Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

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Gente de Opinião

Yêdda Pinheiro Borzacov

CEMITÉRIO DOS INOCENTES – SOS


Para os pesquisadores e estudiosos da História de Rondônia e para o pessoal antigo, o Cemitério dos Inocentes é um bem histórico que deve ser preservado porque é um retrato vivo de um passado remoto, guardando restos mortais de homens e mulheres que contribuíram para o desenvolvimento sociocultural e econômico da nossa Porto Velho. Para outros (lamentavelmente existem sempre pessoas insensíveis às tradições da terra, desprovidas do requisito básico da cultura: a memória), o Cemitério dos Inocentes é apenas um cemitério velho, sem valor, situado em local nobre da cidade, servindo de empecilho ao progresso e embelezamento da capital de Rondônia. Assim pensou um Prefeito de Porto Velho, em 1982, apoiado por um reduzido grupo da sociedade que, atendendo à solicitação dos proprietários do Hotel Floresta, edificado no local onde hoje é o imponente e belo prédio do Tribunal Regional do Trabalho -17ª Região, chegando até, por meio da imprensa escrita, apelarCEMITÉRIO DOS INOCENTES – SOS - Gente de Opinião aos familiares dos mortos sepultados no Cemitério dos Inocentes, que providenciassem a transladação dos restos mortais dos seus entes queridos para o Cemitério de Santo Antônio. A extensa área situada na rua Almirante Barroso, tendo como limite, à esquerda, a rua Prudente de Morais e à direita e fundo, o bairro do Mocambo, seria doada, uma parte para o grupo do Hotel Floresta a fim de que ali fosse construido um estacionamento (sic) e na outra parte seria construída uma praça.

Segmentos da sociedade de Porto Velho, indignados e feridos em seus sentimentos mais profundos, entraram em ação, impedindo que o ato inconsequente e infeliz fosse concretizado. Dentre eles, o Conselho Estadual de Cultura - CEC, (extinto no Governo Jerônimo Santana, apesar dos inestimáveis serviços prestados à cultura regional), revalidou nossa proposição contra a desativação do cemitério, apresentada em plenária, onde apenas dois conselheiros não a acataram. O Conselho Estadual de Cultura enviou documento ao Prefeito Municipal, protestando contra a erradicação do Cemitério e destacando a sua significação como patrimônio cultural de domínio público, compreendendo a herança da cidade, revelando o seu desempenho histórico, a constituição da sociedade e o seu perfil psicológico; em síntese: a identidade de um povo. Assinaram o documento, além do Presidente do CEC, desembargador Hélio Fonseca, os conselheiros Ary Tupinambá Penna Pinheiro, Edson Jorge Badra, Maria Madalena Duarte Niamayer, Telmo Fortes e Yêdda Pinheiro Borzacov, autora da proposta.

Outro movimento significativo e que contribuiu para promover e defender a preservação do Cemitério dos Inocentes, contou com a participação de um grupo feminino. Lembro-me de Doralice Lira, Cléa Mercês, Josefina Roumiê, Francisca Barroso, Antônia Jovellino, Aurélia Banfield, dentre outras tantas, grupo destemido e guerreiro, protestando veementemente indignado, indo às ruas, à imprensa, à Prefeitura, bradando sobre o desrespeito que pretendiam atentar contra o nosso patrimônio histórico e a importância essencial para que o Cemitério dos Inocentes fosse resguardado como testemunho de nossas memórias e tradições.

Os apelos foram fortes e coerentes, havendo, felizmente, um recuo das autoridades da época, e o Cemitério dos Inocentes foi preservado e o Hotel Floresta, com o passar do tempo, desativado e demolido.

O valor da memória, isto é, a valorização da memória regional, decorre do compromisso da população com uma visão ampla, abrangente de Rondônia, consciente que a memória ignorada pode conduzir o Estado a percorrer uma trajetória alienada da sua realidade, tornando-se, assim, culturalmente indefeso ao que vem de fora.

Após a reação popular, o Cemitério dos Inocentes foi tombado em nível municipal, como monumento histórico - Lei n° 265 de 26 de dezembro de 1983. Porém, apesar da tradição ter se mantido, não há preocupação dos administradores municipais em conservá-Io. Somente à época da comemoração do dia dos finados é que há uma limpeza no sítio histórico.

