Terça-feira, 11 de dezembro de 2012 - 14h56
Venero a lei,
E especialmente nosso sistema de leis,
Como um dos mais vastos produtos da mente humana.
Mas pode-se criticar mesmo o que se venera.
Holmes Jr.
Eu posso matar vocês.
Vocês não podem me matar.
Marcola
O crime organizado, no Brasil e fora daqui, é resultado da aplicação de modelos de exceção e do Estado de não-Direito; foi com a política que o crime organizado aprendeu a se organizar em estruturas funcionais: antigamente eram tênias, hoje são um Estado dentro do Estado. Na repressão social e, supostamente, ao crime organizado, este Estado de não-Direito nacional seria o lema francês na Guerra da Argélia: A legalidade pode ser inconveniente.
O título reproduz reportagem homônima publicada no Jornal o Globo, com o famigerado Marcola (Marcos Willians Herbas Camacho), líder da principal facção criminosa do Estado de São Paulo. O leitor poderá perceber se se trata de um criminoso comum, se o problema criado pelas autoridades paulistas nas últimas décadas é um fato contornável com os métodos comuns, tipo violência institucional, brutalidade policial, extorsão, ou se estamos diante de uma grave crise de civilização. Também inicialmente é preciso reconhecer que muitas autoridades procuram, ironicamente, desqualificar toda formação intelectual que não dominam. Ao contrário dos acomodados e assoberbados com a mesmice, repetição mecânica de práticas sociais e institucionais que não levam a nada, ou melhor, que nos trouxeram ao fundo do posso, o líder do PCC assim se define: “eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível [...] Nós somos o início tardio de vossa consciência social… Viu? Sou culto… Leio Dante na prisão”. Na verdade, muitos gestores públicos estão fechados em um círculo de conhecimento repetitivo, mecânico, cheio de regras e decorebas de fórmulas e técnicas importadas. Além da vaidade e da soberba, própria dos que apenas se interessam pela carreira e pelos carimbos e bajulações que empregam com esmero. Vivemos na alcova da comédia humana, e por isso não conseguimos reconhecer a origem da vida social. Por isso, para combater o Mal, a violência e o crime organizado é preciso saber que não somos caracóis, que não podemos viver encastelados, enjaulados noEstado de Sítio, de que fala o poeta:
Si no eres lluvia, mi amor,
sé arbol
cubierto de frutos... Sé árbol,
y si no eres árbol, mi amor, sé piedra
cubierta de humedad... Sé piedra,
y si no eres piedra, mi amor,
sé luna
en el sueño de la amada... Sé luna
(O Estado de Sítio – Mahmud Darwix)
Que culpa tenho eu, nós todos, se nossos companheiros institucionalizados pela rotina nunca ouviram falar de Dante ou da Teoria do Caos, de Prigogine? Por incrível que pareça aos incultos e incautos, o crime organizado não segue a burocracia estatal, alinha-se ao fluxo distônico, contraditório, desintegrador, das forças que movem a humanidade em sua história. Só faltou Marcola citar o efeito borboleta. Na verdade, o PCC revolucionou a dinâmica do comando, pois para ser general do crime, o indivíduo tem de estar preso. Os soldados estão todos soltos, somente quando é preso em ação defensiva do grupo é que o sujeito recebe uma promoção. Nessa estrutura organizacional, atesta-se legitimidade àqueles que realmente participam das ações elaborativas do grupo. Há uma subversão da hierarquia, exatamente para que as lideranças sejam mais legítimas e atuantes, isto é, verdadeiras, e não apenas interessadas em sua carreira burocrática. Não comanda quem não participa, não tem respeito ou ascensão funcional quem já não deu, literalmente, o sangue e o suor. Para ver o mesmo, a mesmice que nos acostumou com a cultura da morte é preciso inventar uma antropologia da diferença; inclusive que consiga combater a indiferença. Como ensina o antropólogo Pierre Clastres, ochefe ou líder político representa o espaço e o convívio público: “O chefe não é um comando, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder[2], e a figura (mal denominada) do “chefe” selvagem não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. Certamente não é a da chefia primitiva que se pode deduzir o aparelho estatal em geral” (Clastres, 1990, 143 – grifos nossos)[3]. O chefe tribal não encarna um poderio pessoal, mas sim o poder como instituição coletiva:
O que se deve imaginar é um chefe sem poder, uma instituição, a chefia, estranha à sua essência, a autoridade [...] Essencialmente encarregado de resolver os conflitos que podem surgir entre indivíduos, famílias, linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, do prestígio que lhe reconhece a sociedade. Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra [...] Empreendimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois a palavra do chefe não tem força de lei (1990, 144).
