Terça-feira, 31 de julho de 2012 - 18h11
* Ricardo Leite
Vivemos um momento histórico da civilização humana de valorização crescente daquilo que se convencionou ser patrimônio de todos habitantes do planeta Terra, como o meio ambiente sadio, a dignidade humana e seus direitos básicos, as conquistas da medicina e, também, a cultura, especialmente por suas manifestações materiais e imateriais autênticas e de valor excepcional universal. São bens e valores que não pertencem apenas a uma nação, a um país, mas a todos nós, habitantes do planeta, sejamos americanos, japoneses, mexicanos, russos, angolanos, chineses, ingleses, ou brasileiros de Rondônia. E por isso, esses bens universalmente valiosos devem ser socializados, valorizados e protegidos.
A espetacular Estrada de Ferro Madeira Mamoré (EFMM), desde sua épica construção multinacional, com representantes de quase metade das nacionalidades existentes no mundo da época, é, na prática, um patrimônio da humanidade, sob administração brasileira e, especialmente, rondoniense. Apenas por esse fato, é justo e necessário ser reconhecida e incluída na lista oficial da Unesco, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, órgão da ONU, Organizações das Nações Unidas. Mas a EFMM atende também a outros requisitos exigidos.
A inclusão na honrosa listagem de pouco mais de 900 bens – e apenas 19 brasileiros[1]--, não é uma mera anotação ou inventário burocrático. É, a rigor, um título de valor inestimável, com consequências palpáveis, como vizibilidade planetária positiva automática, inclusão imediata em rotas turísticas internacionais, apoio financeiro multinacional e proteção internacional permanente. É um título que não há dinheiro que pague, capaz de gerar empregos e renda, num ciclo virtuoso do turismo cultural.
A proteção jurídica que sustenta a preservação ampla da EFMM tem dois pilares: a Constituição Federal (Título VIII, Capítulo III, Seção II – Da Cultura[2]; e o artigo 264 da Constituição Estadual de Rondônia. Tombada pela União em 2006 no trecho de Porto Velho a Santo Antônio, incluídas as três monumentais Caixa D’água; e pela lei maior do Estado de Rondônia, em toda sua extensão e seu acervo (1989)[3]. Incluí-la na lista da Unesco, agrega uma rede de proteção firmada na Conveção IntenacionalRelativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, aprovada em Paris, em 1972, da qual o Brasil é signatário, e traz consigo a fiscalização internacional permanente, com cobranças aos Governos Federal, Estadual e Municipal, em relatórios periódicos, o que garante efetivamente o não-retorno jamais ao cenário de descaso que viveu a EFMM até 2006.
Símbolo da vitória e ousadias humanas frente ao desconhecido, a EFMM nasceu de um desafio: vencer a mais brutal selva do mundo. Depois de duas tentativas fracassadas na década de 1870, a explosão do valor da borracha como ouro, permitiu viabilizar nova tentativa de construí-la. “Vai ser nosso cartão de visitas!” prometeu Percival Farquhar, magnata americano que se apaixonou pelo Brasil, e viveu muitos anos no Rio de Janeiro. Comandada por 876 americanos, com apoio de outras 51 nacionalidades – quase uma ONU da época --, a obra é um orgulho da engenharia e do empreendedorismo norte-americano, fato que por si só permite contar com o apoio decisivo da delegação americana na Unesco por ocasião da votação para inclusão na lista. Registre-se que o Governo de Rondônia, por justiça histórica, condecorou Farquhar e os 876 americanos que comandaram a obra, abrindo assim portas importantes de alianças variadas com os EUA[4].
A Unesco apresenta sete critérios básicos para aferir a condição excepcional de um bem e incluí-lo na lista. Basta se encaixar em um desses critérios, mas a EFMM está perfeitamente inclusa em dois: II – exerce grande influência, por um período de tempo ou dentro de uma área cultural específica do mundo, a respeito do desenvolvimento da arquitetura, das artes monumentais, do planejamento de cidades ou do modelo de paisagens; IV – é um excepcional exemplo de um tipo de construção ou conjunto arquitetônico ou paisagem que ilustre significativo (s) estágio (s) da história humana. Lembremo-nos que a EFMM é um marco do processo civilizatório da Amazônia e sua construção hercúlea valeu-se de engenho e arte de vários ramos da ciência universal, inclusive a medicina, sem a qual a obra sucumbiria novamente.
Mas não é só. A Unesco pede mais. Quer escrutinar se o ambiente sócio-cultural do lugar onde está localizado o bem candidato é favorável à preservação e validação dos propósitos universamente aceitos em sua convenção. Ou seja, inspetores virão em Rondônia saber se o povo dá valor a EFMM. Portanto, todas as manifestações públicas dos poderes constituídos, sociedade civil e cidadãos têm valor crucial para a campanha pro-candidatura[5]. Conta pontos assinar o abaixo-assinado físico e virtual, publicar artigos, comentários, fotos, usar as redes sociais, enfim, externar o sentimento, que existe no coração dos rondonienses e de todos que amam a EFMM, e seu simbolismo excepcional de superação, cooperação entre os povos e coragem humana, que fizeram surgir Porto Velho e o Estado de Rondônia.
