Quinta-feira, 15 de dezembro de 2016 - 18h22
* Yêdda Pinheiro Borzacov
Lendo em 1983, antigos jornais “Alto Madeira”, do recém-criado Centro de Documentação e Pesquisa, quando ocupava o cargo de Diretora do Departamento de Cultura, Esportes e Turismo – SECET, sempre atenta às notícias culturais, um fato chamou minha atenção: os dados biográficos e versos do poeta maranhense Vespasiano Ramos, nascido em Caxias, em 13 de agosto de 1884 e falecido em Porto Velho em 1916, com apenas 32 anos, sendo sepultado no Cemitério dos Inocentes. Constatei, então, que em 1984, transcorreria o seu centenário de nascimento.
Na tarde da memória vi o meu convívio inicial com a poesia de Vespasiano Ramos, em um tempo quando ainda muito jovem escutava enlevada e encantada, as intermináveis histórias que fluíam com naturalidade e entusiasmo narradas pelo meu pai, Ary Tupinambá Penna Pinheiro e seus amigos, em reuniões ocorridas debaixo das frondosas árvores do belo jardim de mágicas belezas que meu pai tanto amava, situado em sua casa na rua D. Pedro II. Conversavam sobre a matreirice política partidária tupiniquim, botânica, história, geografia, folclore, literatura e indiologia (esse último tema, principalmente quando o sertanista Francisco Meirelles e o escritor e etnólogo Nunes Pereira aqui se encontravam e participavam do grupo erudito).
O “savoir faire” daquele grupo talentoso atingia em certos momentos, entusiasmo, emoção e aplausos, quando José Alves Lira que havia sido administrador da olaria do Território, dando origem ao bairro homônimo, declamava os sonetos e poemas inexcedíveis de flama criadora de Vespasiano Ramos, dando a dimensão da grandeza da sua obra.
Vejamos o soneto dedicado ao filho de Deus:
Ao Cristo
Ó Sombra! Ó Essência! Ó Espírito! Ó Bondade!
Soberano de todos soberanos,
Esperança dos míseros humanos,
Jesus – Misericórdia e Caridade;
Cristo-Amor! Cristo-Luz! Cristo-Piedade!
Divino apagador dos desenganos
Tu que te foste há quase dois mil anos
Sacrificado pela Humanidade!
Prometeste voltar! Não voltes, Cristo.
Serás preso, de novo, às horas mudas
Depois de novos e divinos atos!
Porque na terra, deu-se, apenas, isto!
Multiplicou-se o número de Judas
... E vai crescendo a prole de Pilatos
Creio, o que é um excesso de exemplificação, só se falar em Vespasiano Ramos como poeta lírico. Realmente ele surgiu como um grande poeta da língua portuguesa, com “Ao Cristo”. Isso, de início, marcou, em Vespasiano Ramos, a sua expressão poética. Mas o que se pode sustentar é que, em linguagem poemática, cresce, em prosa poética, como atesta “Árvore Nua”, Vespasiano se sentia no tema, se sentia uma árvore, como se fosse criação sua, e não da natureza. Ele mesmo quando parecia ser antipoeta, mesmo quanto se extremava em humorismo, em ironia, em sarcasmo até. Sempre poeta, poetíssimo, mesmo quando não apreciou a charge feita pelo caricaturista Celestino, para ser publicada em “A Revista”, editada em Belém-PA. Publicou na “A Revista”, o seu descontentamento:
Celestino, Celestino,
Você tem talento e graça.
Tem tanta graça e talento
Que até parecem desgraça.
Aquela caricatura
Nesta Revista não sai.
Manda outra, em vez daquela,
Por exemplo, a de seu pai.
Batendo, outra vez na memória, lembrei que o meu segundo convívio com Vespasiano Ramos, ocorreu em dezembro de 1980. Durante os funerais do artífice da criação do Território Federal do Guaporé, Aluízio Pinheiro Ferreira, dia 18, no Rio de Janeiro, uma senhora aproximou-se de mim, abraçou-me e indagou:
— Você é a Yêdda de Rondônia?
— Sim.
— Reconheci logo você pelas descrições que o Aluízio fazia. Meu nome é Mary Mendonça Teixeira e gostaria de conversar com você.
Convidou-me para um lanche em seu apartamento na rua 5 de Julho nº 125, ap. 501. No dia marcado, caminhei pelas ruas de Copacabana, pensando entre outras coisas, o que aquela simpática senhora desejava conversar. Certamente, supunha, seria sobre o seu amigo, Aluízio.
