Quarta-feira, 17 de abril de 2024 - 14h31
Nos últimos 35 anos, os
governantes eleitos democraticamente pelo povo brasileiro vêm repetindo em tom
de campanha eleitoral que um de seus objetivos é unir o país, conclamando todos
a lutarem a favor do Brasil. O tema é, de fato, importante; o discurso é bonito,
e o povo aplaude.
No
entanto, entre o discurso e a prática a distância é enorme. A realidade é que,
em vez de mitigação do problema, o país assiste ao aprofundamento das divisões,
obra com a assinatura dos maus políticos.
Impossível
mascarar a realidade. Temos hoje os brasileiros das regiões Sul e Sudeste – que
somam 57% da população nacional – versus os
brasileiros das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste – os quais somam os
outros 43% da população. O país tem ainda a divisão de pobres versus ricos e
super-ricos, além da diferenciação por gênero e cor.
Persiste
no país a velha prática de, em vez de priorizar as ações efetivas em favor da
população, dedica-se à demonização dos governos anteriores, olhando mais para o
retrovisor do que para o futuro. Atualmente, tem-se dado mais valor às
narrativas que aos fatos. Nada disso é positivo nem faz parte da índole dos
brasileiros.
É
muito mais relevante para o país reduzir o enorme fosso existente entre
privilegiados que se beneficiam das benesses e os cidadãos comuns, a quem cabe
somente obrigações a cumprir. Esses são os vassalos do século XXI, uma
legião formada por mais de 92% da população brasileira.
No
entanto, a resistência é enorme para mudar essa realidade. Tinha razão o
economista e cientista político norte-americano John Kenneth Galbraith
(1908-2006) ao escrever que “as pessoas com privilégios preferem sua própria
destruição a perderem um pouco de suas vantagens materiais”.
Os
privilégios são muitos. Cerca de 55 mil pessoas ocupantes de cargos públicos
gozam de foro por prerrogativa de função e, portanto, se praticam crimes são
julgadas pelos tribunais superiores.
Mais
de 71 mil pessoas têm mandatos eleitorais conquistados democraticamente, em
eleições diretas. Todos remunerados pelos cofres públicos. Esse número pode
chegar facilmente a 800 mil ou 900 mil, em um cálculo bem modesto, se somados
os componentes do primeiro escalão de Ministérios, secretarias e assessorias especiais
nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
A
conta é alta. E é engordada pelo Fundo Partidário e pelo Fundo Eleitoral, ambos
milionários, constituídos com recursos dos contribuintes brasileiros e
responsáveis, em grande parte, pela reeleição dos que estão no poder, já que
grande parcela desses recursos tem distribuição discricionária pelos líderes
partidários.
Mais
um contraste brasileiro fica evidenciado quando são discutidos reajustes mais
dignos para o salário-mínimo e aposentadorias. Nesses casos, a resposta dos
mandatários e técnicos é sempre a mesma: não existe disponibilidade de
recursos. É o mesmo argumento utilizado em relação à necessidade de correção da
tabela do Imposto de Renda pelo IPCA anual para diminuir a defasagem que já
atinge 92%.
Por
outro lado, a propalada escassez de recursos públicos não existe para abastecer
o Fundo Eleitoral. Para as próximas eleições municipais, marcadas para outubro
deste ano, o Fundo Eleitoral aprovado pelo Congresso e sancionado pelo
presidente da República será de nada menos que R$ 4,9 bilhões. Valor esse
reajustado em 92% acima da inflação acumulada desde as últimas eleições, em
2020. Obviamente, não estão em jogo os valores absolutos, mas os critérios
diferentes: um decidido pela disponibilidade do Tesouro e outro decidido pelo
apetite dos mandatários.
Também
não faltam recursos para pagar o gigante quadro do funcionalismo público,
despesa sempre crescente. Em 2023, por exemplo, os gastos com o funcionalismo
federal atingiram R$ 369,5 bilhões, ante R$ 259,2 bilhões em 2022. Ou seja, R$
80,3 bilhões a mais em apenas um ano. Se fosse corrigido, o valor gasto em esse
segmento em 2022 chegaria a quase R$ 272 bilhões, implicando em dizer que o
reajuste praticado foi de 35,85% acima da inflação. Nenhuma outra categoria de
brasileiros assalariados teve reajuste desse nível.
