacionismo deve ser recusado, atacado em qualquer tentativa
de validação.
Desse modo, a heteronomia pode ser
associada ao Estado – como ente jurídico e político – ou não, como ocorre no
interior de grupos, associações, comunidades, culturas, etnias que se
autorregulam: uma vez que se decida coletivamente (autogestão), a decisão só
tem sentido se for cumprida por todos os indivíduos (heteronomia). E implica,
ainda, dizer que a força impositiva das decisões (normatização), uma vez que
tenha transcorrido o momento das deliberações, deve ser geral e se fazer
presente nas ações de todos os indivíduos envolvidos. Portanto, na heteronomia
há forças[4] que se destacam pela generalidade,
anterioridade e coercitividade[5].
Também vemos que a heteronomia pode
decorrer da autonomia, aquele momento da liberdade criadora em que se corrigem,
afirmam ou constroem caminhos e decisões[6] – ainda que, em seguida,
devam ser aceitos e realizados por todos os indivíduos. É mais usual pesar-se
que a heteronomia venha listada junto ao aparato estatal, porque se pensa nas
regras e nas normas como atribuições advindas do Estado: o chamado monopólio
legislativo. Ocorre como se a normalização (o que é aceitável) derivasse
unicamente do Estado, sendo este a única fonte geradora validável das tais
normas e regras – chama-se isto de Positivismo Jurídico.
Enfim, heteronomia tem a ver com o
sentido amplo de hétero ou diferente: fora, acima, distante. A norma e a regra
surgem dentre os “mesmos”, a partir da vontade desses “mesmos indivíduos”, tidos
em liberdade e isonomia, porém, trata-se de um resultado (norma) com uma
constituição diversa, uma forma distinta, diferente das vontades iniciais. Há
um processo de subsunção, que se descola da origem, das parcelas de vontades
anunciadas e se converte em uma diretriz comum, uniforme, diretiva, e que volta
a regular inclusive os dados, indivíduos, vontades originais. Portanto, no
Brasil, a própria institucionalização da República precisa agir sobre nós com
força de heteronomia, em que não apenas acreditemos no ideal da salus
publica, da saúde preservada da Coisa Pública, e em que todas as “saúvas”
da corrupção pública sejam fortemente punidas. Antes que isso ocorra será
difícil associar o Estado brasileiro à instituição por excelência em
que ocorre (transcorre) a centralização e a organização do poder, em torno dos
interesses do nosso povo (dignidade), com a preservação da integridade do nosso
território e a afirmação da soberania (tendo-se a soberania institucional, mas,
igualmente a soberania popular).
Referências
ARENDT, Hannah. A
condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
DURKHEIM,
Émile. Sociologia. 4 ed. Org. José
Albertino Rodrigues. São Paulo: Ática, 1988.
KANT, I. A
paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990.
MACHADO,
de Assis. A sereníssima República e
outros contos. São Paulo: FTD, 1994
SIDOU, J.M. Othon. Dicionário Jurídico. 11ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
1 “Heteronomia jurídica. Sujeição
do indivíduo, ou assimilação por ele, aos preceitos do direito,
independentemente de sua vontade, mas decorrente da força coercitiva do Estado”
(Sidou, 2016, p. 305). Mais ampla do que a ação estatal, a Ágora, na Grécia
antiga, e os cantões suíços exemplificam a heteronomia enquanto “poder social”
(Arendt, 1991), pois os “cidadãos” participam dos debates públicos, opinam,
defendem suas teses e votam (hoje são os valores descritos como liberdade,
transparência, isonomia, autonomia). A tese vencedora, então, ganha “força de
lei”, impondo-se como regra abstrata, geral, comum, auto aplicada. Uma
assembleia de estudantes ou docentes teria a mesma finalidade e
institucionalidades semelhantes, como na decretação de uma greve. Seja na forma
estatal ou não, a heteronomia adquire a força coercitiva, ou seja, a “força de
lei” – “contra todos” (chamado de efeito erga omnes, uma regra auto
aplicada “contra todos”, vencidos e vencedores). Isso ainda nos revela o
sentido abstrato e universal da lei, como ficção jurídica que
decorre da intervenção política. Pode-se dizer que, em conformidade com a
fixação do poder social – para além da ação estatal – vigora o Princípio
Democrático constante na democracia direta ou participativa: a heteronomia que
se fundamenta na coletividade.
[1] Os ataques à educação e à saúde pública
são constantes: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/04/10/operacao-pf-sorocaba-desvio-recursos-publicos.htm.
Acesso em 10/04/2025.
[2] Em dezembro de 2024, deputados de
direita (Republicanos-AM e União-RJ) propuseram novo projeto de lei sobre o
tema, de caráter mais brando, como alternativa ao PL das Fake News. O texto,
que se coloca como Lei de Proteção às Liberdades Constitucionais, tem sido
visto como uma possibilidade de consenso. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/novo-projeto-da-centro-direita-vira-alternativa-ao-pl-das-fake-news-no-congresso/.
Acesso em 10/04/2025.
[3] Até pode ser que seja, como é comum em
Estados totalitários, teocracias.
[4] É interessante lembrar que, quando os
romanos estendiam sua cidadania aos povos conquistados assim promoviam a
heteronomia romana por meio da adesão, com a imposição da cultura do dominador.
A força aqui provinha da violência, mas depois se interpunha por meio da
cultura, de uma associação cultural.
[5] “É fato social toda
maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma
coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade
dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações
individuais que possa ter” (Durkheim, 1988, p. 52).
[6] Aqui também se associa a ideia de
legitimidade: “A minha liberdade exterior (jurídica) deve antes explicar-se
assim: é a faculdade de não obedecer a quaisquer leis externas senão enquanto
lhes pude dar o meu consentimento. — Igualdade, a igualdade exterior (jurídica)
num Estado é a relação entre os cidadãos segundo a qual nenhum pode vincular juridicamente
outro sem que ele se submeta ao mesmo tempo à lei e poder ser reciprocamente
também de igual modo vinculado por ela” (Kant, 1990, p. 128). Na ordem
democrática, a heteronomia exige a legitimidade das ações, ainda que na
sociedade de classes prevaleça apenas o princípio.
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