Terça-feira, 16 de junho de 2015 - 22h03
“A morte é curva da estrada. Morrer é só não ser visto”.
Fernando Pessoa
Quando me fixo nas recordações de meu pai, Ary Tupinambá Penna Pinheiro, para tentar unir as imagens de sua figura excepcional, logo reconheço que elas prontamente se harmonizam justapostas e concordantes. Desde a mais tenra infância, lembro-me dele humilde e sereno; pesquisando, lendo, escrevendo, inteiramente dedicado à história natural, à etnologia e ao folclore.
Ao longo da vida, não encontrei outro exemplo humano que pudesse coincidir com ele. Parecido, sim, igual, não. Ary Pinheiro, meu pai, soube ser único, mas sem propósito deliberado – ele foi por sua própria natureza.
Quem quer que o encontrasse, na rua, no hospital, numa sala de aula, numa festa ou sentado na sua cadeira embaixo do caramanchão do seu jardim, não teria dúvidas em reconhecer, ao primeiro relance do olhar, o intelectual, o historiador, o naturalista; o folclorista. Simenon, nas “Memoires Intimes”, diz-nos que “lhe basta olhar uma pessoa para identificar no desconhecido o personagem”. E o personagem identificado, em Ary Pinheiro, refletia a pureza do caboclo amazônida.
Nascera com o pendor da caridade. Não a caridade decorativa, meramente externa, e sim a caridade pura, que tem raízes no ser, e é a bondade, é a solicitude, e é, sobretudo, o amor.
Exerceu duas profissões, para as quais aprimoradamente se preparou: a de médico e a de professor, profissões que ajustavam-se à sua índole individual. Como médico soube levar a medicina à dimensão do homem, em seus múltiplos aspectos e questionamentos. Todo doente, para ele, era um caso de consciência. Jamais considerou qualquer um dos pacientes como uma papeleta, uma ficha. Nem mesmo como ser humano, apenas. Mas, mais do que ser humano, como um irmão. E mais do que um irmão, como um irmão sofredor, a quem devia cuidados profissionais, solidariedade humana, afeição e carinho. Isso fez com que todos os clientes de Ary Pinheiro, uma vez clientes, nunca mais o abandonassem.
A sua ação, como professor, foi notável. Seus alunos lembram até hoje da sua sabedoria e proficiência. O professor e historiador Abanael Machado de Lima sempre o recorda com carinho e afeto.
Era apaixonado pela nossa cultura popular. Em suas recordações, em seus relatos, conseguia emocionar os que o ouviam atentamente, tal a maneira de transmitir os sentimentos populares.
Ary Pinheiro viveu e sentiu a alma do povo em suas manifestações de arte lúdica, costumes e superstições. Participou do dia-a-dia de nosso folclore, aprendendo, pesquisando a criação espontânea de nosso homem.
Dotado de uma memória incomum, não somente sabia de cor autos, lendas, crendices, cantorias, mas também e, sobretudo, sabia recordá-los e repeti-los com a poesia e a maneira característica da gente do povo. Confundia-se o pesquisador e portador de folclore. Dois dias antes de sua passagem para a vida espiritual cantou comigo, baixinho, balbuciando, cantigas do “Boi-Bumbá”. A cena está ainda muito viva: contava para ele que havia, em Porto Velho, 17 grupos do folguedo “Boi-Bumbá”. Que maravilha para a nossa identidade cultural! Ele sorria! Animada e conhecedora do quanto ele apreciava o “Boi-Bumbá”, cantei uma toada: “Levanta meu boi de fama,/ estrela da madrugada,/ p’ra brincar nesta hora/ com nossa rapaziada”. E meu pai sorrindo, em seu leito, fracamente balbuciou: “Arreceba o boi/ canarinho brincadô/ semeando pena de ouro/ que a princesa lhe mandô”.
Durante a sua longa enfermidade, nenhuma palavra de rebeldia. Nenhuma queixa. Nenhuma mágoa. Nada. O corpo frágil resistia à doença. O espírito jovem e forte permanecia atento a tudo.
Hoje, ao passar pela rua Dom Pedro II, lembro-me com nostalgia do seu quintal de mágicas belezas que ele tanto amava e onde cresciam uma majestosa mangueira, belíssimos abacateiros, cacaueiros, figueira, pupunheira, cajazeiro e uma infinidade de papoula, folhagens diversas, tajás, trepadeiras e palmeiras que faziam o paraíso dos pássaros e o deleite dos visitantes. Lembro-me com saudades e ternura, que ali dentro, como um oásis limitado, vivia um homem simples e puro. Um homem amigo dos animais, dos livros, das plantas. Um homem que vivia em paz consigo próprio e que tinha naquele pedação de chão batido o seu mundo. Um homem que conseguiu transmitir à sua única filha – maior herança, o amor pela nossa cultura, o amor sem limites por esta terra que ele escolheu para exercer suas profissões e constituir família (conheceu minha mãe, Christina Struthos Pinheiro, médico recém-formado, em 1937, em Guajará-Mirim). Lembro-me que o seu bosque, constituído pelo jardim e o quintal, tinha cheiro próprio, uma mistura de odores de flores, folhas e o cheiro acre dos muitos tipos de frutas, que se desfaziam no chão. Era o seu cheiro. Era o cheiro do meu pai.
Quando meu pai faleceu, choramos por ele, família, amigos. Ninguém percebeu, porém, que o seu jardim, o seu quintal, as suas árvores, as suas plantas, choravam também. Silenciosamente. Humildemente. Suas palmeiras, suas ramagens queriam ofertar-lhe um ramalhete, mas não podiam. As plantas não falam... só pessoas de grande sensibilidade e profundo humanismo, como ele fora, são capazes de ouvir e falar com as plantas. No meio de tantas coroas e ramos de flores das diversas floriculturas da cidade, depositadas em sua sepultura, ninguém se lembrou, inclusive eu, do seu bosque, das suas ramagens, das suas folhas. Ninguém se lembrou, inclusive eu, de depositar uma única folha das suas plantas, que tanto amara, em sua sepultura. Peço perdão, meu pai, pela minha omissão. O cheiro e a magia do seu bosque se foram com ele...
Espero que, neste momento, ele esteja, tranquilamente, como acredito, em um mundo de luz, trabalhando junto a uma falange de médicos e enfermeiros no espaço e que possa continuar a olhar por seus quatro netos, Eduardo Jr., Ary, Christina Helena e Lourdes Maria; pelos bisnetos, Amanda, Aryadne, Lilian, Eduardinho e Pedro que nascerá em outubro; por seus sobrinhos por afinidade, são os da minha mãe, Pedro, Paulo, Astrid, Jorge, Hélio, Haroldo, Aurélio, Flaíza e Yvette; por seus amigos; por seus doentes; por sua segunda esposa, Maria de Lourdes, e por mim, tão imperfeita e tão necessitada da sua intercessão...
* Yêdda Pinheiro Borzacov, da Academia de Letras de Rondônia, do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia e vice-presidente do Memorial Jorge Teixeira.
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