Sábado, 4 de fevereiro de 2017 - 21h47
*Yêdda Pinheiro Borzacov
Corre sempre em minha memória, imagens da épica Madeira-Mamoré, cujas margens ostentavam gigantescas árvores com picadas abertas pelos caçadores e que extasiavam meus olhos de menina.
Há quadros de infância e amor à terra, à História, apego às tradições, cujas cenas me conduzem a um ontem remoto, invadindo-me a saudade que hoje para mim são nostálgicos: minha vivência na Madeira-Mamoré.
Eu a vejo quando viajava no carro do médico, sentada no colo de meu pai, Ary Tupinambá Penna Pinheiro, médico da ferrovia, que mensalmente percorria a via férrea para atender os enfermos e contando-me a História da sua construção...
Eu a vejo percorrendo a grande reta do Abunã, bela imagem dos buritizais sussurrantes...
Eu a vejo quando a locomotiva, puxando uma composição, com seus apitos estridentes, espantava manadas de caititus, espavorindo pardais guerreando com as andorinhas nos fios telegráficos...
Eu a vejo nos livros que registram o dignificante trabalho dos médicos em Candelária: Carl Lovelace, P. Belt, William Emerich, A. M. Walcott e Whitaker, dentre outros, que imprimiram uma orientação à organização da saúde dos trabalhadores, demonstrando haver uma preocupação permanente com o planejamento de ações e práticas de higienização que dariam à medicina um caráter de profilática e não apenas de curativa...
Eu a vejo com a sua História, rica de feitos de bravura e de passagens gloriosas, indelével marco, homens que contribuíram com suor, trabalho e muitos sacrificando a própria vida, para que ela fosse construída...
Eu a vejo por meio das fotos que ilustram o livro de Neville B. Cruz (1878/1879), “Estrada de Ferro Madeira-Mamoré – História Trágica de uma Expedição”, obra clássica que orientou as narrativas posteriores...
Eu a vejo também nas fotos de Dana Bernard Merril, o historiador visual que captou com suas extraordinárias lentes a invasão do homem na floresta...
Eu a vejo nos poucos túmulos existentes no Cemitério da Candelária, cujas lajes das tumbas apresentam inscrições nas línguas inglesa, hebraica e portuguesa, dentre outras...
Eu a vejo quando o apito da locomotiva anunciava a chegada de Guajará-Mirim e os carros de boi com os seus puxadores, apressadamente se dirigiam ao complexo ferroviário, em busca de cargas e passageiros... Os nomes mais usados para denominar os bois eram: Flor da Roda, Bem Me Quer, Cobiçado, Bem Montado, Cravo Cheiroso, Lindão e Pisa Macio, dentre outros...
Eu a vejo na época da erradicação... Homens de mãos calosas, fisionomias abatidas e chorosas... Acenando... A Cel. Church à frente de outras locomotivas, apitando em despedida... Um ciclo de vida encerrando... O esquecimento de que ela foi o esteio de uma área do oeste brasileiro, dando-lhe condições para o seu desenvolvimento...
Eu a vejo no pensamento, espaço de uma geração, magoada, angustiada e indignada, a sua modificação, seu esfacelamento diante dos olhos da comunidade...
Eu a vejo captando tudo o que ela foi e cuja lembrança o tempo não destruiu...
Eu a vejo em conversas com Aluízio Pinheiro Ferreira (1980/1981) – o Nacionalizador dos serviços da E.F. Madeira-Mamoré, emérito armazenamento das fontes que selecionava, registros que encerram importante somatório de conhecimento centrado para a História regional (Rondônia)...
Eu a vejo com a implantação de colônias agrícolas, primeira experiência de Reforma Agrária no país – Decreto nº 688882 de 19 de fevereiro de 1941, decisão do presidente Getúlio Vargas... A primeira na atual Rondônia foi a do Yata, ponto de parada da locomotiva...
