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Gente de Opinião

Yêdda Pinheiro Borzacov

As Carolas, jornais falados de Porto Velho



* Yêdda Pinheiro Borzacov

Carola originou-se de uma gíria da linguagem coloquial brasileira para designar pessoa muito religiosa, as velhas beatas: solteironas, viúvas ou casadas “mal-amadas”. Fanáticas profissionais que, vivendo de rezas e intrigas, vigiam, em toda a cidade, a vida alheia, notadamente a dos padres, moças e, com especial vigilância, as mulheres casadas.

Antigamente usavam, invariavelmente, blusas com mangas compridas, saias e cabelos escorridos, sapatos baixos e rosto sem pintura. Hoje, muitas carolas andam nos “trinques”: roupa moderna, cabelos curtos bem penteados, sapatos altos e rostos maquiados. Ao primeiro toque do sino penetram na Igreja, ali aguardando ansiosas a entrada dos fiéis, trocando segredinhos e olhares cúmplices, quando alguém que não lhes agrada penetra no templo. Rezam mecanicamente, carregando sempre terços, santinhos, medalhinhas e evangelhos.

Conhecem intimamente a vida da comunidade, em seus mínimos detalhes. Espalhar boatos e fofocas é a especialidade delas, constituindo o lazer e divertimento dessas mulheres que exalam cheiro de incenso e vela. São, por essa razão, nada simpáticas e não cultivam amizade além do seu restrito universo. Apenas algumas esposas ciumentas se aproximam delas para saber o procedimento de suas caras-metades. Os maridos vigiados ficam tolhidos em suas liberdades. Coitados!

Na língua das carolas, as jovens não têm direito de ser alegres, e, se namoram trocando beijos e abraços, é um escândalo! Exclamam logo: “É uma perdida!” ou “Essa já está na boca do mundo!”.

Lembro-me, quando mocinha, aluna do colégio de freiras e frequentadora assídua dos bailes do Bancrévea Clube, Ipiranga e boates do Porto Velho Hotel, que, ao chegarmos a esses recintos de festas, já encontrávamos, “no sereno”, as carolas, observando o ritmo dos pares, os decotes, as saias curtas e até mesmo a troca de olhares. Futricando, corvejando, tudo era motivo de pasto à língua delas. As carolas eram veículos da intriga, da maledicência, perante os padres e freiras.

No dia seguinte estouravam as notícias:

— Você prestou atenção? A Maria Ângela Pires estava com um decote tão grande, tão grande, que só faltava mostrar o umbigo! Que falta de pudor!

— E o Zé do Araão? Tomou uma bebedeira grossa... Que horror... Como essas “pequenas” têm coragem de dançar com ele?

— Vocês prestaram atenção na saia da Lindomar Soares? Um escândalo! As irmãs do colégio têm de dar um jeito nessa sapeca!

— Você não reparou bem! A saia da Etelvina Oliveira estava ainda mais curta. Numa rodada, eu vi, “com os olhos que a terra há de comer” as suas calcinhas!

— E a Clotilde Paiva? Desfilou com duas peças... Como a Diretoria do Clube do Bancrévea permite que a Yêdda Pinheiro e Lindomar organizem desfiles desse quilate. É uma vergonha! Elas não têm o que fazer mesmo!

— Duas peças? Isso não é nada! Ouvi dizer que a Nelly Granjeiro estava de biquíni. Sim, de biquíni, num igarapé. Parece que era no “Buraco do Moreira”. Esse mundo não tem mais jeito, essas moças querem mesmo ser liberadas!

— A Selma Freitas corta o cabelo igual ao de um homem, e ainda por cima, pinta-os de loiro!

— E a Elna Castro? Ninguém mais sabe qual é a cor dos seus cabelos. Ontem estava loiro esbranquiçado, hoje, loiro escuro! Vai acabar ficando careca de tanta pintura! E vai ser bem feito!

E as carolas prosseguiam:

— Não sei por que a Maria e a Ruth teimam em comparecer aos bailes! Fazem tanto crochê!

E a língua das carolas, os jornais falados de Porto Velho, não tinha limites. No casamento religioso da Ena Lago, filha de um seringalista, com o José Nóbrega, comerciante, na Catedral do “Sagrado Coração de Jesus”, uma turma de jovens foi denunciada por uma “carola” ao Padre Humberto, por não estar trajada decentemente. Vestidos de organdi rodados, decotes, penteados altos e muita maquilagem. Um horror! Um escândalo! Dentro da casa do Senhor! Que falta de respeito! O Padre, correndo, colocou para fora da Igreja as senhoritas que constituíam na época a elite da sociedade: as irmãs da noiva, Lúcia e Dalva Lago, Conceição Teixeira, Yêdda Pinheiro, Lindomar Soares, Norma Bringel e outras mais.

Ficamos do lado de fora, pasmas, sem entender porque os nossos decotes, as nossas belas saias ofendiam tanto o olhar das carolas...

José Carlos Ribeiro, poeta dos bons, amigo querido, tomou as nossas dores e plagiando Carlos Drummond de Andrade, recitava para o nosso deleite e vingança:

“Carola velha coitada,

Beata e traça de Igreja

Vive sempre a inventar fatos

Porque é simplesmente titia!...”

As Carolas, jornais falados de Porto Velho - Gente de Opinião
Crônica retirada do livro Rio de Histórias

* Yêdda Pinheiro Borzacov, da Academia de Letras de Rondônia, do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia e vice-presidente do Memorial Jorge Teixeira.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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