A diferença antropológica, com o modelo centralizado do crime organizado, está em que a palavra do chefe, se estiver de acordo com o manual de organização geral, tem força de lei – assim como para Hitler e o moderno Estado de direito absolutista (os fascistas têm um substrato comum). De todo modo, a primeira ação daqueles que se julgam no direito e no dever de zelar pela ordem pública deveria ser pedagógica, intelectual, criativa. Menos arrogância, mais inteligência. À primeira vista é um absurdo, mas devemos aprender com o crime organizado, como este aprendeu com os presos políticos, nas décadas de 1960-70, e com o terrorismo da AL Qaeda no pós-2001. Assim também a teoria da soberania deve ser aprofundada atentamente diante da realidade do terrorismo social. Não há legitimidade social nas ações dos líderes do crime organizado. Não há verdade no Mal que representam ou provocam, mas há realismo em suas críticas e profundidade no diagnóstico social. Outra grande diferença entre a “normalidade social” e o crime organizado está em que seus líderes são cultos, como indivíduos que dominam a cultura que os cerca, e os nossos nem sempre. Diferentemente de muitos de nós, o crime organizado conhece bem o Estado de Direito – apenas não o respeita. Como diz Marcola: "Eu posso matar vocês. Vocês não podem me matar”. O crime organizado conhece de antemão o Estado de não-Direito e a incapacidade do próprio direito.
O cerco ao direito
O que nos autoriza indagar: como pode o anti-Estado, tão presente neste tipo fascista de Estado Penal, não conjugar violência e insegurança? Como pode o anti-direito gerar o direito que sonhamos? Este anti-direito social tem origem nazifascista. Faz muito tempo que os presos, pobres, libertos, desempregados, bandidos sociais, escravos fugidos, foram e são tratados como escória, como parte do lixo social que, não atendendo aos caprichos do capital, deve ser eliminado da vida pública. Das prisões do Império, em que os negros eram acorrentados para morrer afogados com a cheia da maré, em cidades praieiras, às prisões medievais do Brasil-2012, todos são vistos como criaturas que se rebelaram contra o criador. Porém, a “criatura” não é um retalho, é uma unidade com vida — talvez a unidade horrenda que soube perceber e retratar com um século de antecedência os horrores e as tratativas da realidade fascista que se abriga no Estado de não-Direito do passado e do presente. Na Alemanha, por exemplo, uma rápida cronologia pré-hitlerista já é suficiente para que se veja a barbárie na esteira e como esteio do “Estado de Segurança”:
1905 – Fundação da Sociedade para a Higiene Racial pelo Dr. Ploetz. 1908 – Na colônia alemã da África do Sudoeste são proibidos, e também declarados nulos, todos os casamentos mistos [...] O Dr. E. Fischer, docente de Anatomia da Universidade de Freiburg, pesquisa no país os “bastardos de Rehoboth”, mestiços de brancos e hotentotes. 1913 – É publicado o livro de E. Fischer {“Os bastardos de Rehoboth e o problema do abastardamento do ser humano”}. “Portanto, nós lhes concederemos um mínimo de proteção, que eles precisam como raça inferior em relação a nós, e só o faremos enquanto nos servirem – caso passem a concorrer conosco, terão que ser exterminados” [...] 1920 – É publicado o livro do jurista Prof. Binding e do psiquiatra Prof. Dr. Hoche {“A permissão para o extermínio de vidas indignas de viver”}. 1923 – Hitler lê, durante sua prisão militar em Landsberg, a segunda edição do manual de Baur-Fischer-Lens {“A ciência da hereditariedade humana e higiene racial}, e elabora o conceito de raça no seu livro Mein Kempf {“Minha Luta”} [...] 1931 – O Prof. Lenz escreve na terceira edição do livro de Baur-Fischer-Lenz [...] Não se deve duvidar que o nacional-socialismo almeja, com honestidade, um saneamento da raça [...] 31 de dezembro de 1931 – Himmler determina que os homens da SS têm que pedir autorização para casamento[4]no recém-criado departamento racial da milícia negra [...] 2 de julho de 1932 – Uma comissão da Secretaria de Saúde do Estado da Prússia decreta e recomenda uma lei[5]de esterilização com o lema: “A eugenia a serviço do bem-estar do povo” [...] 30 de janeiro de 1933 – Hitler torna-se chanceler da Alemanha (Müller-Hill, 1993, pp. 19-20 grifos nossos).
