Quinta-feira, 15 de novembro de 2012 - 12h50
O coração tem razões
que a própria razão desconhece
Pascal
RESUMO: o texto aborda o princípio da racionalidade, desenvolvido a partir da perspectiva de Max Weber, aplicado ao direito. É certo que a racionalidade em Weber recobre as principais esferas da vida; contudo, no que se aplica ao direito, trata-se de configurar uma dominação legítima.
PALAVRAS-CHAVE: racionalidade; legitimação; Estado de Direito; Sociologia Jurídica.
No texto veremos uma abordagem em que o direito se alinha à racionalidade como processo humano-genérico civilizatório. Por racionalidade se entende a quase-infinita busca pela explicação lógica das coisas, o que não exclui a sensibilidade, os sentimentos, a própria razão, a criatividade. Como se trata de uma construção humana, a razão (e a emoção) não permite um retrocesso cognitivo: a jaula de ferro (Weber) nunca será desfeita, o homem nunca irá duvidar da lei da gravidade ou das equações matemáticas ou da capacidade social da humanidade.
A construção de parâmetros racionais auto explicativos do homem e de suas sociedades é evolutiva e, por isso, a compreensão que fazemos de nós e da natureza é mais compensatória, humanizadora, inteligente, precavida, preventiva. Esta construção humano-genérica nos permite afirmar que o próprio desenvolvimento da razão nos trouxe a capacidade de inquirir, duvidar e “esse direito de duvidar” é o que nos construiu como pessoas e não como animais domesticados.
A dúvida nos permitiu deixar de acreditar no poder divino do Faraó assim como confirmou nossa crença na capacidade civilizadora do direito; no início da atividade econômica, a racionalidade jurídica deu salvaguardas aos investimentos e aos produtores, hoje afinamos nossa crítica no poder corruptivo do capital. Uma forma de entender a afirmação de que o direito atua como motor do processo civilizatório é seguir a história evolutiva do próprio direito (como conjunto complexo dos direitos humanos).
O que ainda nos obriga a apontar o direito como fundamento da racionalização que originou tanto a religião, quanto a ciência, a ética e a civilidade como princípio. Por isso esse processo civilizatório é coletivo, decorre da condição humana propícia à inclusão dos agentes sociais e dos sujeitos de direitos na realização da complexidade social em que se inserem. Se o processo implica na capacidade civilizatória do direito, obviamente, não pode ser seletivo, necessita se estender como uma rede, uma complexa trama social e que é tecida em conjunto (complexus).
O direito é civilizatório porque substitui outros meios na solução dos conflitos de interesse, como a tradição, a violência, o oportunismo. A presumida legalidade supõe que a anterioridade e a generalidade do estatuto legal imponham-se com a imparcialidade e a isenção de ânimo requeridas ao julgamento dos fatos (e não na base do julgamento de valores). A racionalidade aplicada às relações sociais, enfim, trouxe a crença no direito como mecanismo de controle social: “a qualquer instante, poderíamos, desde que quiséssemos, provar que não existe nenhum poder misterioso e imprevisível sobre nossas vidas”. É preciso ter clareza que se o direito é um meio de controle social, por outro lado, também é regulado socialmente: em desajuste, o direito perde legitimidade social e, consequentemente, a efetividade.
A racionalidade nos serviria de prova de que dominamos amplamente o curso escolhido para as nossas vidas. Portanto, a razão é dominação sobre os homens ou sobre a natureza (o que não deixa de ser uma atualização do famoso “saber é poder”, de Francis Bacon[1]). Há uma previsão racional de que o direito seja o melhor instrumento para se afirmar a dominação social. Todavia, não se trata de reconstruir toda a história da racionalidade e nem de se prolongar o debate sobre o “direito como razão”, mas apenas de indicar como o direito civilizatório tem uma função social reguladora, constituindo-se em objeto da sociologia jurídica em Max Weber.
