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Gente de Opinião

Yêdda Pinheiro Borzacov

REATIVAÇÃO DE TRECHOS DA E.F. MADEIRA-MAMORÉ


Parecia que na década de 1970 ninguém mais no Brasil queria saber de locomotiva a vapor e trem. Puro engano. Em 1978, o governador do Território Federal de Rondônia, Cel. Humberto da Silva Guedes, contratou o arquiteto Jorge Neves para efetuar um projeto de recuperação da via férrea e do seu acervo. O ato louvável do governador Guedes foi ignorado pelas esferas superiores e, no dia 6 de abril de 1979, o jornal “O Estado de São Paulo” denunciava que a Rede Ferroviária Federal – REFESA baixaria o edital de concorrência pública para a venda do acervo móvel da E.F. Madeira-Mamoré, com “seus 290 km de linha em bitola de um metro, 262 mil e quinhentos quilos de posteação de trilhos existentes em toda a extensão da linha, locomotivas, vagões, autos de linha, troles, caixas d’água e outros”. O total do inestimável acervo histórico à venda era de 1.540 toneladas. Houve um equívoco no texto publicado ao referir-se 290 km, na realidade, seriam 366 km.

Esse atentado contra a história do Brasil, parecia ser fato concretizado, entretanto, a comunidade de Porto Velho lançou o seu grito de alerta contra o edital de concorrência pública. Iniciativas vibrantes e corajosas ocorreram, um júri-simulado, organizado por nós, que éramos à época, Professora de História Regional (Rondônia), do curso de Magistério da Escola Normal “Carmela Dutra”, ocasião em que um comovente realce à técnica de ensino se deu por meio da brilhante defesa a favor da conservação e manutenção do acervo ferroviário, em Rondônia, feita por Liduína Fernandes Ramos, hoje, Sra. Pastor Joel Holder, aluna revelação da primeira série do curso.

Seguiram-se com a mesma temática artigos veementes dos jornalistas Ary Macedo e Emanuel Pontes Pinto publicados no jornal “O Guaporé” e de Euro Tourinho, no jornal “Alto Madeira”. Um memorial com mais de mil assinaturas foi enviado pela Associação dos Arquitetos de Rondônia, Associação dos Escritores de Rondônia e dos ferroviários, ao Diretor-Geral do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, Aluízio Magalhães, contendo apelo dramático a respeito da licitação do lote dos equipamentos e máquinas pertencentes à lendária ferrovia, pedia para que o IPHAN interviesse, impedindo a venda do acervo histórico. A Sociedade Brasileira de Proteção Ferroviária fez idêntico apelo. Contava, Aluízio Magalhães, que ao receber os documentos reivindicatórios, perguntou à sua secretária o que se fazia antes ali no IPHAN, diante de tal situação, (havia assumido o cargo recentemente). Ela o informou que se mandava um ofício para a autoridade competente. Ora, pensou Aluízio Magalhães, proceder assim no caso da Madeira-Mamoré era continuar usando o método de simplesmente se descartar do problema. Na próxima semana seria a licitação e provavelmente a semana passaria bem antes de vir a resposta. Naquele momento despertou em Aluízio Magalhães a necessidade de soluções mais imediatas e enfrentou o problema aplicando o método conveniente. A sua intuição afirmava, foi perceber: “No momento preciso, a oportunidade da problemática da interiorização do País, a importância das alternativas energéticas (volta às estradas de ferro)”.

Em 1979, novo governador foi nomeado para o Território Federal de Rondônia, o ex-prefeito de Manaus, o Cel. Jorge Teixeira de Oliveira que, ao chegar a Porto Velho, no dia 10 de abril de 1979, compreendeu de imediato que a aplicação do decreto nº 58.501 de 25 de maio de 1966 determinando a erradicação da ferrovia a partir da publicação do decreto era um ato tecnocrático e centralizador de desativação. Não se levava em conta a peculiaridade de que a ferrovia funcionava como um sistema vascular, alimentando culturalmente a área amazônica rondoniense.