É enorme a relação das pessoas ilustres cujas cinzas repousam naquele necrópole. Algumas sepulturas lamentavelmente não existem mais. É o caso do túmulo da alemã Emília Snethlage que, seduzida pela Amazônia, integrou-se à equipe do Museu Paraense, atual Museu Goeldi, aperfeiçoando-se em ornitologia e indianismo. Percorreu a Amazônia, pesquisou a mesopotâmia Xingu, Jari, Jamaxim e Tapajós, varando para o rio Madeira, no início do século XX, percorrendo um percurso ainda pouco conhecido, visando enriquecer seus estudos ornitológicos e respectiva coleta de dados. O médico, historiador, etnólogo e meu pai, Ary Tupinambá Penna Pinheiro, comentava que a cientista, entusiasmada pela descoberta de Latterer - um pássaro canoro, o Uirapuru, Pipras opalizans, associado a uma das mais belas tradições orais do cancioneiro amazônico, propôs-se a reencontrar o exemplar possuidor da flauta mágica repleta de ternura que lhe recordava partituras de Mozart. Supondo encontrá-Io no vale do Madeira, em 1930 veio para Porto Velho prosseguir sua admirável façanha, hospedando-se no Hotel Brasil, casarão de pinho-de-Riga instalado pela empresa construtora da E.F. Madeira-Mamoré, onde faleceu vitimada por um colapso, conforme o óbito assinado pelo médico paraense Antônio Magalhães. Sepultada em cova rasa, no Cemitério dos Inocentes, o trabalho da cientista é pouco conhecido em Rondônia, enquanto museus internacionais credenciaram em alto nível as suas obras:

Catálogo das Aves da Amazônia, com estampas e mapas; Nature and Main Easter Pará-Brasil; In the Geographia Review; Journal of Ortithologuy e História Natural, dentre outros.

Outro personagem, com óbito datado de 8 de agosto de 1929, e que prestou relevantes serviços à Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, chefiada pelo então Major Cândido Mariano da Silva Rondon, foi Emanuel Silvestre do Amarante, oficial do exército brasileiro e genro de Rondon, integrante da "Zona do Norte". Quando exercia a função de Chefe do 3° Distrito Telegráfico de Mato Grosso, em Santo Antônio, viajou ao sertão, em muares, adoecendo, acometido por infecção tífica, em Cachoeira de Samuel, forçando a comissão a retornar. Faleceu no Hospital da Candelária, em Porto Velho. Roquette-Pinto escreveu e publicou um artigo no "Diário Nacional" de São Paulo, dia 21 de setembro de 1929, enaltecendo os feitos do jovem oficial na Comissão Rondon, concluindo seus escritos necrológicos, com a expressão: "Cumpriu o seu destino. O Brasil deve guardar seu nome".

Dois personagens que se perpetuaram, em nossa história literária, descansam no Cemitério dos Inocentes: um, é o poeta maranhense Vespasiano Ramos, autor de um livro só, mas ninguém leva – já disse alguém - na viagem da morte, mais de um livro. O seu é "Coisa Alguma". Pretendendo escrever sobre a Amazônia madeirense, veio para Porto Velho, falecendo em 1916, sem ter tido tempo de cantar as belezas do grande vale. O outro, Oderlo Beleza Serpa, professor, poeta e jornalista, assassinado no antigo Bar Avenida, localizado na av. 7 de Setembro, no inicio da década de 1950, deixando registrado, nas páginas do jornal "Alto Madeira", escritos de sensibilidade expressiva, prenúncios da fatalidade que o vitimara. Foi durante um certo período secretário do jornal "Alto Madeira" e, incentivador do escotismo, comandava o grupo "Ajuricaba", que tinha, como um dos membros, o "Iobinho" João Tavares. O túmulo de Oderlo Beleza Serpa foi pago pelos amigos e afirma o jornalista João Tavares, em sua coluna "Cantinho do Bate Papo", no jornal Alto Madeira, na edição de 6 do novembro do 1984: "Tário de Almeida Café cuidava de sua conservação, até quando transferiu-se para o cidade de Goiânia".

Igualmente foram ali sepultados o italiano Quinto Trivério, condecorado pelo Ministro da Guerra da Itália por sua participação, em 1908, na luta em Asmara. Chegou a Porto Velho em 1909, atraído pelos agentes da Madeira-Mamoré Railway Co., em São Paulo, para trabalhar na construção da via férrea; o pernambucano Manuel Laurentino de Souza que já se encontrava trabalhando no estabelecimento comercial dos bolivianos Suarez & Irmãos, em Santo Antônio do Madeira, quando a primeira turma de engenheiros norte-americanos e trabalhadores brasileiros ali aportaram em 31 de maio de 1907, para dar início aos trabalhos de construção da ferrovia, sendo contratado, em 1911, pela companhia construtora, e durante 40 anos dedicou-se integralmente a ela; Norman Percival Davis, da ilha de São Vicente, nas Antilhas, conhecido como Mr. Davis, ferroviário desde 1911 e, após a aposentadoria, dedicou-se a administrar uma pensão, localizada na rua Barão do Rio Branco, esquina com a ladeira Comendador Centeno, e a lecionar piano, violino, inglês e literatura inglesa; Francisco Ferreira Brandão, integrante da primeira leva dos sessenta trabalhadores brasileiros que chegou em 1908 para os trabalhos ferroviários; Hugo Ferreira, durante quarenta anos trabalhou em várias funções na ferrovia, sendo um dos fundadores, em Porto Velho, do Instituto Beneficente dos Empregados da E.F. Madeira- Mamoré, instituição pioneira no Brasil e é autor do livro "Reminiscências da Madmamrly e Outras Mais"; Vivaldo Mendes, um dos últimos diretores da Madeira-Mamoré, do período pós-Nacionalização; os ferroviários Benedito Pio Corrêa Lima, da 1ª Divisão; George Trifiates, mestre de linha; Norman Lucien Johnson, guardador de fios da ferrovia e responsável pela instalação do primeiro posto telefônico de Porto Velho; Antônio Rivero, brasileiro nascido na Espanha; Petronilo Trindade, mestre da oficina; Charles Shokness e Alexandre Guimarães.