O Estado de Segurança foi e é sistematicamente criado para combater a insegurança, e para isso decreta um estado de insegurança. É dessa lógica do passado absolutista que regurgitou o estado de coisas que temos hoje em dia. No passado, o absolutismo; no presente, o Estado de Socorro à Segurança. Na literatura clássica, que Marcola conhece bem, a vida moderna dormiu revolucionária e amanheceu acorrentada. O Estado de Direito prometia a liberdade e a segurança, mas só defende com intransigência a propriedade. A sociedade moderna dormiu iluminista e acordou com os donos de um Estado de Direito injusto, e de que nos fala Rousseau:
Se há, pois, escravos pela natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força fez os primeiros escravos, sua covardia os perpetuou [...] O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever [...] A força é um poder físico; não imagino que moralidade possa resultar de seus efeitos. Ceder à força constitui ato de necessidade, não de vontade; quando muito ato de prudência. Em que sentido poderá representar um dever? (Rousseau, 1987, p. 25 – grifos nossos).
Como analisa Marcola: “Mais que isso, … vocês nunca me olharam durante décadas… E antigamente era mole resolver o problema da miséria… O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias… A solução é que nunca vinha… Que fizeram? Nada. Agora, estamos ricos com a multinacional do pó”. Se o capital financeiro pode abastecer bancos suíços com dinheiro de origem desconhecida, por que o pó não pode ser industrializado? Por que um crime social é legalizado? Isto é o que se pergunta o crime organizado. Como diz o Mefistófeles de Goethe (1997): Onde é que está o direito? Para o filósofo genebrino, não há legitimidade sem liberdade: “As palavras escravidão e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente” (Rousseau, 1987, p. 29). É possível, pois, lutar contra o não-direito e nem sempre a luta é jurídica. Este sentido também teria sido captado por Marx, na obra de Rousseau, tanto na análise crítica que faz no livro A guerra civil em França, quanto no sentido lato de que a alienação da liberdade nunca poderá ser total, se for legítima. Desta forma, a alienação ilegítima da liberdade, da ação social, da liberdade, autoriza o direito à revolução[6]. Historicamente, o movimento social e político que mais se aproximou disto foi a intentona perpetrada pela Comuna de Paris, em 1871, mas desde a Revolução Francesa, os partidários de Rousseau já saiam às ruas:
Foi nas profundezas do submundo intelectual que esses homens se tornaram revolucionários: ali nasceu a determinação jacobina de exterminar a aristocracia do pensamento [...] O mundo dos subliteratos não tinha princípios; tampouco alguma instituição de tipo formal. Era um universo de gente à deriva — nada de cavalheirescos discípulos de Locke resignados às regras de algum jogo implícito, mas brutos partidários de Hobbes colhidos em meio à briga pela sobrevivência. Isso não ficava a menor distância de le monde que o café do salon (Darnton, 1987, pp. 31-33 – grifos nossos).
