Domingo, 21 de outubro de 2012 - 09h24
Quando se tem a obrigação funcional ou moral de velar e cuidar da vida, da integridade e da dignidade de outras pessoas, por razão de ofício ou função, e não o faz, comete-se grave crime. Se o sujeito sabe que diretamente dos seus cuidados dependem outras vidas, agindo equivocadamente ou por omissão, comete crime doloso.
Se eu sei que o idoso precisa de remédios regularmente e não os oferto, estou condenando-o à morte. Se a criança precisa de educação e da escola para se tornar um adulto íntegro, e não o fazemos como pais, nós a condenamos à ignorância e perda da própria vida, pois seria sempre um sujeito incompleto, analfabeto e indiferente aos signos integradores da modernidade. Esta criança estaria condenada a viver na Idade Média.
Do mesmo modo, se somos responsáveis pela vida e dignidade dos presos, e por falta de qualquer atenção, respeito, interesse, não reparamos ou arrumamos as condições materiais de sua reclusão e, por causa disso, resulta que sete presos são queimados vivos, nosso crime é doloso. Na verdade, quem vai julgar é a justiça de Rondônia, mas a perícia é bastante clara quanto à omissão, inclusive em entrevistas pela TV.
De todo modo, não bastasse a chacina do Urso Branco que levou o Brasil ao banco dos réus na Corte Interamericana, vimos há cerca de seis meses este crime absurdo de omissão, não reparando o prédio que abrigava dezenas de presos, e que acabou em torresmo humano. Quem diagnosticou toda a extensão de responsabilidades geradas pela omissão dolosa foi a perícia dirigida pelo inquérito policial e também capitaneada pelo Governo do Estado.
Há mais de um ano, foi expedido um laudo técnico dizendo, alertando para o perigo inerente de incêndio naquele prédio – que mais parecia uma baia –, por falta de material de qualidade. Repare-se que a reforma do prédio não ultrapassava um ano. Quer dizer, reformou-se algo muito ruim para alojar pessoas, este lugar ficou apenas ruim, pela péssima qualidade do trabalho, e depois arruinou-se totalmente com o incêndio.
Então, os responsáveis pela reforma, alertados há um ano, logo após o trabalho, do perigo iminente à vida dos envolvidos, por sua omissão, não concorreram com a “sorte” (morte) daquelas pessoas? A justiça dirá.
Para os que também defendem penas cruéis, está aí um bom exemplo de que sempre se aplicou a pena de morte no Brasil. Neste caso, há ainda a concorrência das qualificadoras: crueldade, impedimento de meios de defesa, motivo fútil. Essas pessoas, naquele momento na condição de presos, foram condenadas à morte na fogueira da incompetência. Ou será que esse tipo de execução não revela que o Brasil, Rondônia citada é claro, voltou à Idade Média? Pena de morte na fogueira, para os que serão queimados vivos, como na inquisição, é esse exemplo de direito que queremos deixar para nossos filhos? Quer dizer que a civilização, nossa própria urbanidade, nos obrigou a matar sete pessoas queimadas vivas, porque os fios estavam velhos, carcomidos e isso gerou um curto-circuito e o fogo se alastrou?
Volto a dizer aos que defendem a pena de morte, convido-os a presenciar de perto, bem de perto a próxima chacina em presídios, porque com certeza vai ocorrer, só não se sabe quando. Fique bem perto e sinta o cheiro da carne queimada, torrada, não vai haver mal passado. Imagine que aquele forno humano funciona como se fosse uma cadeira elétrica, só que aplicada lentamente, queimando aos poucos, aplicando-se muita dor em corpos e almas retorcidas pelo sadismo moral, em nome da justiça, da vingança pública, pudica.
Certamente, a experiência vai tornar o espectador um ser humano melhor, mais racional, mais digno da condição humana que ele mesmo negou aquele que foi condenado à morte. Caro carrasco, usufruamos do show. Aliás, por que não organizamos um reality show com as postas humanas? Em nosso torresmo moral diríamos com a boca salivando de ódio: “senhoras e senhores, sejam bem vindos à civilização, abençoada à ‘imagem e semelhança de Deus’, peguem seus bifes e lascas humanas, bebam do puro-sangue ariano e aproveitem o show”.
Imagine, lembre-se você que defende a morte antecipada dos presos, especialmente em churrascos públicos, que o forno crematório humano também foi amplamente usado pelos nazistas, no Holocausto, contra judeus, comunistas, homossexuais, pobres e desertores. Recorde-se que muitos milhões de pessoas foram queimados, incinerados pelo bem da Humanidade. Para restaurar os genes do homem de bem, por eles chamados arianos, os nazistas torturavam, matavam e queimavam, mas não necessariamente nessa ordem.
Por isso, sempre que defendem a pena de morte e sempre que me lembro desses sete infelizes queimados aos gritos de dor, penso que o nazismo está entre nós – para o nosso bem, é claro.
Quando vejo situações como essa apenas lamento o fato de eu mesmo ser humano. O pior de tudo é imaginar que esta brutalidade é inerente ao ser humano, a todos nós, como se não tivéssemos nos desvencilhado do animal pré-histórico, autofágico, grotesco que esteve em nossa origem. Mas, me recuso a dividir a mesa com os trogloditas e as suas escatologias.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
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