Outros pioneiros que ali descansam: os seringalistas Bráulio Castro, Ricardo Cantanhede, Constantino Gorayeb e Moacyr Motta; o médico Oswaldo Piana; o jornalista Inácio Castro, fiel ao apoio decisivo à Nacionalização da E.F. Madeira-Mamoré; os comerciantes João Barril, Toufic Matny, Chucre e Abdon Jacob Atallah, Vitor Sadeck e João Elias; Maicy Guarany Wanderley, cabo do Contigente de Fronteira; o desbravador seringalista que foi Prefeito de Porto Velho, Bohemundo Álvares Affonso, homem incomum, administrador honrado.

Recordo-me, ainda, do professor, historiador e político sério e honesto, Amizael Gomes da Silva; de José Neves Dantas, maestro da Banda de Música da Guarda Territorial, chamada carinhosamente de "Furiosa"; de Fouad Darwich Zacharias, 1° Presidente do Tribunal da Justiça de Rondônia e autor de belos escritos sobre os seringais; de Ary Tupinambá Penna Pinheiro, médico humanista, íntimo da botânica, zoologia, indiologia e história amazônida; de Roque e Helen Rodrigues da Silva, proprietários do Antártica Bar, situado na praça General Rondon; dos comerciantes João Elias e Jorge Roumié, O Cabeça Branca; de Wady George Wady, de Adalberto Barros, Raymundo Cantuária, Presidente da Associação Comercial do Território Federal do Guaporé; Abrahim Hisper Abrahim, primeiro vendedor de objetos importados e político atuante do PSD e José Saleh Morheb, comerciante e político. Não poderia deixar de citar Paulo Struthos, funcionário exemplar do IBGE, homem probo, íntegro e meu tio; do poeta José Calixto de Medeiros e do tesoureiro do Território, Mac Donald Rivero.

Também registro os túmulos de Afonso Ligório, artista plástico que legou a Porto Velho, obras de valor inestimáveis; das professoras Maria do Carmo Ribeiro, Estela Compasso, Maria José Fiúza Soares, José Augusto Câmara Leme, que com dedicação e amor, abraçaram o magistério. Dos populares Gilberto (Morcego), Zé Quirino, Cachimbão e Tucandeira.

Evoco, por fim, as Irmãs salesianas, caridosas e despreendidas do Hospital São José, Catarina Capelli, Antônia Pinheiro e Rota; das Irmãs do Colégio Maria Auxiliadora, Elisa Ferreira, Luizinha Chinaudo, diretora do Colégio Maria Auxiliadora, na década de 1940; dos padres salesianos, Pe. João Moretti, grande matemático e Pe. João Batista Rotini.

Lembro-me ainda de Marçal de Almeida Couceiro, seringalista, desbravador que na década de 1940, utilizando pás, picaretas, enxadas e aproveitando alguns trechos da linha telegráfica da Comissão Rondon, abriu estradas ligando Ariquemes/Nova Vida/Seringal 70/ Curralinhos e Jaru. Durante a construção da BR-29 hoje 364, proporcionou apoio aos construtores da rodovia como dono do seringal Nova Vida; George João Resky, libanês, escolheu Porto Velho para viver, sendo uma das primeiras pessoas a construir casa de alvenaria na cidade que despontava, inaugurando, em 1938, o Cine Catega, o primeiro cinema sonoro, atual Cine Brasil, localizado na av. 7 de Setembro (hoje desativado); Miguel Chaquiam, sócio n° 1 do Ypiranga Esporte Clube, que chegou a Porto Velho em 1917, exercendo atividade comercial; Octavio Reis, proprietário do Seringal Mantenéia, estabeleceu regulamento, com direitos e deveres dos seus empregados, enfatizando: "Na Casa que se trabalha com ordem e vontade não há miséria"; Pedro Renda, lusitano, chegou a Porto Velho em 1913 e empreitou significativas obras, como a Catedral do Sagrado Coração de Jesus; o Colégio Dom Bosco, hoje Seminário Dom João XXIII; o Instituto Maria Auxiliadora; o edifício Bechara, mais tarde sede do INSS, e a 1ª ala do Mercado Público Municipal.

Nesta evocação, lembro-me das expressões do grande Rui Barbosa diante da câmara ardente do escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis: "A morte não extingue: transforma; não aniquila: renova; não divorcia: aproxima."

É necessário que haja a implantação e a execução efetiva de uma política cultural objetivando a manutenção dos bens históricos. É imprescindível e essencial que a obra histórica do povo de Porto Velho - o Cemitério dos Inocentes, perdure no presente e no futuro como testemunho vivo de suas tradições.

SOS para o Cemitério dos Inocentes, senhor Prefeito Mauro Nazif!

Fonte: Yêdda Pinheiro Borzacov.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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