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Yêdda Pinheiro Borzacov

A TERRA DO JÁ TEVE


 

Quero juntar aos meus escritos à expressão "a terra do já teve", de autor desconhecido, e pedi-Ia emprestada para usá-Ia nesta crônica onde relembro fatos, feitos e episódios que marcaram a vida sociocultural das cidades do Madeira e do Mamoré, isto é, de Porto Velho e de Guajará-Mirim.

Nessas cidades é costume as pessoas exclamarem: "antigamente tinha, agora não tem mais". É a terra do já teve ...

Retroagindo no tempo e no espaço me lembro das coisas belas que, na voragem do tempo desapareceram, talvez, quem sabe, descendo as águas do Mamoré e do Madeira, indo, sabe-se Deus, para onde. Ninguém sabe. Ninguém viu.

Ah! Nas dobras do tempo muitas coisas foram esquecidas ou desprezadas. O movimento dos trens, partindo das estações ferroviárias de Porto Velho e de Guajará-Mirim era muito grande, havendo trens de carga, de passageiros, de gado e feira. A épica ferrovia foi erradicada na terra do já teve ...

Os concursos literários e históricos, reveladores de historiadores e literatos magníficos, foram engavetados pelos "burrocratas" de plantão na terra do já teve ...

As alegres e divertidas quermesses, em Porto Velho, ocorridas após às novenas em devoção ao culto de Nossa Senhora Auxiliadora, em maio, e de Nossa Senhora de Nazaré, em outubro, em frente à Catedral do Sagrado Coração de Jesus, caprichosamente promovidas pelas filhas de Maria e pelos Marianos e financiadas pelos notários. As barracas eram armadas e enfeitadas com folhas de palmeiras, onde eram comercializadas o que de mais delicioso existe na culinária rondoniense amazônida; as brincadeiras de prisões, argolas, envio de mensagens aos namorados, as pescarias, as rifas e o bingo, uma delícia! Divertimento sadio e aguardado pela comunidade, com ansiedade. Nada disso existe mais, na terra do já teve ...

Os belos bailes e desfiles de moda nos Clubes Bancrévea, Ypiranga e Ferroviário, em Porto Velho, e no Clube Libanês, em Guajará-Mirim. Esses clubes revestiam seus salões de grande imponência para receber a sociedade. Foram extintos, no correr no tempo, na terra do já teve ...

Revejo os feitos extraordinários dos Conselhos Estadual de Cultura e de Esportes, e as suas importâncias representadas para o desenvolvimento cultural e esportivo do Estado. Estes Conselhos foram eliminados, na terra do já teve ...

Programações culturais, visando abrir os horizontes, mostrando as manifestações artísticas em recitais instrumentais didáticos: os artistas explicavam a obra do autor e a sua significação. Nunca mais foram realizados na terra do já teve...

Os Calendários Culturais, onde eram arrolados os eventos mais marcantes, sem descurar datas nacionais e festas religiosas mais tradicionais; as Antologias em Versos e Prosas e os Compêndios de História e Cultura de Rondônia, editados pelo órgão oficial da cultura do Estado e que não tiveram prosseguimento, atestando o patente desconhecimento do papel que a cultura exerce no aparelho estadual. .. na terra do já teve ...

Os Museus, desrespeitados, deixaram de transmitir as expressões de cultura e o conhecimento que fundamenta, na criança e no jovem, a relação tempo-espaço, considerando que o acervo museológico é testemunho vivo de fatos passados e dos povos mais diversos ... Acervo cultural em frangalhos na terra do já teve ...

No correr do tempo, as serenatas em noites de luar não mais encantam ... as brincadeiras lúdicas não são mais lembradas, preteridas pela TV, na terra do já teve ...

Criado em 1993, com objetivo de valorizar, difundir e divulgar as artes plásticas, o Salão de Artes Plásticas do Estado de Rondônia - SART, estimulava o aprimoramento das técnicas e propiciava a troca de experiências artísticas, sendo o grande responsável pela construção da Casa da Cultura "Jornalista Ivan Marrocos". Deixou de acontecer, na terra do já teve ...

Os saraus, reuniões realizadas pelos produtores culturais em Porto Velho, não mais acontecem na terra do já teve ...

As retretas, aos domingos, nas Praças "General Rondon", em Porto Velho, e "Mario Correia", em Guajará-Mirim, valorizando o tempo e o espaço, atraindo moças, rapazes e famílias com crianças, não mais existem, deixando de encantar a terra do já teve ...

