Quinta-feira, 8 de janeiro de 2015 - 11h27
Yêdda Pinheiro Borzacov
Quando Porto Velho sediou a XXXIII Mostra de Quadrilhas e Bois-Bumbás, no Arraial “Flor do Maracujá”, nosso pensamento se volta, numa visão, para o admirável acervo folclórico que Rondônia oferece. A tradição se apresenta viva, como que atual, no que se refere ao folguedo do boi-bumbá. Muita coisa se tem perdido ao longo do tempo, por falta de receptividade e por falta de estímulo. Porém o boi-bumbá, símbolo da cultura popular rondoniense, conservado e preservado pela memória do povo, representa a presença viva de Rondônia no que se tem de mais característico e expressivo na cultura popular. E é essa tradição que a Mostra de Quadrilhas e Bois-Bumbás revive, para rondonienses e não rondonienses, unidos todos no mesmo sentimento de amor à tradição, que é a presença constante, em nossa época, do precioso legado de nossos antepassados.
O motivo do boi, no folclore, aparece através de um folguedo comum, mas que apresenta formas diferentes e diferentes nomes. Em Santa Catarina é denominado “boi mamão”; no Maranhão, Pernambuco e Piauí, “bumba-meu-boi”; no Ceará, chama-se “boi-de-reis” ou “boi-surubi”; no Rio Grande do Norte toma o nome de “boi-calembá”, “reis-de-bois”, ou ainda, “boi-calumbá”. Na Amazônia, o boi-bumbá é brincado na quadra junina e em agosto, mês do folclore, enquanto em outras regiões ele sai também na época de Natal.
Numa interpretação folclórica da composição do auto junino do boi-bumbá, a história desse folguedo, gira e vive, em torno do seguinte fato, como narram os “botadores de boi”, os folcloristas e as minhas reminiscências da infância e adolescência, redivivas no subconsciente:
Um certo fazendeiro mandara buscar um exemplar de raça, um touro, para melhorar seu rebanho. Ao chegar o animal na fazenda, o fazendeiro imediatamente se encheu de amor pelo bovino, tornando-o seu animal de estimação, o seu chamego, o seu xodó, o seu xerimbabo.
O boi, a cada dia que passava, ficava mais gordo e bonito. Era a “menina dos olhos do fazendeiro”, daí o ditado, de que a “vista do dono engorda o gado”.
O boi era tratado com requinte. Qualquer demora na sua ração, na soltura do pasto, no banho, na limpeza dos carrapatos, acarretaria castigos severos para os escravos.
Gozando de regalias, Pai Francisco e Catirina, escravos, agregaram-se ao compadre Cazumbá e Mãe Guimá, também escravos, e tinham moradia na própria fazenda onde cultivavam uma pequena roça. O boi costumava pastar nas cercanias onde existiam campos verdes e fartos.
Ora, estando Catirina de “criança crescendo”, veio-lhe o insistente desejo de comer um pedaço de carne do xerimbabo do fazendeiro. Chico percebendo os “olhares compridos” de Catirina para o boi, compreendeu de imediato, que a “sua velha” estava com vontade de comer um naco de carne do bovino. Se dele não comesse, perderia o bebê, em consequência do desejo não satisfeito no período de gestação.
Chico não vacilou. Entre deixar sua companheira ficar com a boca “cheia de água”, por causa do desejo, e ainda assistir sua mulher perder a criança, devido a não comer um naco de carne de boi, preferiu enfrentar a ira do amo, e pegando sua espingarda atirou certeiramente no boi e rapidamente retirou um bom pedaço de carne para satisfazer o desejo de Catirina, que se deliciou com o sabor da carne do gordo e nutrido xerimbabo.
Após a comilança, Chico percebendo a gravidade da situação, manda Catirina arrumar os seus “teréns” e fogem, acompanhados pelos fiéis compadres Cazumbá e Mãe Guimá. Fogem para ficarem livre do castigo que certamente lhes seriam afligido.
O amo, na hora contumaz, procurou o boi querido para fazer-lhe chamegos, carícias, não o encontrando. Desesperado, grita para o vaqueiro:
— Ó rapaz! /Me dá conta do meu boi de estimação! /Cadê o meu cheiroso?
