Sábado, 31 de março de 2018 - 12h54
EVOCAÇÃO DE PORTO VELHO
* Yêdda Pinheiro Borzacov
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Amando a saudade, ela não machuca
Quando me proponho a escrever sobre Porto Velho, o primeiro pensamento que me ocorre à mente são as lembranças da infância vivida na Rua Duque de Caxias, no bairro Caiari, quando Porto Velho provinciana era uma cidade cálida, terna, amiga.
Voltar ao passado me fascina. Nós somos o que fomos. As nossas raízes, o nosso berço, a nossa infância, os antigos companheiros, as primeiras experiências, tudo isso constitui para mim, pura e inesgotável fonte de poesia.
Minha infância me fez bem. Trouxe-me alegria e amor. Construiu registros na minha memória e, até hoje, lembranças desse tempo acariciam a minha alma e afagam e confortam meu coração.
Minha casa tinha uma jardineira, cheia, cheinha de violetas e um jardim onde hortênsias, brincos-de-princesa, rosas, tajás, roubavam muitas horas de minha avó, Sinhá, que as tratava com esmero e carinho. Nosso quintal era uma gostosura: laranjeira, goiabeira, abacateiro, biribazeiro, mangueira e muitas aves e animais. Tínhamos galinhas, patos, porcos-do-mato, cachorros, gatos, macacos e periquitos. Uma das mascotes da casa era um papagaio que discursava, cantava e xingava como ninguém. Tinha o seu poleiro, mas os seus arroubos de expansividade e enxerimento se davam quando ficava solto no jardim. Outro xodó, o meu xerimbabo – o Jolly –, autêntico vira-latas, porém de uma dignidade e postura admiráveis. Ao lembrar do meu Jolly, concordo com aquela expressão do ex-ministro Rogério Magri: “cachorro é um ser humano como qualquer outro”, e acrescento, é mais gente que muito ser humano que conheço. Lembro-me de um episódio que quase resultou em tragédia: ao acompanhar a ambulância que conduzia meu pai, que ia atender a um paciente em plena sexta-feira de carnaval, o meu Jolly foi atropelado por um dos poucos veículos existentes na então pacata Porto Velho, sofrendo fratura em um dos seus membros. Engessado, andava pulando, vaiado pela gurizada, provocando minha indignação. Por que vaiar e rir de um cachorro tão valente e amigo? Não entendia o porquê de tanta gozação e sofria junto com ele.
Jantávamos cedo, as mães e avós recostadas nas cadeiras de balanço, contavam histórias e nas calçadas, conversavam, enquanto nós brincávamos de roda, macaca, cipó-queimado, manja, anelzinho. Nessa época, as brincadeiras lúdicas não haviam ainda sofrido as concorrências das novelas ou outros programas de televisão e brincávamos despreocupadamente, livres e felizes. Improvisávamos brinquedos, éramos criativos. Essa fase da minha vida me faz pensar constantemente no poeta que declama “infância, essa prisão perpétua”.
Invadíamos todo o espaço do bairro Caiari, que sempre estava à espera de nossa invasão. O bairro inteiro ria com as nossas graças, conhecíamos todos e éramos conhecidos. Podíamos, naquele tempo, andar à vontade na rua. Uma criança não precisava que sua mãe ficasse constantemente cuidando dela. Todas as mães do bairro cuidavam. Eram conhecidas, como dona Heloísa, dona Sarah, dona Labibe, dona Sinforosa, dona Oneida, dona Flora, dona Miloca, dona Vitória, dona Aimorina, dona Hilda, dona Amariles, dona Nelly, professora Leonice, dona Idalina, dona Lígia, não como tias, esta palavra horrorosa que tira a identidade das pessoas, rotulando-as como um número.
O nosso grande desafio foi ensaiar uma peça de teatro, de autoria de Alfredo Cordeiro. Tínhamos consciência de nossa importância como atores e nos saímos muito bem. O palco foi armado na garagem do médico Rubens Britto e cobramos ingresso. Ficou lotado. A peça foi um sucesso, tivemos que repeti-la várias vezes, sempre com os mesmos atores: Elody Cordeiro, João Baury, Consola Correia, Madeirinha e Leonel Madeira, Aricy Bilóia e eu. O diretor era o próprio autor da peça, Alfredo Cordeiro, hoje engenheiro civil aposentado da Petrobrás.
Quando chovia era uma festa. A rua não era dos carros, nos pertencia. O banho de chuva tinha um sabor especial. Corríamos atrás dos outros jogando bola, pulando, gritando.
A realidade hoje apresenta-se em forma diferente e muito fria. A criança não brinca mais na rua. Não tem terra para brincar peteca, nem tem areia para fazer túnel, não tem espaço para jogar bola. O carro pega. A relação que ela tem com o mundo de aventura, é a violência da TV. Tudo mudou. As ruas não são mais de terra e barro, mas de asfalto. As pessoas não são mais as mesmas, sorridentes, amáveis e amigas. São desconhecidas, impessoais, são tios e tias. As ruas da minha infância continuam para mim apenas aquilo que os meus olhos podem ver. As ruas não são apenas ruas. São ruas cheias de significado e sentimento que fizeram parte da minha infância livre, repleta de magia, encanto e beleza.
* Yêdda Pinheiro Borzacov, da Academia de Letras de Rondônia, do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia, vice-presidente do Memorial Jorge Teixeira, da Academia Histórica Militar Príncipe da Beira, colunista do site Gente de Opinião.
Casas do bairro Caiari. Foto: Trilhas da História / Google Imagens
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