O crime organizado nos chama a atenção para a guerra civil que enfrentamos, especialmente diante da inércia do Estado. O crime organizado está nos dizendo que pode haver uma grave erupção social, uma conturbação revolucionária. Se o caos social crescesse, diante do Estado de não-Direito (e o pior, capitaneado pelo crime organizado), o direito à revolução seria invocado como uma forma legítima de luta política em que se opõe o reconhecimento de um “novo coletivo” (como centro de imputação) às demais tentativas de conservação do status quo. Para combater o Estado de não-Direito, o Brasil produziria a primeira revolução da história mundial liderada pelo crime organizado. É óbvio que a modernidade não autoriza em hipótese alguma o direito à sedição, principalmente depois que os partidários de Hobbes engajaram-se em manter a teoria da soberania. É mais do que óbvio que não há legitimidade social no crime organizado. Entretanto, no século XXI, o direito de sedição tornou-se o princípio detonador do Estado de Exceção, mas muito mais como garantia do Governo (ou, na melhor das hipóteses, da governabilidade) do que da Razão de Estado. Neste caso, quando as leis e a política são injustas, institui-se ou se avoluma o direito de sedição. Por isso, nosso limite atual está em legitimar o Estado de Direito, em atualizar seus pressupostos, para que a justiça fique livre dos meios de exceção jurídica e da exclusão social.
Não há direito ao Mal
A legitimidade e a Justiça Social, na definição de Rousseau, portanto, formam o objetivo central do contrato social e do Estado Moderno. Também vimos como Rousseau propôs as bases de uma organização social moderna. Por esta sugestiva indicação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos[7], vemos que além dos desafios e embates teóricos ao reconhecimento de direitos, por parte do Estado de Direito, ainda há os desafios internos quanto à ação social motivada por valores no nível do Estado Democrático de Direito. As limitações ou incapacidade de defender e proteger os bens públicos e/ou promover a Justiça Social ocupam os espaços da luta política. Hodiernamente, o direito de sedição é observado por tratadistas como um princípio jurídico reconhecido pelo apodo de direito à revolução:
Direito de revolução é o que assiste aos governados exercitar, a certos aspectos também como dever coletivo, no sentido de reformar o poder, deturpado por maus governantes, para reintegrar o Estado no cumprimento de seu fim supremo, ou seja, a realização do bem público (Menezes, 1998, p. 178).
Se não há direito de sedição para o conjunto da cidadania, é certo que também não se admite ao crime organizado supor que sua bandeira de ação implica na reconstrução social. A crítica à extrema desorganização e miséria social não autoriza o direito de sedição. Mas, isto também não implica na impossibilidade de realizarmos a crítica social adequada. E mais, a falta de legitimidade no uso do direito de revolução não se traduz na impossibilidade de o crime organizado liderar um processo de desconstrução do status quo. Seria muito melhor a todos que as mudanças fossem democráticas, mas se não as fizermos alguém as fará em nosso nome.
O Cerco a Numância de Cervantes ou A Peste, de Camus
O criminoso de hoje, ao menos no Brasil, vê-se como um sitiado, um banido do mundo de significados, é um infra-humano que deve ser levado ao cadafalso das prisões medievais. Contudo, desde o clássico O cerco de Numância, de Cervantes (1547-1616[8]), o cinema também se ocupou da Razão de Estado por inúmeras vezes. Miguel de Cervantes foi ele mesmo refém em Numância, mas a história da invasão da região é bem mais antiga: Caio Mário (Caius Marius) provinha de uma família de humildes camponeses e o fato de não ser genuinamente romano lhe rendeu o desprezo da aristocracia romana: os optimates. Destacou-se no cerco de Numância (133 a.C.), pois era apenas um soldado raso que subiu aos poucos, devido a suas extraordinárias capacidades militares e ascendeu na carreira militar pela mão do célebre Cipião Emiliano. No entanto, em 1569, Cervantes já estava na Itália e se alistou como soldado aventureiro, a serviço do Papa, para combater os turcos no Mediterrâneo. Na Batalha de Lepanto, em 1571, levou três tiros — um deles quase acabou com sua mão esquerda. Em 1575, recebeu licença para retornar à Espanha, mas seis dias depois do embarque, na galera El Sol, acabou preso e assim foi levado a Argel, onde permaneceu cinco longos anos: de mercenário a escravo (e à literato do próprio Estado de Sítio imposto). Certamente foi com esse intuito que Camus também revelou o sentimento vivido por todos que experimentam a imposição claustrofóbica da prisão injusta em seu romance homônimo Estado de Sítio. Como vemos metaforicamente, no escritor, há uma busca do consentimento que lhe é inerente[9]:
O HOMEM[10](Ao governador)
Faço questão de obter seu consentimento. Eu não queria fazer nada sem sua permissão porque estaria contrariando meus princípios. Minha assistente vai executar tantas radiações quantas forem necessárias a fim de obter do senhor a livre aprovação para a pequena reforma que estou propondo. Pronta, querida amiga? (Camus, 2002, p. 65).