O Estado de Direito em Weber
Considerado como o último dos clássicos, Weber nomeia o Estado Racional. Não se pronuncia em termos de um Estado de Direito, propriamente dito, porque sua concepção não se restringia ao apelo jurídico. A racionalidade humana que se construiu ao longo de nossa longa história, teria seus reflexos no direito. Ou seja, a racionalidade, como processo humano, tinha apenas uma dimensão jurídica, alinhada à própria racionalidade política, econômica, artística. Como se sabe, o processo crescente da racionalização vem ocorrendo há milênios (o desenvolvimento do movimento de pinça envolvendo os dedos polegar e indicador é um claro sinal) e no período do Neolítico houve um salto gigantesco. Porém, a intelectualização ganhou relevo nos últimos séculos e com isso a própria ideia de que a racionalização é o exercício do domínio sobre o conhecimento. Além da confiança no direito, o homem moderno terá a ciência por vocação:
O progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios [...] A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente acerca das condições em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastando que o quiséssemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo (Weber, 1993, p. 30).
A racionalidade, neste sentido, pode-se dizer que não seja nem boa, nem má e muito menos neutra, isto é, certamente é política. Porém, Weber destaca somente o que significa para o homem médio, comum, este fardo do cotidiano, este peso e encargo trazido pelo desencantamento do mundo (o fim das cômodas explicações mágicas): como aplicar o método do meio dia[2]e suportar a falta do que celebrar? Na montagem dos tipos ideais de dominação, em que o direito racional é o preferível, por ser perfectível, Weber se utiliza do método comparativo (mas também do trabalho histórico-empírico), iniciando a análise pelo tipo mais recente, mais moderno, para, então, retroagir na formação histórica mais distante. A dominação, de qualquer tipo, portanto, pressupõe elementos básicos, tais como: obediência imediata; aceitação acrítica[3]; pretensão de legitimidade válida e relevante; consolidação dos meios de dominação[4]. Em Weber:
A “legitimidade” de uma dominação — já que guarda relações bem definidas para com a legitimidade da “propriedade[5]” — tem um alcance que de modo algum é puramente “ideal”. Nem toda “pretensão” convencional ou juridicamente garantida pode ser chamada “relação de dominação” [...] Quando um grande banco é capaz de impor a outros um “cartel de condições”, isto não se pode chamar de “dominação” enquanto não exista uma relação de obediência imediata, de forma que sejam dadas e controladas em sua execução instruções por sua direção, com a pretensão e a probabilidade de que sejam respeitadas pura e simplesmente como tais [...] A obediência de um indivíduo ou de grupos inteiros pode ser dissimulada [...] O decisivo é que a própria pretensão de legitimidade, por sua natureza, seja “válida” em grau relevante, consolide sua existência e determine, entre outros fatores, a natureza dos meios de dominação escolhidos (Weber, 1999, p. 140).
Porém, em Weber, movido pela ação do “individualismo metodológico”, é preciso que se destaque certa “psicologia da dominação”, ou seja, que haja uma “obediência total” ou “resignação absoluta do indivíduo” entregue à dominação: “Obediência significa, para nós, que a ação de quem obedece ocorre substancialmente como se este tivesse feito do conteúdo da ordem e em nome dela a máxima de sua conduta, e isso unicamente em virtude da relação formal de obediência, sem tomar em consideração a opinião própria sobre o valor ou desvalor da ordem como tal” (Weber, 1999, p. 140). Sem dúvida, todo e qualquer “subjetivismo” analítico e interpretativo, diante da ordem expressa e válida (regra social ou norma jurídica), deve ser afastado de pronto e desconsiderado. Desse modo, a dominação deve produzir efeitos duradouros, trazendo influências para além da relação específica, para além da relação espaço-temporal estabelecida e em que se consubstanciou originalmente. Portanto, dominação é sucumbir sem resistência à ordem legítima. Pode-se dizer que, atualmente, a dominação legal se baseia em todos os princípios de direito e em todo o ordenamento jurídico de um determinado Estado de Direito, mas Weber irá detalhar essas atribuições:
1. que todo direito, mediante pacto ou imposição, pode ser estatuído de modo racional – racional referente a fins ou racional referente a valores (ou ambas as coisas) – com a pretensão de ser respeitado pelo menos pelos membros da associação, mas também, em regra, por pessoas que, dentro do âmbito de poder desta (em caso de associações territoriais dentro do território), realizem ações sociais ou entrem de determinadas relações sociais, declaradas relevantes pela ordem da associação; 2. que todo direito é, segundo sua essência, um cosmos de regras abstratas, normalmente estatuídas com determinadas intenções; que a judicatura é a aplicação dessas regras ao caso particular e que a administração é o cuidado racional de interesses previstos pelas ordens da associação, dentro dos limites das normas jurídicas [...] 3. que, portanto, o senhor legal típico, o “superior”, enquanto ordena e, com isso, manda, obedece por sua parte à ordem impessoal pela qual orienta suas disposições; 4. que [...] quem obedece só o faz comomembro da associações e só obedece ao “direito”[6]; 5. [...] que os membros das associação, ao obedecerem ao senhor[7], não o fazem à pessoa desse, mas, sim, àquelas ordens impessoais e que, por isso, só estão obrigados à obediência dentro da competência objetiva, racionalmente limitada, que lhe for atribuída por essas ordens (Weber, 1999, p. 142)[8].