O governador Jorge Teixeira entrou em contato com o Ministério de Transportes e unindo forças com Aluízio Magalhães fez veementes protestos, enfatizando que a História prepararia o julgamento dos nossos feitos e registraria os nomes dos homens que desrespeitassem a memória viva de Rondônia – a E.F. Madeira-Mamoré, reverenciada pelos rondonienses. E, juntos, Jorge Teixeira de Oliveira e Aluízio Magalhães, com o apoio popular das entidades de classe, do povo de Rondônia e da mídia nacional, merecendo destaque o artigo dos jornalistas Rodolfo Espínola e Lúcio Albuquerque, correspondentes à época, em Porto Velho, do jornal “O Estado de São Paulo”, e também artigos de vários outros jornalistas, conseguiram impedir com as suas intervenções que o restante do acervo da Madeira-Mamoré fosse vendido como sucata. O edital de concorrência pública foi anulado, evitando-se assim, o que ocorreu com a E.F. Belém-Bragança, quando no período da erradicação foi riscado de vez do solo paraense todo o vestígio ferroviário.

O governador Jorge Teixeira colocou em ação o seu plano de trabalho, solicitando em caráter de urgência à REFESA, a vinda de um engenheiro ferroviário visando efetuar um levantamento preliminar das condições em que se encontrava o trecho férreo compreendido entre Porto Velho/Teotônio. Assessorado pelo engenheiro civil Luís Gonzaga Farias e pelo sargento R1, João Dantas Cyrino, o engenheiro ferroviário Walter Gêd Chagas Valverde, da REFESA, relata: “As depredações contra a ferrovia foram consideráveis ao longo dos 25 km, a partir de Porto Velho. A linha apresenta-se com vários quilômetros de trilhos soterrados, trilhos arrancados e deixados em alguns trechos às margens do leito; dormentes retirados ou totalmente danificados pelo fogo (consequência da queimada da mata para plantio); aterros rompidos e trilhos escorados em estacas servindo de pontes para pedestres”.

Consciente de que a construção do futuro Estado de Rondônia e da grandeza do seu povo não se fundamentaria, somente, em alicerces materiais e que ao proteger os símbolos daquilo que fomos um dia, valoriza-se o presente, o governador Teixeira iniciou a arrancada para a concretização da recuperação, inicialmente, de 7 km da linha férrea, de uma locomotiva, de uma cegonha, de três vagões, da estação de Porto Velho, do plano inclinado e do armazém nº 1.

A saída no dia 5 de maio de 1981, da estação de Porto Velho, em direção a Santo Antônio, da pequena locomotiva Baldwin – nº 50, dirigida por Manuel Soares da Silva, puxando três carros, marcou a reinauguração dos primeiros quilômetros reconstruídos, cumprindo, assim, o governador Teixeira com a promessa que fez ao povo de Rondônia ao chegar a Porto Velho após sua posse.

Para o êxito desse empreendimento a equipe era formada: engenheira ferroviária Antônia Lúcia Palitot, João Dantas Cyrino e ferroviários Arthur Winter, Silas e Paulo Schokness, Águido Vargas, Carol Van Denny, Manuel Soares da Silva, Raimundo Fernandes da Cruz, Temístocles Pinheiro Nascimento, Leopoldo Matias de Freitas, João Pádua, Oscar Ferreira, Moisés Teodoro Lemos e Jorge Queiroz da Silva, dentre outros. Essa equipe contribuiu decisivamente para que a E.F. Madeira-Mamoré não ficasse apenas como um museu ou recordações e, sim, como memória viva, a locomotiva andando, percorrendo trilhos, fazendo ouvir seu barulho típico, seu sino e o silvo de seu apito.

O equipamento rodante ferroviário foi restaurado de forma artesanal, em oficina adaptada no armazém nº 2. Os antigos ferroviários fundiram, eles próprios, as peças imprescindíveis à recuperação (raras foram as reposições com peças novas).

Paralelamente aos trabalhos de restauração, foi organizado o Museu Ferroviário, no galpão nº 1, (antes funcionava na estação com apenas 64 peças). A equipe foi assim formada: Yêdda Pinheiro Borzacov (coordenadora), Doralice Lira, Cléa Mercês, Hugo Moura, Francisca Reis e Alda Marrocos.

A reativação estendeu-se em 1983 até Teotônio, e teria prosseguido se o governador Teixeira tivesse continuado no governo.

