Terça-feira, 30 de janeiro de 2024 - 11h15
Desde que
foi criado, há 72 anos, o Programa Nuclear Brasileiro e as Indústrias Nucleares
do Brasil (INB) nunca viveram um ano tão catastrófico. 2023 chegou muito
agourento, pipocando graves denúncias, especialmente em Minas Gerais e Rio de
Janeiro. Em Caldas (MG), funcionou o primeiro complexo mínero-industrial de
exploração de urânio, hoje chamado Unidade
de Descomissionamento de Caldas (UDC). Ali aconteceu a primeira fase da
cadeia de produção da energia nuclear no Brasil. Em Rezende e Angra dos Reis
(RJ) ocorrem as atividades da última fase do ciclo atômico, incluindo a operação
de duas usinas e a inconclusa obra de Angra 3 que, em 40 anos consumiu R$8 bilhões do orçamento estimado em R$28
bilhões. As populações atingidas mais diretamente por estes infortúnios são,
portanto, do Planalto de Poços de Caldas (MG) e do Rio de Janeiro.
Em 2023, ocorreram mais de 10 eventos
funestos, provando falhas críticas nos protocolos de segurança, relativos ao
deslocamento e guarda de material radioativo, colocando em risco a segurança
nuclear e em radioproteção dos trabalhadores e da sociedade. Abaixo apontamos
alguns desses fatos. Em fevereiro/23, finalmente, o Instituto do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) multou a Eletronuclear por
ter omitido o vazamento de efluentes com material radioativo da usina Angra 1,
ocorrido em 16 de setembro de 2022. A empresa tentou negar a todo custo a vazão
que atingiu a Baía de Itaorna (Angra dos Reis – RJ).
Barragens radioativas
Ainda em fevereiro,
a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) admitiu existir infiltração e
problemas com uma pluma de drenagem
ácida atingindo o Córrego Consulta, em Poços de Caldas (MG), consequência das
atividades radioativas da UDC/Caldas que, desde 1995 passa por um longo e
polêmico processo de desmontagem. A CNEN – que regula e fiscaliza as
atividades radiológicas da INB – admitiu também que o leito da Bacia de Águas Claras tem resíduos gerados pelo
sistema de tratamento de águas ácidas da mesma UDC, o que eleva o potencial de
contaminação do lençol freático da região por metais pesados e radioativos.
Em março, noticiou-se o
vazamento do gás hexafluoreto de urânio, causado por defeito em equipamento da
Unidade de Enriquecimento de Urânio da Fábrica de Combustível Nuclear da INB, em Resende (RJ). Em contato com o
ar, o gás gera ácido fluorídrico (HF),
gás incolor e corrosivo,
Em abril, a obra de
Angra 3 foi, mais uma vez, paralisada por embargo da prefeitura de Angra dos
Reis, que alegou ter havido alteração no projeto urbanístico da usina, aprovado
pelo governo municipal.
A primeira inspeção oficial na UDC/Caldas, pela Agência Nacional de Mineração (ANM), que há dois anos passou
a regular e fiscalizar as estruturas de mineração da INB, aconteceu em junho.
Os fiscais da ANM enquadraram a Barragem de Rejeitos BAR e a D4 – que abrigam lixo radioativo oriundo de rejeitos da
mineração, materiais pesados e lama radioativa – no Nível de Emergência 1 (NE1), com categoria de risco
alto, pelo perigo de rompimento. O NE1 é o segundo degrau na escala de gravidade,
indicando que já ultrapassou o nível de alerta.
Urânio à deriva
Entre os furtos de material perigoso, destacamos o sumiço na
Fábrica de Combustível Nuclear, em Resende, em julho, de duas cápsulas, com gás hexafluoreto de urânio enriquecido,
usado no fabrico de elementos combustíveis para as usinas atômicas de Angra. Mais de seis meses depois, não se
sabe o paradeiro do urânio, que porta perigos radiológicos
e químicos significativos, em caso de manipulação errada. A sociedade aguarda a divulgação do resultado das
investigações sobre este bizarro furto. Na época, a Polícia Federal arrolou 20 empregados da INB, onde foram inúteis as
buscas, incluindo nas áreas supervisionadas e controladas.
