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A morte de Gabriel García Márquez



Erick Vasconcelos

A morte de Gabriel García Márquez, no último dia 17, foi um momento especialmente doloroso para qualquer um na América Latina — ou, de fato, em qualquer outro lugar — que já tenha se aventurado a ler algum dos trabalhos desse mestre literário. Porém, para mim, a dor do evento não se deveu exclusivamente ao fato de “Gabo” não mais se encontrar entre nós, mortais. Há partes das vidas das pessoas que parecem mais vivas e importantes justamente quando elas respiram pela última vez. Assim, hoje, meu respeito e minha admiração pela pena de Márquez entram em conflito com minha desilusão com suas ideias políticas.

Os detalhes de sua amizade e trabalho conjunto com Fidel Castro são bem conhecidos. Em 1959, juntou-se à agência Prensa Latina, fundada por Che Guevara e Jorge Ricardo Masetti. Em suas visitas a Cuba, permanecia numa das luxuosas vilas protocolares reservadas por El Comandante a seus amigos. Compartilhavam paixões culinárias: o prato preferido de Gabo era a lagosta à la Macondo, o de Fidel era sopa de tartaruga. Acima de tudo, dividiam o sonho de que a revolução traria, um dia, prosperidade infinita para os cubanos comuns que passavam horas na fila sob o sol, com as cadernetas de ração em mãos, para conseguir um pouco de arroz e feijão.

Em 1988, vivendo em Havana, Márquez avançava em O general em seu labirinto, livro sobre os últimos anos de vida de Simón Bolívar. Gerald Martin, autor da primeira biografia completa de Márquez publicada em inglês, sugere que sua descrição de Bolívar era inspirada por características de Castro. Em 1989, dedicou o livro a um de seus grandes amigos, Antonio “Tony” la Guardia, um coronel do Ministério do Interior de Cuba: “Para Tony, que ele semeie bem”.

No mesmo ano, Tony de la Guardia foi condenado à morte por tráfico de drogas e traição. Quando a filha de De la Guardia implorou a Márquez para que intercedesse em favor de seu pai, disse-lhe ele que “Fidel seria louco” se permitisse a execução, dando alguma esperança a ela. Pouco tempo depois, Tony foi morto.

Aparentemente Márquez havia se tornado tão cúmplice de Castro que passou a racionalizar a execução de De la Guardia como uma mera “disputa entre oficiais”, como disse a François Miterrand durante a celebração do bicentenário da Revolução Francesa. Também afirmou publicamente que as acusações de traição eram justificadas e que, dada a situação, Castro não tinha alternativa.

Ao ler “Operación Carlota: Cuba en Angola”, uma aclamada crônica escrita sob a supervisão de Castro, o também nobelista de literatura Mario Vargas Llosa acusou Márquez de ser “lacaio” de Castro. Outrora grandes amigos, os escritores se distanciaram devido a diferenças ideológicas. Também infelizmente, Llosa se tornou seu inimigo perfeito, idolatrado por intelectuais de direita supostamente liberais por toda a América Latina.

Llosa, contudo, nos oferece um exemplo ainda mais marcante da trágica racionalização dos atos das autoridades, mais grave ainda que a execução de um só homem. Antes da invasão do Iraque em 2003, Llosa foi pública e veementemente contra a guerra. Alguns meses depois, após cobrir a invasão em solo para o jornal El País, passou a afirmar que apesar das gigantescas perdas de vidas e riquezas que havia testemunhado, se estivesse no lugar dos iraquianos, teria “apoiado a intervenção [sic] sem hesitar”.

Embora infelizes, os contrastes entre as miopias ideológicas e os gênios literários de cada autor nem se compara ao profundo sofrimento causado pelo embate entre suas visões de mundo. Vários de nossos complexos de inferioridade cultural se resumem a nossa obsessão com as superpotências, tanto como causa de todos os nossos problemas sociais quanto como fonte divina de paz, prosperidade e justiça. Inevitavelmente, qualquer pensamento racional sobre nosso relacionamento com as grandes potências ou sobre como devemos nos portar politicamente como adultos se perde em um jogo sem fim de acusações de proporções épicas.

Cada autor representa o arquétipo da revolta latino-americana contra uma forma de autoridade e da submissão à outra. Talvez estejamos para sempre amaldiçoados por um feitiço mágico-realista que nos condena a viver para sempre ligados a um dos extremos dessa falsa dicotomia. Eu prefiro pensar, contudo, que, ao nos expormos às contradições mostradas pela leitura de cada uma das palavras colocadas no papel por esses dois grandes e tragicamente equivocados escritores, poderemos nos livrar desse encanto.

Alan Furth é coordenador de mídias em língua espanhola do Centro por uma Sociedade Sem Estado.

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