Está pronto, querido(a) amigo(a), para a irradiação de um Estado de Direito voltado à defesa das propriedades? Esse Estado de Sítio ou Estado de Emergência que vimos propalar-se na França (e que ameaçava incorrer por toda a Europa) pode ser considerado como o estertor do Estado de Exceção, como Estado-Força, que tenta se abrigar na alcunha de Estado Democrático e brandir o manto legal de um pretenso Estado Juiz. Quando na verdade é um pesadelo, uma fantasmagoria, um contra-senso que se manifesta pelo poder, pela força empregada — ou, talvez, o poder seja só isso mesmo: ameaça e pressão[11]. Camus está revelando o sentido de que o Poder (por mais maléfico que seja) sempre precisa se escorar/amparar no consentimento (senão popular) nas próprias instituições e tradições que o mantiveram até aquela determinada fase – será uma tentativa de ancorar-se na legalidade e assim obter legitimidade. Mas, no fundo, é apenas o esconderijo mal montado de um aparato autoritário, e venha ele ou não sob a rubrica da democracia,como indicaria também metaforicamente Oscar Wilde:
O Imperador e o Rei podem abaixar-se para apanhar do chão um pincel e devolvê-lo a um pintor, mas quando a democracia se abaixa, é apenas para atirar lama, embora nunca tenha se abaixado a exemplo do Imperador. Na verdade, quando quer jogar lama, não é preciso que fique mais agachada do que está. Mas não há necessidade alguma de separar o monarca da plebe: toda autoridade é igualmente má [...] Há três espécies de déspota. Há o que tiraniza o corpo. Há o que tiraniza a alma. Há o que tiraniza o corpo e a alma. O primeiro chama-se Príncipe. O segundo chama-se Papa. O terceiro chama-se Povo (Wilde, 2003, p. 72).
Nesta leitura socialista radical (ou anarquista) a questão da democracia liberal não é tocada como forma de governo do povo, dada a limitação óbvia da representação parlamentar, mas sim como forma de governo dos medíocres. Esta forma de governo seria gerida pelos indivíduos medianos da política, pois são portadores dos valores comuns ou senso comum. Neste momento, o Estado usa de seus meios de exceção para consumar um “golpe mítico”, alegando-se a “salvação da pátria” ou como ato ovacionado que se presta à “defesa das raízes”, do todo:
Tais expectativas, pelas que lutaram gerações de pessoas, aparecem ante as consciências de todos como aureoladas juridicamente, como hegemônicas. Justificar sua violação ou sua restrição exigirá, pois, um esforço (discursivo) especial por parte de quem atente contra elas: tal é, em realidade, sua magra couraça, mas, que ao mesmo tempo, facilita que os indivíduos insistam na legitimidade e na justiça de suas pretensões quando estas aparecem como o conteúdo de um direito de cidadania. Em realidade, para denegar essas pretensões legítimas, o poder há de recorrer, de um modo ou de outro, à doutrina do “estado de exceção”: uma doutrina que, levada ao limite, exige a legitimação mítica (Capella, 1998, p. 143).
É interessante notar que autores como Camus e Sartre tenham denunciado esta “cultura da exceção e do silêncio”, a partir da guerra da Argélia, na esperança de que o povo sofresse a catarse necessária para desabonar qualquer intenção ou meio de exceção:
Num angustiado ensaio escrito em meio ao espanto e à indignação provocados pela revelação dos porões da guerra da Argélia, Sartre advertiu que “a tortura não é civil nem militar, nem tampouco especificamente francesa, mas uma praga que infecta toda nossa era”. Naquele momento, entre 1957 e 1958, os franceses tomaram conhecimento de que o exército francês e as forças policiais da colônia empregaram sistematicamente a tortura ao enfrentar os rebeldes argelinos, levando a uma comoção generalizada [...] Quando tomou conhecimento dos crimes praticados em seu nome na Argélia, a França levantou-se, indignada. Após 1957, quando as denúncias se intensificaram na imprensa, a mobilização de repúdio da sociedade cresceu e contribuiu para a queda da Quarta República e, a seguir, a independência da Argélia, em 1962. Abriu-se um debate nacional, envolvendo intelectuais do porte de Sartre e Camus (Caldas, 02/09/2007).