Como complemento, os quesitos da dominação legal podem ser assim enumerados:
1. um exercício contínuo, vinculado a determinadas regras, de funções oficiais, dentro de 2. determinada competência[9], o que significa: a) um âmbito objetivamente limitado, em virtude da distribuição dos serviços, de serviços obrigatórios, b) com atribuição dos poderes de mando eventualmente requeridos e c) limitação fixa dos meios coercivos eventualmente admissíveis e das condições de sua aplicação [...] autoridade instituída 3. o princípio da hierarquia oficial, isto é, de organização de instâncias fixas de controle e supervisão para cada autoridade institucional, com o direito de apelação ou reclamação das subordinadas às superiores [...] 4. As “regras” segundo as quais se procede podem ser: a) regras técnicas; b) normas. Na aplicação destas, para atingir racionalidade plena, é necessária, em ambos os casos, uma qualificação profissional [...] uma especialização profissional, e só estes podem ser aceitos como funcionários [...] 5. Aplica-se o princípio da separação absoluta entre o patrimônio (ou capital) da instituição (empresa) e o patrimônio privado (da gestão patrimonial), bem como entre o local das atividades profissionais (escritório) e o domicílio dos funcionários. 6. Em caso de racionalidade plena, não há qualquer apropriação do cargo pelo detentor[10][...] 7. Aplica-se o princípio da documentação dos processos administrativos, mesmo nos casos em que a discussão oral é, na prática, a regra ou até consta no regulamento [...] (Weber, 1999, pp. 142-143).
Weber ainda chama atenção para a necessidade de detalhar a compreensão da dominação burocrática, dentro do quadro administrativo:
1. são pessoalmente livres; obedecem somente às obrigações objetivas de seu cargo; 2. são nomeados (e não eleitos) numa hierarquia rigorosa dos cargos; 3. têm competências funcionais fixas; 4. em virtude de um contrato, portanto, (em princípio) sobre a base de livre seleção segundo 5. a qualificação profissional — no caso mais racional: qualificação verificada mediante prova e certificada por diploma; 6. são remunerados com salários fixos em dinheiro [...] 7. exercem seu cargo como profissão única ou principal; 8. têm a perspectiva de uma carreira [...] 9. trabalham em “separação absoluta dos meios administrativos” e sem apropriação do cargo; 10. estão submetidos a um sistema rigoroso e homogêneo de disciplina e controle de serviço (Weber, 1999, p. 144).
O próprio Weber se encarregaria de ratificar a tese central sobre a forma de dominação mais desenvolvida racionalmente, para depois externar seu pensamento em uma fórmula:
A administração puramente burocrática, portanto, a administração burocrático-monocrática mediante documentação, considerada do ponto de vista formal, é, segundo toda a experiência, a forma mais racional de exercício de dominação, porque nela se alcança tecnicamente o máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade — isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados —, intensidade e extensibilidade dos serviços, e aplicabilidade formalmente universal a todas as espécies de tarefas (Weber, 1999, p. 145).
