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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O Direito como coerção


Diante desta verdadeira guerra travada entre a Polícia do Estado de São Paulo e o crime organizado, com homicídios, execuções e grupos de extermínio de ambos os lados, é de se perguntar se não assistimos a um quadro de violência institucionalizada (obviamente, pelo Estado) ou se estamos no palco de uma guerra civil (negada sem compromisso pelo Governo). O governo do Estado de São Paulo ainda diz que tudo não passa de “fantasiosas informações”.

Há um ciclo de violência, como círculo vicioso, que prende tanto as forças de segurança pública quanto a bandidagem capitaneada pelo PCC e isto revela duas coisas básicas: 1) rompeu-se o círculo moral virtuoso proposto pelo Estado de Direito e pela aplicação da Justiça, em que o próprio crime organizado depositava suas garantias, pois sabia que não seriam eliminados fora dos presídios ou barbarizados dentro das prisões; 2) indica uma dinâmica de retaliação entre PM e PCC, pois membros dos dois lados querem aplicar a lei do olho por olho, dente por dente. Portanto, o ciclo vicioso seria uma resposta à violência institucional: "Uma das diretrizes do PCC diz que, se um policial capturar um de seus membros e executá-lo ao invés de prender, a célula do PCC da região deve se vingar matando PMs’, afirma Camila Nunes Dias”. Esta onda de violência não é uma reação dos criminosos a ações mais eficientes da polícia, mas sim uma resposta de sobrevivência às operações policiais violentas. Parte da polícia de São Paulo estaria usando escutas telefônicas não para prender e julgar legalmente, mas para emboscar e matar membros do PCC. "A raiz (do problema) está na ingovernabilidade das polícias civil e militar, organizadas segundo parâmetros herdados da ditadura, associada à leniência com que autoridades da segurança pública - apoiadas por autoridades políticas - tacitamente autorizam a brutalidade policial letal em nome do rigor no combate ao crime’, avalia o ex-secretário nacional da segurança pública Luiz Eduardo Soares: ‘projetando o ciclo vicioso da brutalidade letal contra os próprios policiais". O que, por fim, revela que segue intocada uma verdadeira Epistemologia do Estado Penal. Neste quadro, é possível indicar-se algumas das suas características mais presentes e reveladoras:

  • Reverter o processo de humanização do direito, inaugurado no Iluminismo
  • Privatizar o sistema prisional
  • Criminalizar as relações sociais
  • Confundir deliberadamente segurança pública e segurança nacional
  • O recrudescimento das penas restritivas de liberdade
  • Utilizar os meios de exceção
  • Transformar o infrator em inimigo social
  • Imiscuir o adversário político em inimigo de Estado
  • Restringir os direitos fundamentais
  • Alimentar um direito penal de exceção: direito penal do inimigo
  • Elevar a presença/influência do direito penal, em desconsideração de outras formas de solucionamento de conflitos sociais
  • Subverte o funcionalismo da sociologia criminal clássica, pois o direito penal aprimora-se mais do que o próprio “direito contratual”

Como se vê, a solução institucional imediata do problema também tem dupla face: o custo moral para se recuperar o círculo virtuoso é muito maior do que a energia social empregada para romper o ciclo vicioso do crime, isto é, mesmo que se debele a onda de morticínio, a recuperação da crença na Justiça (como expectativa de direito) será muito longa. O que prova isso é o fato de que os homicídios cresceram 8% em relação ao mesmo período do ano passado – além do fato de que os policiais mortos passam de 80. Para o Ministério Público, a morte de alguns policiais se deve ao fato de serem atuantes, a exemplo do policial Edison Avelino de Sales, no Guarujá, em maio de 2012: "Sales foi morto por membros do PCC por ser combativo e aguerrido’, diz o promotor público Cássio Conserino, de Santos, em entrevista à BBC Brasil”. Para muitos especialistas, ainda que o governo do Estado trate como fantasia, o ciclo vicioso é evidente: "É impossível negar que há uma linha ligando as mortes de civis e as de policiais militares’, afirma o procurador Márcio Christino, especialista em investigações sobre o PCC. ‘Os casos estão relacionados"[1]. Este ciclo vicioso é semelhante ao de 2006, quando morreram 500 civis e 50 servidores; aliás, apontado como a origem da atual guerra civil.

