Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Yêdda Pinheiro Borzacov

NAS DOBRAS DO TEMPO



* Yêdda Pinheiro Borzacov

Era na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, desde a sua construção (1907/1912) até o fim de sua vida utilitária, em 1972, que se encontravam vários centros de atividades que formavam o tecido da vida referente à área cultural dos trechos encachoeirados dos vales do Madeira e Mamoré.

Esses elementos – econômico, linguístico, social e cultural – entrelaçavam-se, alimentando a existência de um sentimento profundamente humano: o nativismo, razão pela qual para alguém da minha geração, falar da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré é tocar fundo em nosso coração e em nossa emoção.

Quando me fixo nas lembranças da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, é inevitável sentir que os nossos laços remontam do tempo em que viajei pela primeira vez, acompanhada dos meus pais Christina Struthos Pinheiro e Ary Tupinambá Penna Pinheiro, saindo da cidade de Guajará-Mirim para Porto Velho, em um dos seus vagões e, desde então, caminha em minha memória imagens nunca esquecidas. Voltar ao passado me fascina. Nós somos o que fomos. As nossas raízes, o nosso berço, a nossa infância, os antigos companheiros, as primeiras experiências, tudo isso constitui para mim, lembranças que acariciam a minha alma e afagam e conformam a minha velhice.

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... quando a infância vem visitar-me, e como passageira da tua história, parto em um trem num balanceio ritmado, puxado por uma locomotiva resfolegante e apitando, percorrendo trilhos escaldantes com paradas obrigatórias em Santo Antônio, Teotônio, São Carlos, Km 74, Jacy-Paraná, Jirau (localidade popularmente conhecida como “Poço Doce”, em razão de um ferroviário que ali morava ter esse apelido por cultivar e comercializar os abacaxis mais doces da região); Mutum-Paraná, Km 206, Abunã (vila onde o trem pernoitava), prosseguindo viagem ao amanhecer, parando em Penha Colorado, Taquara, Periquitos, Vila Murtinho, Iata e, finalmente, Guajará-Mirim...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... quando atravessavas a floresta virgem equatorial, fabulosa pelo seu potencial madeireiro, devorada pela voracidade tecnológica da sociedade industrial...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... quando mais uma vez acordo a infância distante e ouço as vozes e sons da natureza que invadia tua linha férrea... as vozes do vento cantando em coro harmonioso... as canções das águas do Madeira e Mamoré... o rumor enlouquecido das cachoeiras... o resmungo das árvores... o trilo suave do nambu tomando sol nos galhos das árvores... o grito do urutaí, gargalhada estremecedora... sinistra... a série de oito notas da voz fascinante e sonora do uirapuru... o zumbido das cabas e abelhas... os grasnados das araras... a vozearia dos periquitos, curicas e maracanãs discutindo, empoleirados nos ramos carregados de bagas violáceas de uma esbelta massaranduba... o assobio doce e triste de um coatá... o apito forte da jaquirana-boia, lembrando o de uma locomotiva... o grito do jacu... tá ruim... tá ruim... os roncos galanteadores monossilábicos do mutum macho seduzindo a fêmea, soando aos nossos ouvidos, como tum-tum de bombo... o coc, coc dos patos selvagens... enfim, na mata tudo era linguagem que se falava e ouvia na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... atualmente sem vozes... sem sons... sem canções... sem resmungos... sem rumores... sem guinchos... sem trilados... sem grinfos... sem cicios... sem arrulhos e sem vida...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira Mamoré... da saga da tua construção... dos amplos exemplos de homens que souberam contrabalançar o desbravamento dos sertões com o soro da bondade... da competência... Hospital da Candelária... Dr. Carl Lovelace... Dr. P. Belt... Dr. A. M. Walcolt... Dr. William Emerich... Dr. Whitaker... médicos que não traíram seus juramentos... seus ideais... poderiam recitar com Fernando Pessoa: “Cumpri com o meu destino, o meu dever no mundo. Inutilmente? Não, porque o cumpri”.

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... do teu filme em preto e branco... tendo como maquinista o popular Cassimiro... partindo da estação de Porto Velho... parando nas estações... acampamentos... um cafezinho acompanhado de biju de tapioca e bolo de macaxeira... filme de curta metragem... sem qualidade técnica... documentário de valor inestimável... em qual arquivo particular te encontras?

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... dando origem ao povoado de Porto Velho, transformado no correr do tempo em cidade bucólica... tranquila... de verde novo nos quintais povoados de árvores frutíferas... flores nos jardins das residências... a quietude das noites enluaradas interrompidas pelas serenatas, recurso para os enamorados enviarem mensagens e declarações de amor às suas amadas... dos paralelepípedos da ladeira “Comendador Centeno” e ruas comerciais... dos belos casarões de pinho-de-Riga... das noites memoráveis do Clube Internacional...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... em Vila Murtinho... apreciando o encontro das águas do Mamoré e Beni... formando um caudal único... o caudaloso e majestoso Madeira...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... vejo a tua composição... locomotiva... carros de passageiros... cargueiros... bagageiros... maquinista... foguista... ajudante... condutor (chefe do trem)... guardas freios... operários que davam a manutenção dos equipamentos e se encarregavam das manobras nas estações... condutor postal responsável pelas correspondências e encomendas.