Como diz Weber, é este conjunto formado por juridicidade e racionalidade administrativa que constitui a célula germinativa do moderno Estado ocidental – e que para o jurista do século XIX coincide com a formação do Estado de Direito[11]. No mesmo sentido, refere-se Julien Freund:
A burocracia é, como vimos, o exemplo mais típico do domínio legal. Repousa nos seguintes princípios: 1º, a existência de serviços definidos e, portanto, de competências rigorosamente determinadas pelas leis ou regulamentos, de sorte que as funções são nitidamente divididas e distribuídas (...) 2º, a proteção dos funcionários no exercício de suas funções, em virtude de um estatuto (efetivação dos juízes, por exemplo) (...) 3º, a hierarquia das funções[12], o que quer dizer que o sistema administrativo é fortemente estruturado em serviços subalternos e em cargos de direção, com possibilidade de recurso da instância inferior à instância superior; em geral, esta estrutura é monocrática e não-colegiada e manifesta uma tendência no sentido da maior centralização; 4º, o recrutamento se faz por concurso, exames ou títulos, o que exige dos candidatos uma formação especializada. Em geral, o funcionário é nomeado (raramente eleito) com base na livre seleção e por contrato; 5º, a remuneração regular do funcionário sob a forma de um salário fixo e de uma aposentadoria quando ele deixa o serviço público (...) 6º, o direito que tem a autoridade de controlar o trabalho de seus subordinados, eventualmente pela instituição de uma comissão de disciplina; 7º, a possibilidade de promoção dos funcionários com base em critérios objetivos e não segundo o livre arbítrio da autoridade; 8º, a separação completa entre a função e o homem que a ocupa, pois nenhum funcionário poderia ser dono de seu cargo ou dos meios da administração (Freund, 1987, p. 170-171).
Pois bem, tendo em conta estes pressupostos do Estado Racional, vejamos o porquê de nos reportarmos ao Estado Moderno (saibamos que se trata de um Estado moderno, racional), sobretudo como Estado soberano, centrado, centralizado (e centralizador), unificado e apto a realizar os próprios interesses comerciais expansionistas.
Max Weber: uma vida acadêmica e política
Podemos encontrar pistas da crença na racionalidade nos moldes familiares em que cresceu Weber, sofrendo influências decisivas de dois polos diferentes: o pietismo protestante da mãe e um pragmatismo político-profissional do pai. É provável que esse choque o tenha direcionado para a exploração da dimensão ética do cotidiano, permitindo-lhe observar uma noção de ética que inclui a responsabilidade individual e cotidiana. Uma ética diferente daquela que atribui tudo a um Estado ou a algum ente superior. Weber terá, desde muito novo, uma vida pública incomum, distinta – uma duplicidade acadêmica e política: educação humanista apurada[13]. Na maioridade, já perto da morte, participou das discussões e da elaboração da conhecida Constituição de Weimar (1919), tida como um dos três documentos[14]de sustentação do Estado de Direito: o modelo estatal predominante. Sua ideação tinha certa familiaridade prática, sobretudo nos temas do Estado de Direito e, de certo modo influenciado por isto, como modelo criado para referenciar a sociedade, o direito precisaria se cercar de objetividade; afinal só se alcança alguma racionalidade no meio social com medidas, instrumentos, orientações e avaliações objetivas.
Objetividade: o direito como ciência social
Apenas as ideias de valor que dominam o investigador e uma época podem determinar o objeto do estudo e seus limites. Porque só é uma verdade científica aquilo que pretende ser válido para todos os que querem a verdade (Max Weber).A objetividade do mundo (a cultura) fala diretamente à subjetividade do autor (suas afinidades eletivas). Como vimos, o direito é um modelo construído para referenciar a sociedade. Por sua vez, os modelos ideais são constructos objetivos, nem puramente teóricos (livres do mundo) nem puramente sócio-culturais:
A conceituação da Sociologia encontra seu material, como casos exemplares e essencialmente, ainda que não de modo exclusivo, nas realidades da ação consideradas também relevantes do ponto de vista da história [...] Em todos os casos, racionais como irracionais, ela se distância da realidade, servindo para o conhecimento desta da forma seguinte: mediante a indicação do grau de aproximação de um fenômeno histórico a um ou vários desses conceitos torna-se possível classificá-lo [quanto ao tipo]. O mesmo fenômeno histórico, por exemplo, pode ter, numa parte de seus componentes, caráter “feudal”, noutra parte, caráter “patrimonial”, numa terceira, “burocrático” e, numa quarta, “carismático”. Para que com estas palavras se exprima algo unívoco, a Sociologia, por sua vez, deve delinear tipos “puros” (“ideais”) dessas configurações, os quais mostram em si a unidade conseqüente de uma adequação de sentido mais plena possível, mas que, precisamente por isso, talvez sejam tão pouco freqüentes na realidade quanto uma reação física calculada sob o pressuposto de um espaço absolutamente vazio. Somente dessa maneira, partindo do tipo puro (“ideal”), pode realizar-se uma casuística sociológica [...] Mas os conceitos construtivos da Sociologia são típico-ideais não apenas externa como também internamente. A ação real sucede, na maioria dos casos, em surda semiconsciência ou inconsciência de seu “sentido visado”. O agente mais o “sente”, de forma indeterminada, do que sabe ou tem “clara” ideia dele [...] Mas isto não deve impedir que a Sociologia construa seus conceitos mediante a classificação do possível “sentido subjetivo”, isto é, como se a ação, seu decorrer real, se orientasse conscientemente por um sentido (Weber, 2004, pp. 12-13).