Em termos práticos, a reativação proporcionou o aparecimento de pequenos núcleos populacionais formados por colonos que, no momento da desativação da ferrovia, abandonaram suas terras para se estabelecerem ao longo da rodovia recém-criada, retornando, novamente, às margens do trecho férreo com a reativação.

Retomando a questão da valorização do patrimônio histórico, a reativação contribuiu para a dinamização do turismo, já que representava um estímulo específico para algumas pessoas e um estímulo adicional para um contingente mais significativo de turistas.

O trabalho de reativação prosseguiu. Em dezembro de 1984 foram reativados, em Guajará-Mirim, 8 km; recuperados um vagão, a locomotiva nº 20 e um trailler motorizado. O trecho reativado possibilitou um melhor atendimento à população fixada ao longo do trecho férreo e que se encontrava praticamente isolada por estar afastada da rodovia. Houve também a incrementação do turismo.

Lamentavelmente, quando o governador Jorge Teixeira deixou o governo de Rondônia, em 1985, a E.F. Madeira-Mamoré deixou de ser prioridade para as áreas da cultura e do turismo. Tanto em Porto Velho como em Guajará-Mirim, o crescimento urbano avançou e as prefeituras desses municípios permitiram as construções de residências e casas comerciais muito próximas à linha férrea, contrariando, assim, o dispositivo do Regulamento para a Segurança, Tráfegos e Polícia das Estradas de Ferro, comprometendo a estabilidade da via férrea, pois a constante passagem de pedestres sobre a mesma provoca fuga do lastro e descalçamento das cabeças dos dormentes.

A E.F. Madeira-Mamoré, se falhou aos desígnios econômicos, não deveria falhar como atração cultural-turística, em razão de representar uma das mais importantes obras de engenharia do início do século XX, e seu acervo demonstrar a caracterização não apenas de uma das tentativas de ocupação dessa parte do oeste brasileiro, como também a vinda da moderna tecnologia da época, representada pela energia a vapor.

Apesar do terrível e trágico golpe da desativação e suas consequências, e o abandono pelo qual passa, a comunidade da área mais tradicional do Estado, Madeira e Mamoré, aguarda o reconhecimento daqueles que detêm o poder para garantir a preservação da memória ferroviária. Afinal, todo povo tem o direito de viver, de opinar e influir nos destinos da sua cidade, do seu Estado, da sua região. E o grande anseio da comunidade de Porto Velho e de Guajará-Mirim é no sentido de que alguns trechos da ferrovia voltem a funcionar, em respeito à memória ferroviária.

Senhor prefeito Hildon Chaves, existe no tempo e no espaço ocasiões de nossa existência em que nosso sentimento nativista se manifesta entusiasmado ao constatar que pessoas exercendo cargos que têm o dever de zelar pelo patrimônio histórico material tomam de imediato providências, assim que assumem o poder, para protegê-lo e revitalizá-lo. Aplaudimos suas visitas ao complexo ferroviário e suas declarações referentes ao maior patrimônio histórico material de Rondônia: a E.F. Madeira-Mamoré, principalmente após a tendência anteriormente existente de destruir sistematicamente sua memória objetiva, deixando à comunidade somente as lembranças subjetivas quase sempre desqualificadas pelos mecanismos de um saber que confere aos “especialistas” a capacidade exclusiva de decidir sobre o valor e a relevância dos sinais e registros do passado.

Torne-se, prefeito Hildon Chaves, seu guardião, tal como ocorreu com o batalhador incansável, Jorge Teixeira de Oliveira, em prol da reativação de trechos ferroviários e instalação do museu para fins turísticos e preservação da memória ferroviária.

Recuperá-los, além de ser um ato de reconhecimento à História do Brasil, é medida elementar de inteligência.

* Yêdda Pinheiro Borzacov, da Academia de Letras de Rondônia, do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia, vice-presidente do Memorial Jorge Teixeira, da Academia Histórica Militar Príncipe da Beira, colunista do site Gente de Opinião e do jornal Alto Madeira.

REATIVAÇÃO DE TRECHOS DA E.F. MADEIRA-MAMORÉ - Gente de Opinião

Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e capa do livro Imagens de Rondônia. Imagem: Google/Terra

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