A Guerra civil que só não vê quem não quer

Eufemisticamente, denomina-se este caos social assemelhado a uma guerra civil de “guerra assimétrica das ruas”. No entanto, na realidade e sem eufemismos, a guerra civil alcançou no Brasil um novo estágio: o PCC está em guerra declarada contra o Estado – inicialmente o Estado de São Paulo – e, especialmente, contra a Polícia Militar (mais especificamente contra a ROTA). Tanto o governo do Estado quanto a cúpula da Secretaria de Segurança Pública têm repetido que a guerra entre a facção criminosa e a PM é uma “fantasia”. Todavia, para o promotor Cássio Roberto Conserino, que investiga o crime organizado na Baixada Santista, a região é palco de uma guerra civil entre criminosos e policiais. Muitos documentos em poder do comando da polícia e do Ministério Público revelam que o PCC está acionado para a matança de policiais e que vem se preparando desde 2011 para esses ataques. Um desses documentos, uma espécie de ordem permanente para atacar (“Salve Geral”), é expresso: "Se alguma vida for tirada pelos nossos inimigos, os integrantes do comando que estiverem cadastrados na quebrada do ocorrido deverão se unir e dar o mesmo tratamento. Vida se paga com vida, e sangue se paga com sangue"[2]. Como resposta, o governo paulista diz que tudo é "lenda" e que os criminosos da facção não passam de 40 traficantes presos há tempos. Os documentos apreendidos, entretanto, retratam diálogo da cúpula do PCC diz:

"Não é hora de entrar em guerra com a [polícia] Civil, pois já estamos numa guerra com a militar, onde nós estamos perdendo vários malandros na covardia [...] Vamos nos fortalecer, organizar nossa família, no setor financeiro, progresso [droga], depois a sintonia das quebradas. Quando estivermos prontos para reação, aí iremos para ação, com inteligência, sem chance de defesa pra eles [...] Estamos passando a pior fase. Tá a maior covardia dos vermes da 'R' [Rota]. Tão tirando a vida de vários malandros da hora. Tão chegando muito rápido e não estamos conseguindo descolar de onde estão vindo”[3].

 

Trata-se de um trecho de carta enviada por Érick Machado Santos, o Rick, um dos principais chefes do PCC ainda em liberdade. Tais documentos, cerca de 400 arquivos, teriam entrado nos presídios por meio de pen drive, e só depois foram apreendidos. Para o Estado, a aplicação da cláusula 18 do Estatuto do PCC se deve à pressão exercida pela polícia que estaria esgotando algumas fontes de financiamento da facção, bem como prendendo ou eliminando algumas das principais lideranças ainda em liberdade. O assassinato do Cabo Bruno, líder de um grupo de extermínio formado por policiais nos anos 1980, livre havia 34 dias, foi um marco para o PCC: “A instrução aos criminosos é observar o cotidiano de policiais, para conhecer seus hábitos e fazer a execução durante a folga - de preferência, na frente da família[4]”. Novamente, a resposta do Governo do Estado é contraditória: alega que a polícia fecha o cerco, há enfrentamento, e que “os que não reagiram estão vivos”. Mas como, se são apenas 40? A Agência de Inteligência (ABIN) já teria fornecido dados concretos sobre o estado de guerra civil, também diagnosticado pelo Ministério Público de São Paulo: “As informações da Abin são de que o PCC se armou e se expandiu nos últimos anos. Apesar de concentrar as ações em São Paulo, ele teria associações com criminosos em diversos Estados, especialmente nas fronteiras com o Paraguai e a Bolívia[5]”. O fato é que para o Governo do Estado reconhecer este cenário de grave crise institucional equivale a reconhecer a total incompetência em conter a onda de criminalidade em São Paulo.

Ao contrário da explicação oficial, os documentos apreendidos revelam que o PCC possui 1.343 bandidos espalhados por 645 cidades do Estado, equivalente ao dobro do número de policiais da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e considerada a elite da polícia paulista. Os “funcionários” do PCC são obrigados a pagar mensalidade de R$ 600,00, gerando uma renda superior a 800 milhões de reais. Como benefício ao se associar, em caso de prisão, o funcionário-bandido tem direito a advogado, ajuda financeira para a família e o status, poder de se referenciar e autodefender-se diante dos outros presos, como integrante do PCC. Além das mesadas, a facção arrecada mais de R$ 6 milhões mensais em atividades criminosas. Os arquivos ainda relatam um inventário parcial do grupo: 13 imóveis, 88 fuzis, 63 pistolas, 11 revólveres, oito dinamites, 67 carros (sendo três blindados), sete motos e um caminhão[6]. Desta relação, todos os bens e armas individuais não foram contabilizados. É interessante prestar atenção ao fato de que esses arquivos revelam a alma do grupo criminoso, mas além disso reforçam a leitura de que o crime obedece à lógica capitalista, impondo-se a necessidade da contabilidade (por partida dobrada) como segurança financeira da liderança do PCC. Na avaliação de Maria Rita Kehl,
outro dado deve ficar claro – a displicência do governo de São Paulo no combate ao crime organizado no interior da própria polícia paulista, agindo sob a forma de grupos de extermínio:

"Quem não reagiu está vivo”, disse o governador de São Paulo ao defender a ação da Rota na chacina que matou nove supostos bandidos numa chácara em Várzea Paulista, na última quarta-feira, dia 12. Em seguida, tentando aparentar firmeza de estadista, garantiu que a ocorrência será rigorosamente apurada. Eu me pergunto se é possível confiar na lisura do inquérito, quando o próprio governador já se apressou em legitimar o morticínio praticado pela PM que responde ao comando dele. “Resistência seguida de morte”: assim agentes das Polícias Militares, integrantes do Exército e diversos matadores free-lancer justificavam as execuções de supostos inimigos públicos que militavam pela volta da democracia durante a ditadura civil militar, a qual oprimiu a sociedade e tornou o país mais violento, menos civilizado e muito mais injusto entre 1964 e 1985[7].

 

            O que ainda não se pratica de modo articulado é a inteligência operacional no sentido de se evitar o acirramento das circunstâncias que alimentam esta vertiginosa escalada do crime. A cada onda reveladora das estruturas da facção verifica-se a crescente necessidade de se ter mais claramente a definição da Defesa Social: prevenção e precaução.

O direito como itinerário conceitual e prático de Justiça

A ideia ou conceito de Defesa Social, como itinerário de Justiça, tem uma abrangência bem mais ampla do que a de segurança pública, uma vez que se destina ao acompanhamento funcional das orientações técnicas e valorativas dos órgãos de segurança pública, especialmente no que se refere à educação e prevenção da violência e afirmação da pacificação social (educação para a segurança). Quando se articula uma “nova” Doutrina de Segurança Pública, atualmente, considera-se muito mais a relevância social das ações do que a coerção, tradicionalmente associada à segurança pública.Então, seriam mecanismos coletivos destinados à consecução e preservação da paz social. A conotação técnica e jurídica de “defesa” decorre do Estado e das garantias constitucionais apresentadas, e engloba simultaneamente em três segmentos: a garantia dos direitos fundamentais individuais e sociais (soberania social), a segurança pública propriamente dita e o enfrentamento de calamidades públicas: neste caso, o crescimento vertiginoso da criminalidade e da violência social. Com o que se percebe claramente que a segurança pública se torna uma parte integrante de um todo maior, incorporando a institucionalização do direito fundamental mediante a prestação das políticas públicas; a tutela jurisdicional; a iminência da conturbação social pela exposição da violência social; a defesa do Estado do Estado e das principais instituições sociais.

Com isso, a tradicional condição de segurança pública arraigada ao princípio elementar de que as forças de segurança defendiam os bens públicos, a rigor o próprio Estado, encontra-se modificada. Do Estado como instituição formal, que associa direito e soberania (Lo Stato: “rei e povo”; status: firmeza, consolidação) ao Estado Pluridimensional. Da defesa deste Estado modificado pela soberania social, caminha-se inexoravelmente para a construção da segurança social; da ordem pública à ordem jurídica; do Princípio do Autocontrole estatal às atividades de “autodefesa social”, em que os riscos são coletivos, propriamente públicos e não, restritivamente, estatais. Aliás, consoante a isto, corrobora-se para a distinção entre o público e o estatal. Sem voltar-se aos princípios da prevenção e da precaução de modo orgânico, sistemático, vê-se crescer o braço armado do Estado, a coerção como longa manus repressora do direito.