Boa
parte dessa realidade é facilitada pelo silêncio da sociedade, aparentemente
sem disposição para expressar indignação. Acontece também em relação à
corrupção, mal endêmico no país, que parece ter desaparecido por mágica, pois
nada mais se fala a respeito. A conclusão a que se chega é que o combate a esse
grave problema nacional deixou de ser prioridade, em contrariedade à expectativa
nacional. Não por acaso, o Brasil ocupa a posição de número 104 entre 180
países no Índice de Percepção de Corrupção, elaborado pela Transparência
Internacional.
Analisando
outra questão, vemos que as autoridades vivem bem protegidas, enquanto o
restante da população sofre os efeitos da insegurança urbana. As facções
criminosas e as milícias atuam de forma cada vez mais ampla e violenta,
crescendo em razão da incapacidade do Estado de fazer o enfrentamento eficaz do
problema. Essa situação já faz surgir, inclusive, a preocupação com a
possibilidade – por ora remota – de o Brasil se tornar um paraíso do
narcotráfico, a exemplo de alguns países vizinhos.
As
estatísticas da violência são alarmantes. O Brasil ostenta o trágico número de
mais de 44 mil homicídios por ano, vitimando principalmente jovens. Além disso,
no trânsito, perdemos mais de 40 mil vidas por ano, o segundo pior índice no
mundo.
O
sistema carcerário é o retrato da falência do Estado. Segundo dados do Anuário
Brasileiro de Segurança, o Brasil tem hoje mais de 832 mil pessoas
encarceradas. Para se ter uma ideia da gravidade desse número, se todas essas
pessoas vivessem em uma única cidade, ela seria a 18ª mais populosa do país.
Esse número poderia ser ainda maior, pois o Brasil tem um déficit de 166 mil
vagas nos presídios e existem mais de 269 mil mandados de prisão expedidos e
ainda não cumpridos.
Tudo
isso nos remete à famosa frase do economista e filósofo alemão Karl Marx (1818
–1883), segundo o qual a história se repete pelo menos duas vezes, a primeira
como tragédia e a segunda como farsa. Estamos diante da segunda citação e muito
perto de podermos afirmar que somos uma nação de privilégios e impunidade. É
uma conclusão óbvia diante da realidade e de atos (ou omissão) deploráveis de
muito dos mandatários que se mostram verdadeiros donatários das “capitanias
hereditárias” do século XXI.
Outros
indicadores comprovam o abismo social que caracteriza o Brasil da atualidade.
No Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) ocupamos apenas a 88ª posição mundial
no ranking da Organização das Nações Unidas (ONU). No Coeficiente Gini,
indicador socioeconômico utilizado para mensurar a distribuição de renda num
determinado país, ficamos em 87º lugar, o que nos coloca entre as seis piores
nações do mundo nesse aspecto. Não é de se surpreender, visto que, no Brasil,
1% da população detém 48,5% do total das riquezas do país. O resultado também é
pífio na educação. No Pisa, estudo comparativo internacional que avalia o
desempenho dos estudantes na faixa etária dos 15 anos, ocupamos apenas a 66ª
posição, além de vergonhosa colocação na América Latina.
Não
é mais possível a nação conviver por mais tempo com essa nociva divisão entre
seus cidadãos, na qual os mandatários usufruem de privilégios enquanto a
maioria da população sofre em busca de uma vida digna e ainda enfrenta
restrições significativas e intervenções dos governos, seja em termos de
liberdade econômica (127ª posição num ranking de 186 países), seja em
liberdade política (87ª posição num ranking de 160 países) e em liberdade de
expressão (90ª posição num ranking de 180 países).
Os
erros dos governantes nos últimos 35 anos transformaram o Brasil de país das
oportunidades no país das oportunidades perdidas. É urgente acabar com as
divisões perpetradas por desmandos e privilégios e transformar o Brasil em uma
nação com brasileiros de classe única. É, aliás, o que determina a
Constituição.
**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de
macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi
vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à
deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br
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