O vaqueiro, descobrindo que o boi foi morto, informa o triste acontecimento, a perda do animal, cantando:
— Sendo eu o vaqueiro/ que ando na vaquejada,/ andei atrás do boi, achei morto na malhada.
O amo, profundamente triste e abalado, ao ter conhecimento que fora o Pai Francisco o causador de tamanha desgraça, ordena:
— Rapaz sela o cavalo,/ estou muito agoniado,/ tira o freio do Azulão/ E vai atrás do Chicão.
E o vaqueiro responde:
— Meu amo eu já selei,/ já podemo procurá,/ o pé istá no istribo/ no ponto de viajar.
Enraivecido, fora de si, o amo dá-lhe uma chibatada e o rapaz lastima:
— Cantando e chorando,/ por esse caminho,/ por causa do seu boi/ que Chico comeu.
Ao depararem com Pai Francisco, dão voz de prisão ao preto velho e aos seus companheiros, que corajosamente respondem:
— Nós tava drumindo no meu bananar,/ safadu du vaqueiro/ viero me acordá.
O rapaz, sentindo-se desmoralizado com o pouco caso do preto velho, dispara a espingarda, mas não atinge Pai Francisco, que reage mandando chumbo grosso, ferindo um dos vaqueiros e lançando em seu rosto esta toada:
— Escuta rapaz,/ me deixa in paz,/ cachorro do teu amo/ já vai te batê.
Os vaqueiros fogem, retornando à fazenda, informando ao amo do insucesso da prisão:
— Ai! Senhor meu amo,/ Chico me atirou/ nem bala, nem chumbo,/ nada lhe pegou.
O amo, ainda abalado pela morte do seu xerimbabo, intima o vaqueiro:
— Vem cá meu rapaz,/ vem já me dizê,/ o que o Chico disse/ eu quero sabê.
Tristemente o vaqueiro, humilhado, dá o recado ao amo que, indignado, envia carta à maloca dos índios, pedindo que procurem os matadores do seu boi. Os vaqueiros saem em disparada e, ao encontrarem o “diretor dos índios”, lhe entregam a carta, cantando:
— Boa noite “seu” diretô,/ Como está, como passô./ Venho lhe trazê uma carta,/ que meu amo lhe mandô!
O diretor aceita o convite e com os índios acompanha o rapaz e os vaqueiros no retorno à fazenda. Impaciente, o amo aguarda a resposta e não esconde sua satisfação ao vê-los chegar, pulando e soltando gritos de guerra, tendo à frente o “diretô”. Quando se defrontaram com o amo, os vaqueiros informam que os índios não podem ir à guerra, porque não foram batizados. O amo grita e pede que chamem o padre. Esse chega acompanhado do sacristão e é recebido com a cantiga:
— Sinhô padre reverendo,/ vigário da santidade,/ batiza esses cabocos,/ p´ra prendê matador do meu boi.
Os índios se ajoelham e o padre, espargindo água benta, canta a toada:
— Te batizo cabocos,/ ao som do tambor,/ p´ra irem p´ra guerra,/ com o Nosso Senhor!
E os índios, já batizados, empunhando flechas, arcos e tacapes, se levantam gritando. O amo, generosamente, faz questão de pagar ao padre e chama um dos vaqueiros pelo apelido:
— Vem cá Colibri,/ vai ao meu tesouro, / quero pagar o Padre,/ com moeda de ouro.
Os belicosos índios, brandando gritos de guerra, partem em busca de Pai Francisco que ainda procura escapar. Porém a indiada não deixa, e Chico finalmente se entrega, juntamente com a sua mulher Catirina e os compadres Cazumbá e Mãe Guimá. Vencido e acabrunhado, Pai Francisco canta:
— Com muita razão,/ os cabocos me prendero,/ se eu não matasse o tal boi,/ não ia nesta prisão.
Catirina, a fiel companheira, causadora da confusão, pensa em subornar os índios e tira um canto:
— Não chora não, Chico, não chora,/ nós não vai ficar na prisão,/ tenho um brinco de ouro/ que nos dá a salvação.
E Mãe Guimá, aterrorizada, quer sair da confusão e se desculpa:
— Nóis num sabemo,/ da morte do boi querido,/ não tava lá no momento,/ curpa nenhuma nóis temo.