A reforma do Direito Penal no Estado Penal

No quadro da guerra civil, como política de Estado, os criminosos são verdadeiros inimigos sociais e devem ser tratados criminalmente por um direito especial, aplicado somente aos “inimigos”: o Direito Penal do Inimigo. De modo geral, os defensores dessas medidas estão alinhados a um modelo de Estado, ou seja, o que projetam para o direito penal é a própria essência do Estado que querem ver atuante. Esperam pelo recrudescimento das penas da mesma forma como esperam uma ação mais controlativa (exercício prático, efetivo do monopólio do uso da força física) por parte do Estado, em todos os segmentos da vida social.

Viventes em estado de guerra civil em todo o mundo, inclusive no assim chamado mundo civilizado, os projetistas da “nova repressão social” não esperam apenas por um direito penal altamente punitivo, anseiam acima de tudo por um Estado repressivo. No caso brasileiro, seria um Estado inapropriadamente violento, mortífero. Com ou sem consciência, alinham-se às antigas ideologias celebradas pelo que se chamou de Estado de Justiça. Também chamado de Estado Judicial ou de Justiça foi aplicado como controle social, porque o poder público judicializava sistematicamente as relações sociais – especialmente a política. Sua polícia era diretamente controlada por forças de repressão especializadas na contenção política e ideológica: a Schutzstaffel ("Tropa de Proteção") era abreviada como SS. Seu lema era Meine Ehre heißt Treue ("Minha honra chama-se lealdade").

O Estado Penal

Atualmente, salvo as exceções neonazistas, outras forças sociais e o próprio Estado professam ideologias de controle social mas procurando distinguir-se daquele Estado de Direito negativo, restritivo da condição humana. Também se corta o caminho do social propondo-se a segurança pública – como substituta da ordem pública – e assim se furta à segurança social. Nesta linha, gradativamente, o Estado avança na criminalização das relações sociais, tipificando, criando crimes novos regularmente e, por isso, tem-se utilizado a terminologia de Estado Penal para sua definição contemporânea. O Estado Penal, paulatinamente, substituiu as ações sociais do Estado Providência, aprimorando o jus puniendi muito mais repressivo/punitivo. As malhas do Estado Penal atingem sobremaneira as classes desfavorecidas do sistema social e econômico, dando ênfase à criação de tipos penais que culminam com a aplicação desmedida da pena privativa de liberdade, o que ainda resulta na superpopulação carcerária e na desumanidade na execução da pena.

As políticas criminais adotadas por esta forma de exercício do poder punitivo do Estado Penal estatal revelam a clara preferência em criminalizar as classes desprivilegiadas do sistema capitalista: são as chamadas classes subalternas, subordinadas, dominadas, os considerados à margem das “benesses” do modo de produção capitalista. Essas “classes sociais” são formadas pela grande gama de indivíduos pertencentes aos setores do proletariado, ou fora dele, como eternos desempregados, hipossuficientes, relegados ou abandonados pelo próprio Estado. Esta reflexão aponta, essencialmente, para a característica desigual do Direito Penal, tendo como pressuposto as próprias escolhas feitas pelo Estado brasileiro, quanto a esta sanha crescente pelo jus puniendi. Deste modo, hoje estamos quase incapacitados de acionar os mecanismos institucionais necessários para executar as políticas públicas básicas.

Sistematização da violência

            Pelo viés da formação institucional, o quadro revelado pelo governo de São Paulo guarda traços característicos do Estado Moderno que, em meio à crise sistêmica provocada em parte pela globalização, tem recorrido à sistematização da violência a fim de assegurar a soberania e garantir a hegemonia no controle do próprio uso da violência. O Estado Moderno, em luta acesa pela defesa das prerrogativas acertadas pela homogeneidade que sempre produziu em torno da defesa da Razão de Estado, como justificativa de sua existência, procurou justificar o uso recorrente da violência institucional em razão de um suposto crescimento e generalização da própria violência. As demais políticas públicas perdem apoio social e eficiência administrativa diante dos apelos constantes por mais segurança pública – menos saúde e educação, desde que combata a violência crescente. Esta fixação dos apelos externos e da atenção política na segurança, que combata a “violência desenfreada”, condiciona os aparelhos repressivos do Estado em nova tipologia. O que se convencionou chamar de Estado Penal, neste sentido, pode ser definido como a instituição e a outorga da segurança pública, e a gradativa substituição ou escanteamento das demais políticas públicas.

