Segunda-feira, 19 de setembro de 2022 - 14h41
Escatologia tanto pode ser o estudo dos excrementos quanto o ramo da
teologia e da filosofia que se preocupa com o fim dos dias. À primeira vista
pode até parecer que há uma imensurável disparidade entre as duas acepções da
palavra, mas a linha que separa uma da outra é mais tênue do que se pensa. O
grotesco e o sublime podem andar lado a lado e de mãos dadas. Esse é o poder da
escatologia.
A janela do fim da vida vem
caprichando nas vistas oriundas da bola de cristal da imaginação: catástrofes,
juízo final, apocalipse, dilúvio, profecias, bug do milênio, conspirações,
calendário Maia. Histórias profetizando o fim do mundo existem desde que o
homem adquiriu consciência crítica da sua própria existência, assimilando o
medo inerente e transferindo ao imaginário cerebral suas fantasias
escatológicas.
A maioria humana sempre foi
fascinada por extremos, principalmente quando a ciência não consegue desvendar
segredos convenientemente: o início e o fim da vida, ou o início e o fim do
mundo, deus e o diabo, ou o bem e o mal. Se focarmos o olhar com mais rigor,
veremos que não se trata de um problema de evidência, mas de crença.
A razão tem medidas pra
quase tudo, a ciência explica a maior parte dos fenômenos que nos cerca. Mas na
fronteira do quase com a verdade científica, existe uma região cerebral
dominada pela emoção, que especula com a imaginação, que transcende com a fé,
que considera a inteireza do ser enquanto ser com a metafísica.
E a grande diferença entre
esses dois ramos do conhecimento é que o metafísico não tem laboratório: o
homem não aceita a morte, ele quer a perenidade; as maravilhas materiais do
mundo não o satisfazem, insiste com o sobrenatural, com o transcendental; a
pequenez da terra em relação ao universo não o incomoda, a simples existência o
angustia, sonha com a igualdade perante os deuses, com o manjar infinito do
céu; ignora as evidências e acredita em varinha de condão. Paraíso, nirvana, um
admirável e imaginativo mundo novo, pós
mortem, criado por ele, ao longo dos milênios.
A conciliação é deveras
difícil, diria impossível, a emoção é o afago humano às obscenidades da razão e
às agruras da vida, nós acalentamos as nossas crenças e os nossos sonhos, como
contrapeso ao que causa sofrimento e angústia. O Big Bang, o universo em
expansão, os buracos negros, a imensidão do espaço, acontecimentos há bilhões
de anos, a nanotecnologia, as células tronco, a física quântica, os telescópios
espaciais, são para os nerds. Somos a parte que simplifica a existência, aquela
que optou pelo cérebro de hemisfério único, como os da inteligência artificial,
na expectativa que a evolução trabalhe pela unificação da emoção com a razão.
Nada como sonhar simples, ter
amigos, trocando lisonjas racionais; viver a expectativa da ficção, lendo;
acreditar no amor, amando; imaginar a estética da perfeição, poetando; vibrar
com o sexo, beijando; viajar com os olhos pela imensidão do mar, sentindo o
spray marinho na face; apreciar os astros visíveis, como enfeites ao planeta Terra;
nada como acreditar na eternidade, em companhia da corte celestial, ouvindo
cantos gregorianos.
Início e fim do mundo estão
entrelaçados na emoção humana, de tal forma que pseudobruxos de vários naipes e
épocas, teorias pseudocientíficas e místicas ocupam espaços nos meios de
comunicação, transitam livremente pela imaginação, com foros de verdade
absoluta: a última vista desta janela foi a que determinou que o fim dos tempos seria no dia 21 de dezembro de 2012 – ou,
mais precisamente, no fim do calendário Maia. Não divulgaram a hora, mas
se sabe o antídoto: a desconfiança. A vista da janela da
Filosofia, nas palavras de Nietzsche, nos ensinou que “a objeção, o desvio, a desconfiança alegre, a vontade de troçar são
sinais de saúde: tudo o que é absoluto pertence à patologia.” Eu e a grande maioria dos descrentes
troçamos, impiedosamente, dos que usaram o calendário Maia, para profetizar o fim
dos tempos. Só aos ficcionistas é dado enxergar a vista do fim do mundo.
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