Pai Francisco, aproveitando-se de um momento de descuido dos índios, foge, sendo preso em seguida. Ironizando e, agarrando a Catirina, dançando, faz gozação:
— Catirina mulata dengosa,/ Catirina mulata faceira,/ só anda na rua,/ com cheiro de cravo e rosa.
Ao chegar à presença do amo, escoltado pelos índios, é interrogado por que matou o boi de estimação, e responde com frases desconexas e tolas a história do desejo da Catirina. O amo não lhe dá muita confiança, ameaça-o, e pede que chamem o “doutor da medicina”, para ressuscitar o boi:
— Chama o doutô,/ P´ra curar meu boi,/ Que Chico matou.
O doutor, ao chegar, examina, apalpa o boi, balança a cabeça e diz que nada pode fazer. O boi está morto, “mortinho da silva”.
E Pai Francisco, desdenhoso, chama um médico, o “doutor da vida”, curandeiro de primeira, conhecedor de ervas e mezinhas. O “doutor da vida” aparece e, para dar nova vida ao boi, realiza um exorcismo, mandando dar um “chá de arruda” no boi. Para concretizar a “receita” escolhe um cidadão estranho, que, pela primeira vez assiste ao folguedo e, levantando o rabo do boi, coloca o nariz do cidadão “naquele lugar”. O boi, medicado com tal chá de arruda, solta um urro prolongado, outro urro, mais outro, e retorna à vida, sob os aplausos da multidão. O amo, regozijado com a ressurreição do boi, tira a cantiga:
— Já urrou, já urrou,/ meu boi de fama/ que Chico matou.
E o “diretor dos índios” solta a toada:
— Alevanta meu boi, alevanta,/ vai na fonte beber água,/ debaixo daquele morro,/ ao romper da madrugada.
O boi levanta sob aplausos e aclamação de todos, dança, balança e balanceia, investido contra a roda, faz evoluções coreográficas ao som das toadas:
— Lá vai, lá vai, lá vai,/ Pingo de Ouro da malhada,/ tentação das moreninhas,/ prenda da rapaziada.
— Eu pisei, pisei, pisei,/ eu pisei, teimo a pisá,/ eu pisei em boi contrário,/ e piso em quem duvidá!
— Não corre vem cá,/ eu quero te pega!/ Quero te dá um abraço/ E brincar de boi-bumbá.
— Eu pisei na terra dura,/ e a terra estremeceu./ Quem não pode não se meta,/ pois eu sou é campeão.
Pai Francisco, Catirina, Cazumbá e Mãe Guimá são perdoados e a alegria se espalha em todas as fisionomias fatigadas que cantam as toadas de vitória:
— O dia raiou, o boi urrou! Lá vem aurora/ saudar o nosso boi!
Nas décadas de 1940 a 1970, os bois-bumbás afamados de Porto Velho e Guajará-Mirim deixavam os seus currais e, com todos os seus figurantes característicos, entoando suas toadas, pisando firme e forte, visitavam e dançavam em várias residências das pessoas proeminentes dessas cidades.
Ao chegar em frente às casas, o amo saudava os donos delas e as pessoas presentes. O boi iniciava os requebros, os remelexos e as acrobacias, revelando o excelente preparo físico do miolo que o encarnou.
No meu natalício, 29 de junho, quando criança, sempre um boi dançava em frente à nossa casa, em minha homenagem, nascendo daí, certamente, a origem do meu fascínio pelos bois-bumbás.
A valorização e divulgação do folclore, o reconhecimento da importância das manifestações populares na formação do lastro cultural do nosso estado, motivou que o Departamento da Cultura da Secretaria de Estado da Cultura, Esportes e Turismo tomasse procedimentos capazes de assegurar a preservação do folguedo junino.
O folder distribuído, em 1993, com apoio do SEBRAE/RO, de autoria de Geraldo Cruz, João Coelho, Flávio Carneiro e João Zoghbi, relata:
“Liderada pela professora Yêdda Borzacov, à frente do Departamento de Cultura, constituída por Gutemberg Vasconcelos, José Monteiro e Flávio Carneiro, criou a I Mostra de Quadrilhas e Bois-Bumbás, em 1982, realizada na quadra de esportes da Escola de 1º e 2º Graus “Rio Branco”, em Porto Velho, com a finalidade de revitalizar essas manifestações folclóricas. Ao chegarmos, a comunidade havia armado um arraial em frente à quadra de esportes, portanto afirmo: a própria comunidade criou o arraial.