Em paralelo a isto, no Brasil, a insegurança e a violência têm alimentado uma extensa indústria da segurança. Isto é, no Brasil e em parte do mundo globalizado, a violência legitima a elevação da segurança à condição de principal política pública; porém, esta istitucionalizaçao e sistematização da violência é incapaz de subjugar a violência social – em parte movida pelo abandono das demais políticas públicas – e o ciclo se fecha na parcial privatização da mesma segurança pública. O Estado diz que sua política é voltada à segurança, mas como é ineficaz no seu controle, abdica da própria soberania e hegemonia do uso dos meios de violência. A privatização da segurança pública, sob a égide do Estado Penal atual, coincide, portanto, com o fim do “monopólio do uso legítimo da força física (violência)”. O que leva a algumas conclusões: para defender-se da perda de soberania, também ameaçada pela insegurança como forma descontrolada do uso dos meios de violência, o Estado reduz sua ação pública e se desfaz de mais uma parcela de sua soberania. Reduzir-se à prestação de segurança, em suma, revela-se como um tiro no pé, como ação que se volta contra as intenções originais. Loic Wacquant já revelava a transição do Estado caritativo/social para o Estado Penal; do chamado Estado providência, para um Estado que cada vez mais criminaliza a miséria (2003, pp. 23- 24). No Estado brasileiro a ação não tem sido outra, dado que a criminalidade é vista e “tratada” como uma questão de escolha pessoal do “sujeito delinquente” frente às possibilidades/dificuldades ofertadas pela vida (ou imposta pelo meio?). Nesse sentido, no Estado Penal, o encarceramento tornou-se uma verdadeira indústria e uma indústria bastante lucrativa.

Comercialização da criminalidade e da violência

A princípio, a indústria do controle da criminalidade estava voltada para a construção de presídios – em alguns casos sua administração –, para a fabricação de equipamentos de segurança, para recrutamento, seleção e treinamento de agentes de segurança privados, bem como para a produção de equipamentos de segurança pessoais. Posteriormente, em decorrência das políticas neoliberais adotadas pelos Estados, os proprietários de tais indústrias perceberam um novo e próspero filão, cuja matéria-prima parece ser inesgotável e com taxas de lucro certamente garantidas pelo próprio Estado. No caso norte americano, com a política de encarceramento das massas desprovidas de assistência, a assustadora estimativa é a de que: “no ritmo em que a América aprisiona, ela teria que abrir o equivalente a uma penitenciária de mil lugares a cada seis dias, e nenhum governo tem nem os meios financeiros nem a capacidade administrativa de fazê-lo” (Wacquant, 2003, p. 90).

Do passado libertário, revolucionário sobrou pouco e, por isso, ao sistema não preocupa mais o proletariado, mas sim o lumpemproletariado, ou miseráveis de toda sorte que engordam as prisões. Esse novo investimento mercantil é exaustivamente noticiado por Wacquant (2003, p. 90). Para coroar essa nova política de encarceramento da miséria, cujos lucros são visíveis na América e que se espalham como forte ideologia pelo resto do mundo, ainda lembra Wacquant (2003, p. 92) que, para uma segunda estratégia de redução dos custos neste setor, os detentos e seus familiares são obrigados a assumir parte das despesas com a prisão.

O comércio do cárcere chegou ao ponto de se manter contratos entre as penitenciárias e algumas firmas especializadas em cobranças de dívidas, a fim de se garantir que os condenados postos em liberdade condicional, realmente paguem pelos aluguéis atrasados, quando de suas saídas do presídio. Além do que, houve uma baixa nos investimentos relativos às atividades de reabilitação como, por exemplo, os programas de alfabetização. Não pode haver exemplo melhor do que este para a “ideologia puritana”, para quem “o trabalho enobrece” — se bem que caiu de moda o outro slogan: o de que o crime não compensa. Hoje, a criminalidade não só compensa, como também recompensa. A maximização do Estado Penal resulta no patrocínio de um “estado de terror” ou, no mínimo, de uma condição que se impõe por temor difuso, amedrontador.

Não é difícil perceber que a violência social retroalimenta a segurança privada, substituta do Estado na repressão à criminalidade. Também não é demais pensar que a lucratividade se eleva com o aumento da mesma violência que se julga combater. Os números são atualizados diariamente, contudo, já ultrapassaram a barreira moral dos R$ 12 bilhões ao ano, reunindo mais de 1,8 mil empresas em todo o País e com mais de 400 mil profissionais. Variados setores econômicos chegam a investir cerca de 20% do faturamento em segurança privada. Pode-se pensar, com lógica, que o crime alimenta uma poderosa indústria da segurança, legalizada.