Eu a vejo nos artigos veementes dos jornalistas Ary Macedo, Emanuel Pontes Pinto, do “O Guaporé” e de Euro Tourinho, do “Alto Madeira”, protestando contra a sua erradicação...
Eu a vejo na arrancada para a execução da instalação do museu e da reativação para fins turísticos, dos trechos Porto Velho / Santo Antônio / Vila de Teotônio e 8 km em Guajará-Mirim, do programa de preservação do patrimônio histórico material do governador Jorge Teixeira, feitos extraordinários daquele gaúcho-amazônida que escolheu o tripé de sua vida: Trabalho, Trabalho, Trabalho...
Eu a vejo viajando em pick-up com o motorista do governador Teixeirão – o conhecido Dodó, em busca de peças para formar o Museu Ferroviário... Amâncio de Britto, da 1ª classe da 2ª Divisão de Tráfego, doando o seu chapéu de trabalho...
Eu a vejo na data da reativação (documentada pelas fotos de Rosinaldo Machado), no trecho Porto Velho / Santo Antônio e da inauguração do Museu Ferroviário, ocasião em que o povo compareceu maciçamente ao evento apesar da chuva torrencial, numa demonstração fascinante da ferrovia que ficara gravada em sua memória...
Eu a vejo ao constatar o entrelaçamento da geografia, da história e da economia dando feição à sociedade em formação... A ocupação humana da área cultural Madeira-Mamoré se fez na sequência da implantação de atividades econômicas, em que se criou a relação entre o homem e a terra...
Eu a vejo quando concentrava os vários centros de atividade que lhe formavam o tecido da vida; além do econômico, o social, o linguístico, o cultural e aquele que é profundamente humano: o psicológico...
Eu a vejo quando o governador Teixeirão recepcionava o presidente João Batista Figueiredo e ministros, mostrando orgulhosamente o museu, o galpão nº 2, destinado à recuperação do material rodante...
A E.F. Madeira-Mamoré, para nós rondonienses natos e muitos que optaram por viver em Rondônia, é a própria imagem de Porto Velho, com suas locomotivas, vagões, trilhos e pontes.
A nossa rondonidade e o nosso romantismo inveterado de corpo e alma, de dentro e fora, acalenta em nossa alma o sonho de vê-la considerada Patrimônio da Humanidade e pelos anúncios do prefeito Hildon Chaves, vejo o museu recuperado, a linha férrea em razão do desbarrancamento da área do Triângulo e as casas construídas distantes apenas 1 ou 2 metros da linha férrea, levará certamente mais tempo para reativá-la.
Nesta reta dos meus 70 e tantos anos, não aguento mais esperar as locomotivas soltando fumaça e apitos estridentes. Vejam, e me informem se eu não sou mesmo uma mulher romântica que herdou do pai – Ary Tupinambá Penna Pinheiro – herança maior: o conhecimento e o amor pela História, Cultura e Tradição de Rondônia.
* Yêdda Pinheiro Borzacov, da Academia de Letras de Rondônia, do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia, vice-presidente do Memorial Jorge Teixeira, da Academia Histórica Militar Príncipe da Beira, colunista do site Gente de Opinião e do jornal Alto Madeira.
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Foto: Dana Merril
O intelectual Gesson Magalhães
A intelectualidade de Rondônia está de luto. Morreu o poeta romântico Gesson Magalhães. Morreu o confrade que ocupou com mérito a cadeira número dois
Nas proximidades do leito da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré surgiram alguns bairros populacionais
Euro Tourinho, o intérprete do nosso jornalismo
O perfil de um homem vai se cinzelando no decorrer dos anos e a poeira do tempo, como procede inexoravelmente, a história, vai laminando as reputaçõ
Conheça a literatura de Porto Velho
Aplaudo e abraço com afeto, mais uma vez, a professora, escritora e acadêmica Sandra Castiel, amorosa porto-velhense que enobrece e honra a Academia