Toda ação social acaba sendo comparada a um tipo ideal:
Esse modelo distinto envolve seis processos sociais e culturais fundamentais e largamente ramificados: 1. o desencanto e a intelectualização do mundo, e a resultante tendência a ver o mundo como um mecanismo causal sujeito, em princípio, ao controle racional; 2. o surgimento de um ethos de realização secular impessoal, historicamente alicerçado na ética puritana da vocação; 3. a crescente importância do conhecimento técnico especializado em economia, administração e educação; 4. a objetificação e despersonalização do direito, da economia e da organização política do Estado, e o consequente recrudescimento da regularidade e da calculabilidade da ação nesses domínios; 5. o progressivo desenvolvimento dos meios tecnicamente racionais de controle sobre o homem e a natureza; e 6. a tendência ao deslocamento da orientação da ação tradicional e assente em valores racionais (wertrational) para a ação puramente instrumental (zweckrational) (Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 642).
A racionalidade acompanha este processo de desencantamento do mundo porque deixamos de crer em tudo o que não se veja acompanhar da lógica explicativa, verificável empiricamente, cientificamente. Mas, é de se frisar que o desencantamento do mundo não é uma construção científica, mas verdadeiramente humana e nos acompanha em todas as esferas e setores da vida:
E não só o pensamento teórico, desencantando o mundo, levava a essa situação, mas também a própria tentativa da ética religiosa de racionalizar prática e eticamente o mundo[...] E em meio de uma cultura que é racionalmente organizada para uma vida vocacional de trabalho cotidiano, dificilmente haverá lugar para o cultivo da fraternidade acósmica, a menos que seja entre camadas economicamente despreocupadas. Sob as condições técnicas e sociais da cultura racional, uma imitação da vida de Buda, Jesus ou São Francisco parece condenada por motivos exclusivamente externos (Weber, 1979, p. 408).
Porém, com a racionalização, há uma crescente especializaçãoque também acompanha a divisão do trabalho intelectual:
“Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva e importante é sempre obra de especialista” (Weber, 1993, p. 24).
“Há um abismo, tanto visto de fora quanto visto de dentro, entre essa espécie de grande empresa universitária capitalista e o professor titular comum, de velho estilo. Isto se traduz até na maneira íntima de ser” (Weber, 1993, p. 20).
Weber estará atento para os sentidos, para as próprias intenções sociais – os sentidos ocultos do chamado senso comum – que não estão ao alcance pleno e imediato de todos os envolvidos nas próprias relações sociais. A pergunta clássica que o próprio Weber direciona a este aspecto é a seguinte: quem (re)conhece o verdadeiro significado de uma lei? Weber se refere tanto à lei, no sentido dogmático, quanto ao sentido empregado para lei social (fato social), e que lhe propicie conhecer em profundidade um determinado conjunto de relações sociais. Em síntese, para Weber, a sociologia é a ciência que objetiva compreender a atividade social pela interpretação, para depois explicar os efeitos dessa mesma atividade – ação social –, no contexto global das redes de relações sociais. E o direito será um eficaz instrumento na construção humana de alguns parâmetros racionais como orientação e controle social.
Bibliografia
BACON, Francis. Novum Organum & Nova Atlântida. São Paulo : Editora Nova Cultural, 2005.
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 4ª ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1987.
MALBERG, R. C. de. Teoría general del Estado. 2. reimp. Cidad México: Facultad de Derecho/UNAM : Fondo de Cultura Económica, 2001.
ORTEGA y GASSET, J. A Desumanização da Arte. São Paulo : Cortez, 1991.
OUTHWAITE, William. BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social do séculoXX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.