Também em julho,
no relatório final da primeira inspeção realizada nas instalações da
INB/Caldas, a ANM além de manter o Nível de
Emergência 1 (NE1) para a Barragem
de Rejeitos BAR e a D4, enquadrou também a Bacia Nestor Figueiredo no NE1.
Setembro trouxe más notícias.
A ANM fez nova inspeção nas barragens
de rejeitos de Caldas. O
relatório da vistoria informa não ter encontrado anomalias que ameacem, de imediato, as estruturas, mas identificou
situações que precisam de monitoramento e trouxe novas exigências técnicas. No
mesmo mês, a Inspeção de
Segurança Regular realizada sobre as estruturas da UDC por auditor
independente, contratado pela própria INB, confirmou a gravidade da situação,
indicando obras de adequação nas edificações.
Falhas em Angra 1
Inaugurada em 1981, Angra 1, apelidada usina “vaga-lume” (foi desligada
dezenas de vezes). A unidade, que vem tentando modernizar seu ultrapassado
projeto, passou por várias paradas no segundo semestre/23. Estava desligada em outubro
e em 22 de novembro, com falhas em equipamentos elétricos, enfrentou um “Evento Não Usual”, o primeiro
da escala de emergência da unidade.
2024
chegou evidenciando, mais uma vez, a fragilidade da
(in)segurança atômica coletiva, onde casos policiais se destacam. Já no
1o dia do novo ano, em área de segurança
nacional (pasmem!) sete jovens foram presos, após invadirem o prédio
do Centro de Treinamento, no distrito de Engenheiro Passos (Rezende),
na mesma Fábrica de
Combustível Nuclear da INB, de onde sumiram as ampolas de urânio enriquecido que
ensejou muitas críticas sobre a conhecida desorganização do setor nuclear.
Supostamente interessados em equipamentos eletrônicos, os jovens foram levados
para a Polícia Federal e redirecionados para a Polícia Civil, onde foram
autuados por tentativa de furto e liberados pra aguardar convocação da Justiça.
Na última terça-feira, (16 de janeiro) Angra 1
voltou a ser paralisada para consertar a turbina da unidade, pois ocorreram avarias em uma das
válvulas de bloqueio de vapor do circuito secundário. Não há previsão para o
retorno da usina ao Sistema Integrado Nacional. Apesar dos alertas de
especialistas, Angra 1 vem sendo recauchutada para durar mais 20 anos. https://taniamalheiros-jornalista.blogspot.com/2024/01/angra-1-comeca-2024-com-defeitos-e-mais.html
Produção frustrante
2023 também foi desastroso na
esfera da produção do urânio, matéria-prima do combustível da
energia atômica. Na Unidade de Concentração de Urânio da INB, em Caetité/BA – única mineração em atividade no Brasil – lavrou-se quantidade de minério, muito além do que se pretendia,
complicando ainda mais os problemas da empresa. A INB opera com uma planta
industrial ultrapassada, com equipamentos obsoletos e quebradiços, escassez de
água e uma série de problemas. Neste janeiro/24, a indústria sofreu nova parada, desta vez porque um vendaval destelhou
a fábrica. A jazida do Engenho, inaugurada com toda pompa, há quatro anos,
prometia 260 toneladas do minério por ano, estreando um ciclo de ouro atômico
para o país. Mas até 2022 atingiu uma escala pífia de produção. Em 2023 só
conseguiu produzir 100 toneladas, menos da metade do total anunciado.
A exploração do
urânio do Ceará, que deveria suceder a Bahia como estado supridor da demanda
nacional do minério, está emperrada. Há mais de 20 anos, a INB tenta explorar o
minério de Itataia (Santa Quitéria), que se apresenta associado ao fosfato. O
licenciamento da mineração foi negado três vezes. O de 2004 foi arquivado pela
Justiça. O de 2009 foi arquivado pelo IBAMA, por inviabilidade hídrica e
ambiental. O de 2014 foi desaprovado pelos técnicos do IBAMA. Mas, em dezembro/22,
o condescendente presidente do órgão, deu mais tempo para o consórcio
solucionar os problemas apontados. Importante registrar que este maléfico
projeto disputa o uso da água, em região de extrema escassez, e pode afetar
diretamente 156 comunidades, 30 territórios de povos e comunidades tradicionais
e cinco etnias indígenas.