Em um pensamento, o Estado Penal abdica da ação social em prol da repressão policial e isso reprime a soberania política antes, literalmente, invocada como condição essencial da vida social. A chamada segurança privada inteligente é resultado da segurança pública equivocada, errada, burra, pois o abandono das demais políticas públicas só agrava a crise social, a desigualdade econômica. Na prática, vê-se presos que cometeram o grave crime de furtar para matar a fome. Para entrar no sistema penal, a exclusão social empurra o preso. Em sua permanência, tem de provar ser capaz de sobreviver. Para sair, em geral, terá sorte de não ficar preso mais tempo do que merece. Quando sair, voltará a pressioná-lo a exclusão por meio do preconceito, da estigmatização. Por isso, em suma, em tempos de crise de significado nas ações políticas, diminuem as diferenças em acatar e atacar o Estado. Não é ironia, é cinismo e absurdo, um profundo contrassenso ético, que o Estado se converta no principal motor da injustiça social e da insegurança pública e institucional! O Estado que perde o controle social e o monopólio (legítimo) do uso da força física está fadado à crise de representação.

Insegurança pública: o pátrio poder público

            Em fase exponencial da globalização e das crises de significados, dá para dizer que “garantir o monopólio do uso legítimo da força física (violência) é a principal atribuição institucional do Estado”? Segundo esta célebre fórmula de Max Weber (1979), o monopólio pode ser equiparado como sinônimo de hegemonia? Sob a forma do Estado Policial em que vivemos, o controle social é uma “necessidade social”, como crença generalizada, que tem no Estado a salvaguarda do modo de vida ocidental, capitalista. Essa associação entre necessidade e efetividade relaciona e associa monopólio, hegemonia e legitimidade da força como instrumento de dominação política. O Estado Policial estabelece um novo roteiro, um verdadeiro sistema de defesa de valores e bens não-concretamente sociais. Na análise de alguns dos elementos de sua superestrutura, da cultura (política), das instituições (ideológicas e repressivas) e dos valores (morais, éticos ou simplesmente individualistas), destacam-se o direito contratual – e no seu descumprimento se aplica o direito penal –, o status quo, a “estabilidade social” para sempre consumir, a “previsibilidade” para o lucro fácil.

Neste aspecto, é um tipo de Estado que rearticula consenso e coerção; como centauro da política ora imprime a força bruta no controle social ora vai espargir a crença, o dogma, a própria ideia ou sentimento de necessidade no uso da força, sob a forma da segurança e da ordem pública (Estado Penal). Portanto, funciona o mito da política quando se crê na necessidade do uso da força como monopólio do Estado. Em alguns casos, consenso e coerção estão em metamorfose, em plena articulação – o que leva à sensação de uma confusão aparente. Em certos casos, o direito não simboliza o consenso, mas sim a coerção e, ao contrário, a violência institucional torna-se algo do cotidiano, assimilada pelo senso comum, com naturalidade, como força natural da vida social. No estágio atual do Estado globalizado, ao contrário do que supunha o pensamento social clássico, vigora o direito penal e não o contratual – e seu apelo se infunde como uma espécie de consciência pública, nos cursos de direito e na mídia. Assim, o direito penal, como base e infusor do senso comum – e ainda que não se compreenda nenhum de seus princípios em profundidade – retrata um consenso, assimilação ou coerção?

Para compreender esta fase, em que se associam monopólio da força e hegemonia cultural-política (concreta, existencial), basta pensar que a força pode estar na simples negação do direito e não exatamente na aplicação da violência. Alguns de seus efeitos e elementos imiscuem, misturam-se no apelo para o recrudescimento das penas, na crescente criminalização das relações sociais, quando se inaugura um presídio de segurança máxima, no momento em que o Estado de Sítio maquia o golpe constitucional. Desse modo, a segurança se generaliza, torna-se um valor tirânico, como praticamente o único, o último recurso da força do Estado. E, de forma decorrente, provocando-se a infantilização das relações sociais, há um apelo e apego ao pátrio poder e tanto mais se reprime, quanto mais se anseia pela repressão.

 

Bibliografia

WACQUANT, Loïc.As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008.

_____ Os condenados da cidade: estudo sobre marginalidade avançada. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005. 

_____ Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003. 

WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.

 

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo


[6]As armas da facção são alugadas aos próprios bandidos.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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