Sábado, 11 de fevereiro de 2017 - 21h07
* Yêdda Pinheiro Borzacov
Se quisermos penetrar no saber de uma geração, no universo das emoções, das expectativas, das atitudes morais e mentais que a nortearam, devemos consultar não os livros de História, mas as obras de arte. Por detrás das linhas, do jogo de cores, do volume dos objetos, está a ideologia do artista e do tempo em que viveu. Nada é mais transparente, nada capta melhor o individual e o social, que a obra de arte. Só ela, com a precisão de um radar, anuncia o presente, o futuro, desvenda o passado, inquieta, intriga, elucida.
Ao analisar a obra da artista plástica Rita Queiroz, temos que regressar ao passado, retornar às suas raízes familiares, para explicar os enigmas do presente. Só através do fio imutável dos acontecimentos consegue-se integração da vida espiritual, é pela reunião dos fragmentos do tempo que se tem o desenho da existência.
A vida de Rita Queiroz, suas lembranças, sua maneira de ser e de estar no mundo, acham-se intimamente ligadas aos barrancos do Madeira, onde nasceu e viveu parte da sua infância. Os seus primeiros desenhos foram feitos na terra, que tratava como companheira, sentindo-se feliz de estar perto dela. Iniciou a desenhar e pintar por instinto.
Cada obra de Rita tem sua identidade, sua impressão digital, algo que a distingue de qualquer outra. Suas árvores, seus igarapés, suas palhoças, as pessoas que ali vivem, o céu que os cobre, a luz que põe tons de dourado nas árvores, tudo isso marca um espaço na memória da artista que nasceu e viveu em lugares semelhantes.
Na sua primeira fase, projetou paisagens rondonienses. Depois, crianças pobres, mutiladas, reflexo da infância difícil no interior de Rondônia. A sua preocupação social a conduziu ao amadurecimento artístico, pelo drama dos seringueiros, dos beradeiros, dos lavradores. Sua arte, passada da contemplação ao protesto, na busca do sentido da vida, não foi apenas para interrogar o papel do homem no mundo, mas para ser o agente das transformações sociais. Algumas telas dessa fase, como “O Lavrador”, e “O Garimpeiro” são impregnadas do calor da terra e da água marcadas pela força corporal para tirar o sustento da terra e do rio.
Ao analisar as diferenças sociais das lavadeiras, dos lavradores, dos seringueiros, dos beradeiros, seus hábitos, seu confinamento em palhoças de pobreza e solidão, Rita os recria, em pinceladas rápidas que restituem, em toques de vermelho, azul e verde, as sensações provocadas pelos personagens num estágio primitivo da condição humana. Rita representa toda uma comunidade que sofre, ama e sente os problemas da sua terra, da sua gente. Rita enfatiza a função social da arte: uma tela não se destina apenas a ser colocada na parede, mas a mudar o comportamento do homem.
Ao pintar na tela a solidão espacial do homem – “Igarapé Mururê”, perdido num mundo sem soluções, Rita parece querer atingir a memória anterior à História do universo como se pretendesse ultrapassar o “Espelho do Igarapé da Lua” (outra das suas obras), para eliminar a morte final e reencontrar o germe da vida. Descobre-se a sua mundivivência, e uma tomada de posição concernente à divulgação da Cultura Rondoniense, ao apreciarmos “Vingança Abaeté”, tragédia ocorrida no rio Machado, durante a permanência da Comissão Rondon na região. Trata-se da vingança de Abaitará contra o guerreiro Arumany que havia matado seu velho tio Tatibu por ciúmes, em razão desse último ter casado com a mais bela “cunhaquira” da tribo, por quem Arumany se apaixonara.
Sua obra mais significativa e importante, que a projetou internacionalmente, foi “As Lendas da Amazônia”. Nessas telas, percebe-se que Rita vale-se de si mesma. Usa a força: suas mãos, seus sentimentos e suas tintas. Seus personagens foram o Boto, Mãe D’Água, Mapinguari, Urutaí e Cobra Norato, dentre outros, constituindo o universo semântico próprio, no qual os elementos se interligam para revelar o caráter da percepção de uma mulher que recriou o mundo imaginário do nosso caboclo, por meio da arte.
Recebi o catálogo “Lendas da Amazônia”, da querida conterrânea e amiga, com dedicação carinhosa. Comovida, lembrei-me de que, em 1985, de uma conversa que tive com Rita e fiz-lhe este comentário: “Rita, se eu fosse artista plástica como você, produziria obras acerca de temas amazônicos, sobretudo sobre o nosso folclore, as lendas e os mitos da nossa região...”. Ao que Rita, entusiasmada com minha sugestão, exclamou:
— E onde, Yêdda, eu poderia pesquisar, para criar essa obra?
Eu lhe respondi que poderia ler o livro “Viver Amazônico”, de autoria do médico, etnólogo e meu pai, Ary Tupinambá Penna Pinheiro, o qual é uma coletânea de lendas e mitos amazônicos. Mas esse livro ainda estava em fase de revisão para impressão pelo Ministério da Cultura. Mas, que se ela fosse ter com o autor, em sua casa, tinha certeza de que ele contaria as histórias, lendas e mitos regionais com alegria e prazer.
Rita assim o fez. Durante alguns meses, diariamente, anotava tudo que Ary Pinheiro lhe narrava – os relatos da sua vivência na Amazônia, de viva voz.
Sensibilizada com o tudo o que ouviu, ela criou sua fascinante obra “Lendas da Amazônia”, onde mergulhou na profundeza do nosso folclore, surpreendendo todos pela beleza dos temas, aliado à combinação de cores que sugerem o mundo encantado do nosso caboclo. Nela colocou toda a sua alma, tanto assim que, ao contemplá-la, lembrei-me do que Fernando Pessoa, amante da literatura, arte e beleza, escreveu: “Só a arte é útil. Crianças, exércitos, impérios, atitudes, tudo isso passa. Só a arte fica, por isso a arte vê-se, porque dura”.
Rita Queiroz é uma artista ligada a todas as questões do seu tempo. É capaz, além de criar obras fantásticas, de dialogar horas sobre a história da arte, de participar ao lado da classe por uma política cultural condizente com a realidade do Estado. É uma guerreira em luta para que a vida escape à morte pela magia da arte.
Uma complementação para a crônica publicada em meu livro “Rondônia Cabocla”: Uma faceta dessa conterrânea é continuar acreditando na vida de coração aberto, de olhar confiante, de risos nos lábios e de coração pronto para acolher o amor. Visualizando carências na área cultural governamental, sobretudo, na museológica, tomou a iniciativa que o tempo fará projetar o significado de seu gesto – a doação do seu acervo artístico para o Museu do Homem de Rondônia, unidade da Superintendência Cultural oficial.
A entrega – verdadeiro presente – ocorreu no dia do seu aniversário natalício, em dezembro de 2016. O presente deveria ser inverso, Rita Queiroz é que deveria receber um presente, como reconhecimento pela contribuição de forma muito positiva para dinamizar o movimento de artes visuais.
A artista plástica Rita Queiroz na abertura do 11º Encontro de Magistrados do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, em Porto Velho. Foto: Gente de Opinião.
* Yêdda Pinheiro Borzacov, da Academia de Letras de Rondônia, do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia, vice-presidente do Memorial Jorge Teixeira, da Academia Histórica Militar Príncipe da Beira, colunista do site Gente de Opinião e do jornal Alto Madeira.
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