TCU aponta fragilidades
Prestes a findar 2023, em audiência pública da Comissão de Minas e Energia da Câmara dos
Deputados (28 de novembro), a auditora do Tribunal de Contas da União (TCU)
Arlene Nascimento citou a insegurança das barragens de rejeitos em Caldas (MG)
e o desaparecimento das ampolas de urânio enriquecido em Rezende (RJ) como
eventos que preocupam. Lembrou que há mais de 10 anos, o TCU indicou a
necessidade da criação de um órgão para tratar da segurança nuclear,
considerando que o “modelo
adotado no Brasil para o tema estava em desacordo com a Convenção Conjunta
sobre Gerenciamento Seguro de Combustível Nuclear Usado e de Rejeitos
Radioativos, da qual o Brasil é signatário.” Como a Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN) não funciona (mesmo
após dois anos de criada), a CNEN segue respondendo pela segurança, porém com
“dispositivos restritos” e sem “mecanismos que evitem problemas”.
Novo acórdão do TCU (dezembro/23) expõe os riscos da sustentabilidade
econômico-financeira da INB, identificados pela auditoria operacional que
apontou graves debilidades da empresa, sinalizando que a badalada meta de
autosufiência na produção do combustível nuclear pode redundar em fracasso. O
trabalho encontrou fragilidades, como a inexistência de
incentivos naturais e regulatórios na produção desse combustível e a não implementação
integral da política de gestão de riscos.
A auditoria concluiu que a falha de mercado,
relativa ao custo de combustível nuclear, não tem recebido tratamento adequado,
existindo lacuna regulatória na
fiscalização e na avaliação da eficiência na produção do elemento combustível. Como consequência,
a INB não terá incentivo para produzir de forma eficiente, o que poderá
resultar em desequilíbrio econômico e financeiro da empresa.
Debate inadiável
A perene incapacidade jurídico-administrativa para solucionar
os desafios técnico-operacionais e de gestão pela INB e CNEN está bem exposta
em fiscalizações e
incontestáveis alertas do TCU e da ANM. A insegurança sistêmica vigente coloca em cheque a capacidade do
Sistema de Proteção ao Programa Nuclear Brasileiro dar conta de suas tarefas,
agravando os perigos do desenvolvimento da tecnologia nuclear para a produção de eletricidade.
A falta de acesso a informações confiáveis
sobre o caos que envolve a insegurança da exploração da tecnologia nuclear, a partir da expansão
da mineração – que vem deixando um passivo ambiental irreparável em Minas Gerais e na
Bahia – há muito vem provocando crescente reação da
cidadania brasileira. Em audiências públicas, ocorridas ao longo do ano no
Congresso Nacional, assembleias estaduais e câmaras de vereadores de Minas e do
Rio de Janeiro, graves problemas foram expostos e críticas severas atacaram especialmente a
falta de transparência, a inconsistência na comunicação e a insegurança
técnico-operacional que caracterizam a indústria nuclear.
O cenário de
desordem e confusão de ideias, trazidas pelo açodamento de mudanças da
legislação ocorridas nos dois últimos governos – que confundiu ainda mais o atual arcabouço jurídico
– e a soma de erros evidenciam a necessidade
urgente de uma autentica revisão da legislação de caráter nuclear/militarista
que norteia o setor. Que o governo entenda esta emergência e agilize esta
revisão da política nuclear, promovendo um debate aberto, democrático, com
ampla participação da sociedade, que não pode seguir convivendo com os riscos
da insegurança nuclear e em radioproteção!
https://racismoambiental.net.br/2024/01/18/2023-o-ano-mais-sinistropara-o-programa-nuclear-brasileiro-por-zoraide-vilasboas/
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