Visualizemos a rua José Bonifácio e a av. 7 de Setembro, em Porto Velho, e a av. Mendonça Lima, em Guajará-Mirim, com os seus benjamins, assim como a rua José do Patrocínio, repleta de ingazeiras frondosas, onde os passarinhos faziam seus ninhos, árvores violentamente arrancadas na terra do já teve ...

A ponte ligando às margens do Mamoré, que já eram favas contadas, cantada em prosas e versos pelos políticos locais, e anunciadas em manchetes pela mídia tupiniquim, e que certamente expandiria e desenvolveria a cidade de Guajará-Mirim, na margem direita do Mamoré não existe na terra do já teve ...

A Escola do Serviço Público, que tão bons serviços prestou, qualificando e oferecendo condições para o funcionalismo público exercer, com maior eficiência e competência, as suas tarefas, propiciando inclusive, sua progressão profissional, foi extinta na terra do já teve ...

O carro-biblioteca que oferecia, nos fins de semana, aos moradores dos bairros periféricos de Porto Velho, oportunidade de aprimorar seus conhecimentos e preencher as suas horas de lazer com boa leitura e jogos, desapareceu da terra do já teve ...

A varanda do Porto Velho Hotel, ponto de encontro dos intelectuais, com muita história para contar, sumiu na voragem do tempo na terra do já teve ...

As lavanderias públicas, feitas pelo Município, nos bairros da Olaria, Km Um e Liberdade, atendendo às lavadeiras que não tinham fácil acesso aos igarapés da cidade de Porto Velho, sumiram com o tempo, passando para a propriedade privada, na terra do já teve ...

Porto Velho teve o maior carnaval de rua da região norte, melancolicamente desaparecido com a morte física dos grandes carnavalescos Marise Castiel, Leônidas, Bola Sete e outros mais ... na terra do já teve ...

Havia lealdade e fidelidade na política partidária. Eram cutubas ou peles-curtas, ninguém ficava em cima do muro. Hoje impera a desfaçatez e a deslealdade na política, na terra do já teve ...

Nos tempos idos e vividos, a política e a cultura andavam unidas, de mãos dadas, como força viva do desenvolvimento de Rondônia. Hoje, totalmente dissociadas, aquela servindo de suporte ou apoio da ganância do poder efêmero e tão cobiçado pelos políticos medíocres e oportunistas, custe o que custar, e esta sem o apoio e incentivo cultural do órgão oficial estadual aos produtores e instituições culturais, não suscita mais interesse na terra do já teve ...

E por que não evocar, neste momento, o prédio da Academia de Letras de Rondônia, centro credenciado da literatura e da história? Rondônia tinha apenas seis anos de Estado quando esta instituição foi criada por um grupo de escritores idealistas, considerando que o grau da civilização de um povo, a moldagem do seu caráter, são adquiridos não na manifestação de sua grandeza material mas nos superiores desígnios do seu saber. Depois de muitos anos lutando por sede própria, conseguiu um prédio em 2002, destruído pela insensatez e a demência de um secretário estadual de cultura, em 2004, inclusive tendo o seu acervo literário sucateado, na terra do já teve ...

As belas programações realizadas, muitas vezes, na Praça General Rondon ou nos Salões do Palácio Presidente Vargas, para conceder a Condecoração ao Mérito Marechal Rondon, às personagens que prestaram relevantes serviços à Rondônia, condecoração essa instituída pelo Decreto n° 435, de 14 de abril de 1965, homologada pelo Governador José Manuel Lutz da Cunha e Menezes, ficou no esquecimento, e nunca mais ninguém recebeu tal homenagem na terra do já teve nos locais citados, ficando apenas a lembrança como lição e testemunho do que existia de tão bom na terra do já teve...

Guajará-Mirim, cidade tradição, cidade símbolo porque é guardiã dos percalços da nossa História está ameaçada de perder o título em razão do prédio do Museu Histórico Municipal ter sido restaurado há algum tempo e permanecer fechado... acervo em frangalhos na terra do já teve...

Lembranças perenes e inapagáveis de um mês de junho divertido e animado pela Mostra de Quadrilhas e Bois-Bumbás no Arraial Flor do Maracujá, virando agora fora de época na terra do já teve...

Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento de baixo dos céus: "Tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para rir e tem para chorar; tempo para calar e tempo para falar; tempo para ganhar e tempo para perder; tempo de guerra e tempo de paz".

Ah! Ainda há tempo de acrescentar à citação acima, do Livro do Eclesiástico, mais alguma coisa:tempo para lamentar tudo o que foi de bom e que perdemos,ma terra do já teve...


 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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