Como denunciava Kafka, o mundo moderno precisa de advogados que denunciem o Estado de não-Direito, a “normalidade do capital”, a hipocrisia da zona de conforto dos assentados em brilhantes carreiras enfadonhas. Na conversa com Marcola, a distopia, a entropia, a anomia social revelam-se como ordem unida diante do progresso econômico:
Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a “normalidade”. Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. Mas vou ser franco…na boa… na moral… Estamos todos no centro do Insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês… não têm saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não há solução. Sabem por quê? Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: “Lasciate ogna speranza voi cheentrate!” Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno”.
Como n’O Processo:
Não era nada certo que eu tivesse um defensor, a esse respeito não podia mais saber coisa alguma com precisão, todos me viraram o rosto [...] Eu não era capaz nem mesmo de ficar sabendo se estávamos numa repartição judicial. Havia muita coisa que falava nesse sentido, outras contra. Acima de todos os pormenores, o que mais me fazia pensar num tribunal era um estrondo que se podia escutar à distância [...] Mas se não era um tribunal, por que eu procurava aqui, então, um representante legal? [...] Neste caso é urgente a necessidade de ter um defensor, procuradores em quantidade, de preferência os defensores, um bem ao lado do outro, uma muralha viva, pois por sua própria natureza eles se movimentavam pesadamente, mas os acusadores, essas raposas astutas, essas doninhas lépidas, esses ratinhos invisíveis, enfiam-se pelas menores fendas, deslizam por entre as pernas dos defensores. Atenção, portanto! (Kafka, 2002, p. 143).
Por isso, por não ter acesso ao poder, mesmo que por intermédio do advogado, só os pobres acabam presos. Acesso universal à justiça ou pela classe social? A “velha burocracia” é pesada, lerda, com as leis criadas pela nobreza: direito nobiliárquico: “Por isso, se não encontrar nada aqui nestes corredores, abra as portas; se não encontrar nada atrás delas, há outros andares, e, se não achar nada lá em cima, não é grave: faça um esforço para subir novas escadas. Enquanto não parar de subir, não param de aumentar sob seus pés os degraus que sobem sempre” (Kafka, 2002, p. 145). Quem duvida dessa “finalidade do direito”, basta-lhe perguntar ao senhor das leis porque alguém permanece preso por “furtar uma margarina”. Também encontraria a resposta ao porquê de um menino ser morto a tiros por “apanhar frutas” no pomar do vizinho. Com a leitura de Kafka aprendemos a sátira e a metáfora da vida comum. Com Kafka, vemos que a loucura social, ambiental, moral, política que enfrentamos no Brasil, mas que irradia muitas razões globais, pode ser associada a um tipo de loucura, uma esquizofrenia, um non sense coletivo. A crise que enfrentamos é uma espécie de vingança, um duelo sem fim ao longo da história. É uma ironia que vai e vem, a exemplo da entropia que se arrasta como certeza científica por séculos a fio[12]– e baseada na termodinâmica de Newton[13]:
Por que existe a entropia? Antes, muitas vezes se admitia que a entropia não era senão a expressão de uma fenomenologia, de aproximações suplementares que introduzimos nas leis da dinâmica. Hoje sabemos que a lei de desenvolvimento da entropia e a física do não-equilíbrio nos ensinam algo de fundamental acerca da estrutura do universo: a irreversibilidade torna-se um elemento essencial para a nossa descrição do universo, portanto devemos encontrar a sua expressão nas leis fundamentais da dinâmica [...] De qualquer forma [...] é do caos que surgem ao mesmo tempo ordem e desordem (Prigogine, 2002, pp. 79-80 – grifos nossos).