O ambiente das amplas comemorações do centenário este ano, amplificam as palavras de carinho e generosidade em favor da EFMM e comungam com a revitalização, dos galpões, oficinas (futuro museu), entorno da Igreja de Santo Antônio, cemitério da Candelária e, finalmente, a restauração total de três locomotivas e vagões de passageiros para passeios turísticos, pagas pela compensação da Usina de Santo Antônio, num formato que se pretende espelhar no sucesso do complexo de Docas do Pará em Belém e de trens turísticos do Sudeste e Sul do país. Tudo contribuindo para que uma das mais fantásticas páginas da História do Brasil seja também reconhecida como da humanidade.
*Ricardo Leite é Procurador Federal e coordenador do Comitê Pro-Candidatura da EFMM a Patrimônio Cultural da Humanidade.
[1] Outros 19 bens culturais e naturais brasileiros também integram. No total, a lista de patrimônios da Unesco é composta por 911 itens. Os bens culturais da Unesco no Brasil são as seguintes: o Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Ouro Preto, em Minas Gerais, que foi declarado no ano de 1980; Centro Histórico de Olinda, em Pernambuco1(982); as Ruínas de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul em 1983; Santuário do Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas, em Minas Gerais no ano de 1985; Centro Histórico de Salvador, na Bahia no ano de 1985; Conjunto Urbanístico de Brasília, no Distrito Federal no ano de 1987; Centro Histórico de São Luís, no Maranhão, em 1997; Centro Histórico de Diamantina, em Minas Gerais, em 1999; Centro Histórico de Goiás, Goiás, no ano de 2001; Praça de São Francisco em São Cristóvão, Sergipe em 2010. Já na lista de bens naturais brasileiros da Unesco estão: Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná (1986); Costa do Descobrimento, Bahia e Espírito Santo, em 1997; Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí (1998); Reserva Mata Atlântica, São Paulo e Paraná, em 1999; Parque Nacional do Jaú, Amazonas, no ano 2000; Pantanal Mato-grossense, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em 2000; Reservas do Cerrado: Parque Nacional dos Veadeiros e das Emas, em Goiás no ano de 2001; e Parque Nacional de Fernando de Noronha, em Pernambuco (2001). O Rio de Janeiro foi incluído como paisagem cultural em 1º de julho de 2012.
[2]Art. 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1.º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das
de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2.º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1.º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2.º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3.º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4.º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
§ 5.º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos
antigos quilombos.
[3]Art. 264 - Ficam tombados os sítios arqueológicos, a Estrada de Ferro Madeira- Mamoré com todo o seu acervo, o Real Forte do Príncipe da Beira, os postos telegráficos e demais acervos da Comissão Rondon, o local da antiga cidade de Santo Antonio do Alto Madeira, o Cemitério da Candelária, o Cemitério dos Inocentes, o Prédio da Cooperativa dos Seringalistas, o marco das coordenadas geográficas da cidade de Porto Velho e outros que venham a ser definidos em lei. Parágrafo único - As terras pertencentes à antiga Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e outras consideradas de importância histórica, revertidas ao patrimônio do Estado, não serão discriminadas, sendo nulos de pleno direito os atos de qualquer natureza que tenham por objeto o seu domínio, uma vez praticados pelo Governo do Estado, sendo seu uso disciplinado em lei.
[4]DECRETO DE 18 DE MARÇO DE 2011. O GOVERNADOR DO ESTADO DE RONDÔNIA, na qualidade de Grão-Mestre da Ordem do Mérito Marechal Rondon e, nos termos do artigo 6º, da Lei
nº 2262, de 3 de março de 2010, e Considerando a visita ao Brasil nos dias 19 e 20 de março de 2011, do Presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama; Considerando a participação do Governador
do Estado de Rondônia em evento com a presença do Presidente Barack Obama em Brasília no dia 19
de março de 2011; Considerando os vínculos históricos que unem o Estado de Rondônia e os Estados Unidos da América, especialmente no que diz respeito à construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré (1907- 1912), à fundação da capital do Estado, Porto Velho, em 4 de julho de 1907 como cidade-empresa
da ferrovia, e a Expedição Científica, Presidente Teodore Roosevelt e Marechal Cândido Rondon (1912-1913), em terras do atual Estado de Rondônia; e Considerando a participação proeminente do empresário americano Percival Farquhar e 876 (oitocentos e setenta e seis) norte-americanos que comandaram a épica construção da ferrovia “Estrada de Ferro Madeira Mamoré”, R E S O L V E: Condecorar, in memorian, na pessoa do Sr. BARACK HUSSEIN OBAMA JR, Presidente dos Estados Unidos da América, Ordem do Mérito Marechal Rondon, no Grau de Grande Colar, o Sr. Percival Farquhar e outros 876 (oitocentos e setenta e seis) americanos que comandaram a construção entre 1907 e 1912 da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Palácio do Governo do Estado de Rondônia, em 18 de março de 2011, 123º da República. CONFÚCIO AIRES MOURA Governador
[5]Aderiram oficialmente: Assembléia Legislativa, Governo do Estado, Iphan-RO, Órgãos de Imprensa, Câmara Municipal, Prefeitura de Porto Velho, OAB, FIERO, Fecomércio, Academia de Letras, Instituto Histórico e Geográfico, Correios, 17º Brigada de Selva, Sebrae.
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