Domingo, 18 de novembro de 2012 - 15h13
Homo sacer:
A impunidade da sua morte
e o veto de sacrifício
Agamben
Nenhuma época soube menos
que a nossa que coisa é o homem
Heidegger
Um dos mais recentes ataques ao humanismo jurídico, ironicamente, procura no contrato social a justificativa para impor suas inflexivas penas cruéis. Alega-se que determinados crimes são cometidos contra a sociedade e não exatamente recaindo sobre as vítimas. Para esses casos, denominados de crimes hediondos, as penas deveriam ser específicas e o próprio direito deveria ser pensado de modo particular. Ao propor a defesa da sociedade, sob o codinome de direito penal do inimigo, esta vertente jurídica procura se legitimar como análise científica, histórica, filosófica, e vem daí a procura por ancorar-se em autores clássicos do contratualismo jurídico. O objetivo, portanto, é demonstrar que as bases da teoria contratualista, utilizadas para definir este chamado direito penal do inimigo, não são empregadas de forma adequada, mas sim parcial, desfocada e a partir de uma premissa ideológica em defesa da Razão de Estado. Demonstraremos, ao contrário do que supõe a teoria contratual do direito penal do inimigo, que há uma enorme tradição jus-filosófica que desautoriza o emprego da força, como violência física, a fim de legitimar o poder constituído. Na realidade, a mesma tradição incluiria Hobbes e Rousseau, como autores atentos à legitimação do poder e relutantes em afirmar o direito nas mesmas bases violentas em que se apoia a Razão de Estado: o direito deve sedimentar a unidade social conquistada pelo poder.
Ocorre que o chamado direito penal do inimigo busca apoio e legitimação nas teorias contratualistas, especialmente em Hobbes e Rousseau, alegando que se esta unidade social é ameaçada, a própria Razão de Estado estaria em risco. Em primeiro lugar confundem-se dois elementos que não se harmonizam, ainda que se aproximem: 1) a regra da Razão de Estado é a de “os fins justificam os meios”; 2) a unidade social – ainda que os neo-contratualistas não considerem a diversidade – concederia legitimidade à Razão de Estado e não o contrário. O direito penal do inimigo defende em missão de socorro o Estado (o criminoso é “inimigo de Estado”) e com isso a ultima ratio é, claramente, o poder e não necessariamente ou não exatamente o interesse social. Em síntese, em nome da defesa da ultima ratio do Poder de Estado, leis de exceção podem ser implementadas como se agissem em defesa da sociedade e, também por isso, ao se confundir propositalmente segurança pública e segurança nacional legitima-se a imposição de um Estado de Sítio Social. Em tempos de grave social, com a crescente escalada do crime organizado, a saída encontrada pelo Poder Público pode ser a recuperação da famosa Lei de Segurança Nacional e não propriamente a procura por debelar a crise social. Não é difícil perceber como composto (crise sistêmica) e componentes (criminalização das relações sociais) são intercambiáveis em nome de suposta segurança social – porque, na verdade, defende-se com medidas excepcionais o poder constituído.
Nesta liturgia jurídica do poder, alguns crimes surgem como atentados à constituição da sociedade, o que permitiria – legalmente – que o aparato repressivo do Estado os tratasse como “inimigos de Estado”, em um cenário de guerra civil. De certo modo, para que se legitimassem as tais medidas de exceção, a gravidade da crise sistêmica deve “evoluir” para a sensação de uma guerra civil. Na situação inusitada da guerra civil, aplicando-se medidas de exceção, quanto mais pânico melhor, mais fragmentadas as resistências e mais claras as “justificativas de poder extremo”. A exceção proposta pelo direito penal do inimigo, com bases contratualistas, deverá se expandir para formas de poder extremo; pois, “soberano é quem detém o poder de exceção”, já nos ensinou Carl Schmitt (2006). Inicialmente há algumas questões conceituais a serem enfrentadas: 1) o contratualismo também denunciou a injustiça social como originária da insatisfação com o status quo (especialmente Rousseau); 2) Hobbes aceitava o direito de insurgência em caso de graves injustiças (tirania); 3) o Estado reconhece a insurgência da guerra civil na sociedade capitalista quando convém, quando se trata de impor leis de exceção em defesa do capital e do Estado; 4) a sociedade não é, necessariamente, defendida dos chamados inimigos de Estado. Ao contrário do apregoado, o direito penal do inimigo propõe uma teologia do poder de Estado e não uma teoria contratualista do direito.
O contrato jurídico não comporta o direito penal
Mesmo o mais cético realismo ou concretismo baseado no realismo político de Maquiavel abdicaria do equilíbrio e do bom senso para impor o poder e a hegemonia baseados na força. O que ainda leva a supor que nem a própria Razão de Estado pode encontrar sua justificativa e recursos político-institucionais na violência política – e ainda que seja, por definição, a ultima ratio. Sem a guarnição da prudência, o Estado Teológico está baseado no poder único e em toda a força capaz de ser utilizada para manter-se o poder centralizado. Assim, para a teologia do poder central, soberano é quem determina o uso da exceção: uso impositivo (a ser legitimado) da força. A regra é o uso da norma, a exceção é a manipulação da regra (a ser legitimada). A Teoria Contratualista presente em Hobbes e Rousseau é utilizada, primeiramente, para assegurar a salvaguarda da Razão de Estado e, em seguida, serviria como fermento às teorias mais sectárias do direito em defesa do Estado: o direito penal do inimigo. Portanto, o direito penal do inimigo refaz o caminho do poder absolutista. Apoderando-se da teoria da soberania, como em Hobbes, tudo será possível, todos os recursos serão dispostos para defender o Estado. Desde Maquiavel, os fins justificam os meios para se solidificar o Estado e não exatamente o contrato social.