Passamos momentos agradabilíssimos e durante a prosa, contou-me que era prima de Carlos Mendonça que havia sido prefeito do município de Porto Velho e diretor do jornal “Alto Madeira”. Fiz referência ao seu belo poema “Trabalho em Porto Velho”, caminhada emocionante de exaltação ao trabalho e trabalhador da futura capital de Rondônia e comentei que Carlos Mendonça publicava no “Alto Madeira”, poesias de Vespasiano Ramos, comentando que elas se polarizavam entre o amor e a mágoa.
Falei sobre o encontro do grupo erudito na residência de meu pai e que os participantes lamentavam que o poeta não havia deixado nenhum livro, apenas jornais do Maranhão, a “Folha do Norte”, de Belém-PA, e os jornais “O Município” e “Alto Madeira”, de Porto Velho é que divulgavam suas poesias e poemas que possuem o poder unicamente seu de transformar o real em imagens e revelá-los.
Dona Mary, sorrindo, levantou-se da poltrona, dirigiu-se a uma estante, retirou um livro de capa preta, entregou-me e falou:
— Vespasiano Ramos publicou um livro. Tome, é seu. Pertenceu ao primo Carlos Mendonça.
Sensibilizada e comovida pela delicadeza do inesperado presente, folheei o livro, impresso pela tipografia de Jacintho Ribeiro dos Santos, do Rio de Janeiro, com uma tiragem de 2.000 livros, cuja montagem compõe-se de 34 sonetos e 22 poemas, totalizando 170 páginas. Prometi à Dona Mary que tudo faria para reeditar a obra do vate maranhense. Minha promessa foi atingida, em 1984, no centenário de nascimento de Vespasiano Ramos. Apresentei ao Conselho Estadual de Cultura, órgão normativo e consultivo da SECET, do qual eu era membro, uma proposição para reverenciar a sua memória, acreditando que o melhor tributo que se poderia prestar, seria a reedição de “Coisa Alguma”, cujos versos eram antigamente conhecidos por muitos, mas ignorados pela maioria.
A proposição ainda continha a restauração do seu túmulo; a realização de um seminário referente à sua vida e obra; a instituição de concurso literário, cujo prêmio seria a edição do trabalho do vencedor e que fosse enviado à Câmara Municipal, documento propondo que um logradouro público ostentasse o nome de Vespasiano Ramos.
Com o apoio integral do Conselho Estadual de Cultura, constituído pelos intelectuais Hélio Fonseca (presidente), Edson Jorge Badra, Ary Tupinambá Penna Pinheiro, Euro Tourinho Filho, Madalena Duarte, Telmo Fortes e Sílvio Persivo, que se mobilizaram para a execução do evento que teve o imprescindível apoio do Banco Estadual de Rondônia – BERON, presidido pelo escritor rondoniense, Paulo Cordeiro Saldanha.
Esta semana fiz uma releitura de “Coisa Alguma”, poesias líricas e de protesto, contendo traços parnasianos, dele escoimando todas aquelas páginas, muitas escritas com amargura e ao calor do seu desapontamento amoroso. É inegável que ele encarnou os ideais românticos do seu tempo, confundindo-se a sua personalidade com a sua poesia. Apesar de ter publicado um único livro (muitas das poesias que lhe formou a preciosa bagagem literária não figuram na obra), cujo título “Coisa Alguma” –– modéstia do autor, sugere que os escritos não dizem nada, entretanto, recebeu elogios dos escritores Humberto de Campos, Alberto de Oliveira, Medeiros e Albuquerque, João Ribeiro e da crítica especializada, sendo sua fotografia exibida em vitrine da famosa confeitaria Colombo, no Rio de Janeiro, fatos que permitem denominar sua obra como de primeiríssima água, o que significa a utilização simultânea das formas clássicas, tal como o soneto Anima Dolens:
No alto, a palmeira, víride e elegante
Erguida, no alto verde da montanha
Treme, sutil, quando, de leve, apanha
O vento, no alto múrmuro e constante.
Às vezes presa pela delirante
Tempestade fortíssima, tamanha,
Fica a tremer, convulsa, na montanha,
Erguida, no alto, víride e elegante!
Alma! Tu és, também, às vezes:
Às vezes, presa pela delirante
Tempestade dos lúridos reveses.
Ficas, no peito, sob dor tamanha,
A tremer, agitada, — semelhante
À palmeira do cimo da montanha.
* Yêdda Pinheiro Borzacov, da Academia de Letras de Rondônia, do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia, vice-presidente do Memorial Jorge Teixeira e colunista do site Gente de Opinião e do jornal Alto Madeira.
Capa do livro “Coisa Alguma”, de Vespasiano Ramos (1884/1916). Imagens: arquivo pessoal
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