Portanto, não se trata nem da teleologia, nem do fim da história; sequer de uma filosofia da história ou mesmo da modernidade, uma vez que, todo o século XX e o breve século XXI indicam e fazem sobressair o realismo cotidiano das variadas formas de luta e de conflituosidades que cercam o poder no âmbito do Estado Moderno. Tanto lá, no pós-Renascimento, quanto cá, diante dos dilemas da Modernidade Tardia, há ciência (Prigogine, por exemplo), conhecimento político acumulado para debelar a ignorância e o caos social. O passado que nos persegue aponta para o futuro, para o bem e para o mal, uma vez que, se o Estado se fragmentou em seu poder de centralização, por outro, a sociedade é capaz de melhor reconhecer seus direitos – ainda que não se veja a fruição. Nossa obrigação moral, como sobreviventes, é não permitir que o crime organizado conduza este processo de mudança social por nós, por causa de nossa incompetência. A soberania moral está seriamente ameaçada e se esta ruir, perderemos o controle mínimo das ações.
Modernos problemas antigos
A teoria da soberania estatal foi formulada justamente para assegurar “segurança”. Entenda-se como a segurança jurídica do capital, a segurança física do nobre diante do servo, do cidadão ante o excluído, do burguês contra o não-proprietário. Nessa mesma época, o poder deixou marcas profundas na mentalidade do homem médio. Aliás, o poder (que deveria ser social) confundiu-se com o Estado. O Renascimento[14], na verdade, é apenas o nascimento; marca o nascimento do Estado Moderno. Com a segurança máxima também adveio a tese de que os instrumentos absolutistas do poder deveriam ser manejados como garantia fática do próprio direito, ou seja, o direito pode arregimentar meios de exceção e alegar, no espírito das leis, que isto se deve ao direito de impor o próprio direito. Talvez, tendo-se algumas mudanças ou inversões mais bruscas na rota da luta pelo reconhecimento (agora perdendo terreno para a mera conservação do poder)[15], possamos dizer que lá onde havia um estado da Razão, veio a vigorar ainda mais fortemente uma Razão de Estado. Mais especificamente, datam de 1793 as primeiras bases do Estado de Exceção, e que tanto nos assombram desde então (Agamben, 2004). Todavia, a chave teórica para o entendimento de seu alcance e dimensão iremos encontrar em meados do século XX, no esforço retórico-constitucional de Carl Schmitt (2006).
O Estado de Exceção Permanente que visualizamos em alguns de seus tentáculos guarda sua primeira experiência na “revolução legal”, sob a égide do nazismo, e suas intensas manipulações anti-jurídicas ou de não-direito,promoveu um verdadeiro retrocesso no Estado de Direito Clássico e, por isso, iremos melhor compreendê-lo como Estado de (não)Direito. Em resumo, entenda-se aqui um Estado de Exceção que não só afrontou, mas que negou violentamente a estrutura-base do Estado de Direito, bem como qualquer princípio geral do direito e da Justiça. Como mero processo de negação e de exclusão, esse Estado de Exceção, como negação da Justiça, é o quadro legal que mais ameaça a “regularidade da vida social”. Hoje, o crime organizado é um Estado dentro do Estado e os criminosos sabem disso melhor do que nós - como diz Marcola: “Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos recrutas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Klausewitz, “Sobre a guerra”. Não há perspectiva de êxito… Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas… A gente já tem até foguete anti-tanques… Se bobear, vão rolar uns Stingers aí… Pra acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas… Aliás, a gente acaba arranjando também “umazinha”, daquelas bombas sujas mesmo. Já pensou? Ipanema radioativa?”. O crime organizado surgiu no Brasil como uma resposta ácida, irônica, debochada à negação e exclusão social. O crime organizado é filho direto da Lei de Segurança Nacional, nasceu em meio ao Estado de Sítio. Aliás, neste sentido há um paralelo possível com a globalização do terror, nascida do enfrentamento ao Império estadunidense. Quando Marcola cita Sun Tzu e Klausewitz não faz paródia, intelectualismo, a liderança do Mal cita a alma do crime politizado pela ditadura militar. No Brasil, o crime organizado nasceu da aplicação do anti-direito pelo Estado de Exceção aos que não admitiam ver a democracia ser abatida pela ditadura militar. A anomalia criada pela exceção ao direito justo nos legou a anomia social que nos ameaça enquanto sociedade organizada.
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