A I Mostra ultrapassou as expectativas, com a participação de trinta grupos folclóricos. A boa aceitação, junto à comunidade, levou os organizadores a transferirem o evento para um local mais amplo e mais central. No ano seguinte, em 1983, essa mostra foi realizada ao lado do Ginásio de Esportes Cláudio Coutinho, paralela a um arraial, e daí por diante, consolidou-se como uma grande festa junina. Nesse mesmo ano a equipe ganhou um grande reforço, com a inclusão do artista plástico João Zoghbi, e da professora Nazaré Silva e da pedagoga Hilda Saraiva.
As dificuldades para a realização do primeiro arraial foram muitas, principalmente a de caráter financeiro, o que foi parcialmente resolvido com o patrocínio de algumas empresas, que acreditaram no sucesso daquele projeto. Vale destacar a Cerveja Cerpa e a Coca-Cola, que representaram o principal sustentáculo financeiro do evento”.
O crescimento da festa foi inevitável, sendo transferida, em 1990, para a área paralela ao SESC, onde aconteceu por muitos anos. Atualmente mudou-se para o bairro Esperança da Comunidade sob a responsabilidade da Federação dos Grupos Folclóricos – FEDERON. Ressalto que em 1999, o evento havia sido repassado para a entidade citada, sendo retirada em 2004, constituindo um acinte aos grupos folclóricos, em razão que ao estado, segundo a Constituição, não deverá promover, e sim apoiar e incentivar a cultura.
Prosseguindo, os autores relatam a origem do nome “Flor do Maracujá”:
“Em 1982, quando aconteceu a I Mostra de Quadrilhas e Bois-Bumbás, o sucesso foi tanto que tornou-se necessário um conhecimento mais profundo sobre essas manifestações folclóricas em Porto Velho.
Com esse espírito, os técnicos da extinta SECET, José Monteiro e Flávio Carneiro, foram a campo, onde a inspiração trouxe-lhes o nome do arraial, que cresceu ano a ano, chegando hoje a ser incluído no Calendário Turístico Nacional.
A primeira informação sobre as quadrilhas chegou através do professor Câmara (antigo morador de Porto Velho), que indicou o senhor Alumínio, já falecido, presidente do Imperial, clube social da época, onde esse folguedo vivia seus momentos áureos, na década de 1950, sob o comando do ferroviário Joventino Ferreira Filho, morador do bairro Triângulo o qual, em seu terreiro, organizava a quadrilha intitulada “Flor do Maracujá”.
Segundo a professora Elisa Corsino, o nome daquela quadrilha deveu-se ao fato de que no terreiro, onde a mesma se apresentava, as moças (damas), embelezavam seus cabelos com as exuberantes flores do maracujá, que ali existiam, em abundância, na época junina.
Enquanto brincante da quadrilha “Flor do Maracujá”, encontrou em seu par o seu futuro esposo, Silvério Gomes, e moraram por muito tempo no bairro Triângulo.
Um fato interessante, afirma esse casal, é que a quadrilha “Flor do Maracujá” dançava ao lado dos trilhos da lendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, e a dança era interrompida todas as vezes que o trem passava por ali.
Contam ainda que a cerimonia do casamento da quadrilha dava-se da seguinte forma: antes de começar a brincadeira o casal de noivos chegava ao lado da apresentação conduzido por uma cegonha (transporte ferroviário manual, usado para manutenção da estrada), acompanhado pelo sanfoneiro “Bananeira”, mestre de muitas gerações de sanfoneiros.
O povo já aguardava a chegada da quadrilha no terreiro do seu Joventino. Hoje o povo também aguarda ansioso, não pela chegada daquela quadrilha, mas deste grande arraial, que tomou emprestado o seu nome: “Flor do Maracujá”, e que todos os anos continua atuante, revivendo o apogeu do folclore de Porto Velho”.
É preciso cultivar a tradição, afirma o escritor Eduardo Campos. Folclore é cultura. O fator indispensável para o colapso de uma sociedade está na desintegração da sua memória cultural. Ela pode ser derrotada por forças políticas, econômicas ou militares externas, mas se não for alienada de sua herança cultural, ela renascerá das cinzas.
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