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... nas imagens de Dana B. Merril... documentário de grande sensibilidade e habilidade extraordinária, contendo grande dimensão histórica retratando a invasão do homem na floresta... sua tecnologia avançada... engenharia audaciosa... sua dramaticidade... seus valores étnicos variados...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... teu trecho conhecido como Lajes... a locomotiva diminuindo a velocidade... local da Pedra Gorda, atraindo como imã os passageiros que esticavam os braços pelas janelas para tocá-la...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... ao rever teus anais... a luta patriótica de Aluízio Pinheiro Ferreira... teus serviços nacionalizados... salvos os empregos dos ferroviários...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... dos desfiles dos mestres de obras... operários... cassacos... empunhando instrumentos de trabalho e ostentando faixas reivindicando as leis trabalhistas... o Presidente Getúlio Vargas aplaudia... sorria... exclamando... “Isso aqui já é um território federal”...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... nas salas da Escola “Barão do Solimões”... construído... equipado... mantido por ti... prédio histórico que se orgulha de ter testemunhado a solene cerimonia da instalação do Território Federal do Guaporé... 29 de janeiro de 1944...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... refletindo que a população de Rondônia não teve oportunidade para opinar... influir... e decidir sobre a continuidade da tua vida utilitária... o desconhecimento do teu valor cultural determinou o esmagamento de tua história... deixar-te sem alma... sem memória... paralisando teus trabalhos... calando teus apitos e sirene...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... quando escritores... historiadores... poetas... artistas plásticos... músicos... artesãos... jornalistas... professores... arquitetos... não permanecem como meros espectadores lamentando como carpideiras tua destruição... nos escritos... nas artes... nas letras musicais... nos artigos em jornais... nas salas de aula... nossas obras... falas... denunciam tua criminosa erradicação... teu abandono... teu acervo sucateado... exigimos que tua história seja respeitada... teu patrimônio recuperado... a memória dos teus trabalhadores sejam honradas...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... nas grandes enchentes do Madeira e Mamoré... continuavas percorrendo os trilhos submersos d’água... como cisne garboso... elegante... deslizando indolentemente como nos versos de Júlio Salusse...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... ao reviver aqueles momentos tristes... chorando e vendo outros chorarem... locomotivas perfiladas... uma atrás da outra... apitando nostalgicamente... dando adeus ao povo amado que propiciou trabalho...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... ao ler os versos do príncipe dos poetas de Rondônia... Bolívar Marcelino... sobrevive entre nós, suscitando emoções ao escapar do parnasianismo... invadir o transrealismo... revelando a saga de tua construção... o lamentável abandono do teu acervo...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... na memória do governador Teixeira que te adotou... restaurou trechos... material rodante... implantou um museu... demonstrando extraordinária ligação e respeito à História de Rondônia... fato importantíssimo para que o País possa, inclusive, conservar, dentro da heterogeneidade de seus regionalismos... suas feições próprias...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... sonhar enquanto posso que, um dia tuas locomotivas... trens... em balanceio ritmado, chegarão a um trecho qualquer... resgatando tua memória... devolvendo-te tua alma...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... ao repudiar todos aqueles que invadiram nossa casa e tentaram roubar nossa identidade... nós, caboclos guerreiros... no tempo... no espaço... não esquecemos que somos o caule... os ramos... as folhas... as flores... os frutos... da tua raiz... tua história... faz nossa diferença cultural...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... vejo-te inscrita na Lista do Patrimônio Mundial da Humanidade... UNESCO... documentando teu precioso passado... respeitando teu valor histórico... sentimental... arquitetura incorporada ao mais alto grau de intensidade do gênio humano...

Lembro-me de ti, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré... a salvaguarda do que resta dos teus bens móveis e imóveis... sua manutenção... constituirá em centro irradiador de História e Cultura.

* Yêdda Pinheiro Borzacov, da Academia de Letras de Rondônia, do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia, vice-presidente do Memorial Jorge Teixeira e colunista do site Gente de Opinião.

NAS DOBRAS DO TEMPO - Gente de Opinião

Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Foto: Dana Merril

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoQuinta-feira, 26 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

O intelectual Gesson Magalhães

O intelectual Gesson Magalhães

A intelectualidade de Rondônia está de luto. Morreu o poeta romântico Gesson Magalhães. Morreu o confrade que ocupou com mérito a cadeira número dois

Cidade dos Barbadianos

Cidade dos Barbadianos

Nas proximidades do leito da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré surgiram alguns bairros populacionais

Euro Tourinho, o intérprete do nosso jornalismo

Euro Tourinho, o intérprete do nosso jornalismo

O perfil de um homem vai se cinzelando no decorrer dos anos e a poeira do tempo, como procede inexoravelmente, a história, vai laminando as reputaçõ

Conheça a literatura de Porto Velho

Conheça a literatura de Porto Velho

Aplaudo e abraço com afeto, mais uma vez, a professora, escritora e acadêmica Sandra Castiel, amorosa porto-velhense que enobrece e honra a Academia

Gente de Opinião Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)