______ O Estado Racional. IN : Textos selecionados (Os Pensadores). 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1985, p. 157-176.
______ Sociologia. 4ª ed. São Paulo : Ática, 1989.
______ Sobre a universidade. São Paulo : Cortez, 1989b.
______ Metodologia das Ciências Sociais. Parte I e II. São Paulo : Cortez ; Campinas-SP : Editora da Universidade de Campinas, 1992.
______ Ciência e Política: duas vocações. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1993.
______ A ética protestante e o espírito capitalista. 8ª ed. São Paulo : Livraria Pioneira Editora, 1994.
______ Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I e II. Brasília-DF : Editora Universidade de Brasília : São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 1999.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
[1]O que movia Bacon à pesquisa era o “progresso do saber”, reformulando-se totalmente o conhecimento humano. Por isso, Bacon tanto criticou os escolásticos, os alquimistas e os “empíricos” – impotentes – porque não eram metódicos ou não produziram um todo coerente. O filósofo natural deveria se parecer com a “abelha”. Para Bacon, o saber deveria ser ativo e fecundo em resultados práticos. Afirmou em suas obras que o “saber é poder”. O real interesse do saber está em conquistar a natureza: o saber não tem valor em si mesmo. Seu utilitarismo reconhecia o saber em sua totalidade e não apenas em “aplicações imediatas”. Bacon desejava que a ciência servisse à humanidade. Fora chamado de “filósofo da idade industrial” pelo estreito vínculo com o mecanismo (base do futuro Estado Cientificista). Criticou o que chamou de Ídolos ou falsas imagens (falso Deus) que obstaculizam a pesquisa: “O fim da nossa instituição é o conhecimento das causas e dos segredos dos movimentos das coisas e a ampliação dos limites do império humano para a realização de todas as coisas que forem possíveis” (Bacon, 2005, p. 245).
[2]A precisão necessária à previsão advém da extrema clareza, como diria Ortega Y Gasset, à procura ou já propondo um método claro-escuro, em que as interpretações estejam expostas à luz do meio-dia: “Eu sou um homem espanhol que ama as coisas em sua pureza natural, que gosta de recebê-las tal e como são, com claridade, recortadas pelo meio-dia, sem que se confundam umas com outras, sem que eu ponha nada sobre elas: sou um homem que quer, antes de tudo, ver e tocar as coisas e que não se contenta imaginando-as: sou um homem sem imaginação” (Ortega y Gasset, 1991, p. 9 – grifos nossos).
[3]Nos mesmos moldes em que Parsons definia a aceitação dos grupos sociais.
[4]Sem dúvida, há um clima de ameaça, o que decorre da coerção – como já dissera Durkheim.
[5]No capitalismo tanto é legítimo ser proprietário que a propriedade se tornou direito fundamental na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
[6]No Estado de Direito descrito por Weber, deve-se obediência às regras estabelecidas e adotadas e não ao sujeito, como ocorre na dominação tradicional e/ou carismática.
[7]Neste caso, seriam as autoridades e os superiores hierárquicos do próprio gestor e/ou servidor público.
[8]Há que se ressaltar que o Estado de Exceção inseriu medidas de exceção no coração da regra, mas o fez legitimando-se passo a passo como Estado de Direito.
[9]Refere-se ao direito de agir que alguns têm, em razão da atividade específica que desempenham, a exemplo da magistratura — não se refere a conhecimento, mas sim a esta possibilidade técnica, a esta autorização.
[10]Isto deveria evitar o “culto à personalidade”, a síndrome do pequeno poder, bem como o corpo administrativo não deveria gerar formas de poder pessoal.
[11]Por conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das habilitações legais [...] O regime do Estado de Direito significa que não poderão impor-se aos cidadãos outras medidas administrativas, que não sejam aquelas que estejam autorizadas pela ordem jurídica vigente, e, por conseguinte, exige-se a subordinação da administração tanto aos regulamentos administrativos quanto às leis (Malberg, 2001, pp. 449-461 – grifos nossos).
[12]Equivale a ressaltar a divisão de funções que, classicamente, decorre da separação de poderes.
[13]Perfeitamente distinguível no texto Ciência e Política: duas vocações.
[14]Será somada à Constituição Mexicana, de 1917, e à Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (Constituição Russa, de 1917-18).
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