O contrato jurídico não pode conter nenhuma ranhura de injustiça, especialmente se por traz do Estado de Direito se esconde uma falsa, dúbia corrente repressiva: o direito penal do inimigo. Portanto, trata-se de combater a corrupção, a iniquidade e a dissensão. Por fim, resta ao governante redobrar esforços e manter em alto tom as ações de empenho na paz social. Um governo prudente é um governo solidário. Como revelação divina, o soberano encarna Deus na Terra ou representa o sacro poder. Se Deus constitui a verdade absoluta (onipresente, onisciente, onipotente) e se o sacro soberano guia seu governo para o Bem, temos que a soberania é igualmente sagrada, afinal o governo de Deus na Terra não pode ser questionado. Tal qual o poder divino, a soberania é inquestionável, indivisível, inalienável; tanto quanto não cabem adjetivos a Deus, não cabe superlativo à soberania. Ainda hoje, tradicionalmente, para a soberana vigência do poder constituído, não há limitações quanto aos meios empregados – uma das principais observações de Maquiavel, aliar força e astúcia (virtù). A virtude está em saber que “só o uno pode governar” (Pluribus unum). A soberania é sagrada, agir para a sua conservação é agir para o Bem de Deus na Terra dos homens. Se a soberania é sublime, então, não há que ter limitações – a exceção é teológica. A Razão de Estado foi erigida como mecanismo para combater a guerra civil, as rebeliões, as insurreições (crise institucional); e, se a violência viola a segurança social, para o Estado, a violência viola a soberania – daí se associar segurança pública com segurança nacional. O homem é lobo do homem (Homo lupus homini) e por isso a paz tem que ser conquistada ou imposta pelo Estado (no estado de natureza, sem o controle estatal, há o reino da beligerância). Portanto, sendo mau naturalmente o indivíduo será inimigo do outro. Desse modo não pode haver nenhuma associação, aliança ou pacto duradouro sem que haja intervenção direta, precisa e constante do Estado. Maquiavel não era anti-ético, porque não adotaria a moral platônica-judaico-cristã, mas sim um pensador da “moral romana-pagã”. Ou seja, Maquiavel é muito mais ético e republicano do que muitos de seus detratores ou apoiadores ingênuos.
Criando as bases do realismo político, pois, utilizando-se dos novos métodos científicos de que já se dispunha, a exemplo do empirismo, Maquiavel buscava a veritá effettuale(a verdade prática dos fatos, o mundo real e não o imaginário da ética). Essa racionalidade do poder é um caminho sem volta: o médico e o político são profissionais que precisam amputar e cauterizar. Nenhum meio de manutenção do poder pode ser excluído. Portanto, um indivíduo e um povo não são governados com a mesma regra: a bondade é uma virtude individual, mas não no príncipe. Essa chama precisa estar sempre acesa: Estados e povos que perderam o apetite pelo poder já estão em frangalhos. Tanto na República, quanto nos principados pode-se ter uma longa lista de qualidades que serviriam a este fim maior do Estado (à consecução da Razão de Estado): manter vibrantes a energia, a ousadia, as capacitações práticas, a imaginação, a vitalidade, a autodisciplina, a perspicácia, o espírito público, a boa fortuna, a antiqua virtus, a virtù, a firmeza na adversidade, a força de caráter. Os príncipes devem alternar severidade e generosidade; O trabalho sujo deve ser repassado a outros; Procure fazer com que tudo se pareça com um favor pessoal; Não anuncie suas ações mais drásticas, para que o inimigo seja pego de surpresa; Ações drásticas devem ser rápidas e as benevolentes devem ser pausadas; Não deve se cercar de servidores excessivamente competentes e poderosos que possam ameaçá-lo; O príncipe pode/deve ser violento, mas não deve fraudar suas próprias leis; O sucesso cria mais devoção do que amabilidades; Combine o uso das armas do leão e da raposa; Faça com que a mentira não compense, pois os homens são falsos e vão querer enganá-lo, mentindo.
Em termos públicos, pode-se concluir que só se faz o Bem (maior) por meio do mal. Maquiavel receita esses remédios amargos porque, na luta por autoconservação, a nossa total inépcia para a cooperação exigiria a aplicação de uma violência cuidadosamente administrada. Maquiavel revelou que a razão privada pode ser beatífica, altruísta (e a isso se louva com estímulos morais), mas a razão pública (como Razão de Estado), por definição, obrigatoriamente, tem que ser instrumental. Para Hobbes, são quase duas dezenas de regras ou condicionantes que operam a soberania. Por isso, parece oportuno aprofundarmo-nos um pouco mais na questão da soberania ou do poder ilimitado. Mas antes, vejamos um pouco melhor as estruturas, o caminho e a lógica do pensamento político de Thomas Hobbes. Ao poder soberano cabe ainda o monopólio da coerção, para a prática do bem e também para impingir o mal. Na configuração do Estado Teológico ou Estado-Força, pois que a força é a sua ultima ratio, temos em Hobbes que “a defesa da soberania equivale à defesa do corpo social”, e em Lo>Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
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