Sexta-feira, 24 de maio de 2024 - 14h23
“A peste do Governo é a irresolução [...]
muitas ocasiões há tido o Brasil de se restaurar, muitas vezes tivemos o
remédio quase entre as mãos, mas nunca o alcançamos, porque chegamos sempre um
dia depois.”
Padre Antônio Vieira, 1640
Na manhã de 1º de novembro de 1755, dia de
Todos os Santos, Lisboa foi abalada pela maior catástrofe da sua história. Um
terremoto com intensidade de 9 graus - segundo estimativas geológicas atuais -
vitimou quase 100 mil pessoas, provocou o desabamento de mais de 33 mil
edificações, e destruiu cerca de 90% das igrejas e conventos da cidade. Um
tsunami e incontáveis incêndios fizeram a tragédia perdurar por mais cinco
dias. Com Lisboa completamente destruída
e o país moralmente abalado, D José I, então Rei de Portugal, perguntou ao
Marquês de Alorna o que fazer, após tamanha desgraça. A resposta foi lacônica e
dura: “enterrar os mortos, cuidar dos
vivos e fechar os portos”. Para o Marquês, era fundamental naquele momento
superar as perdas humanas - “sepultar os mortos” - e agir rapidamente para “cuidar dos vivos”, na busca de salvar o que
restou, sem esquecer de “fechar os portos", ou seja, evitar novos
problemas no cenário da catástrofe.
D. José repassou essa incumbência a D.
Sebastião José de Carvalho e Melo, seu ministro de confiança. O futuro Marquês de Pombal não se intimidou
com a quantidade de mortos, nem com o caos em que se encontrava a população ou
o próprio governo. De pronto, para evitar doenças, acelerou a remoção dos
escombros e promoveu sepultamentos coletivos. Como medidas econômicas de
urgência, instituiu a distribuição diária de alimentos aos sobreviventes,
isentou de impostos os bens de primeira necessidade e congelou os preços de
alguns gêneros, para evitar especulação. Convenceu os comerciantes a doarem à
coroa 4% do valor de todos os bens importados, e negociou com a Inglaterra,
França e Espanha víveres e materiais para as obras. Para combater pilhagens
criminosas, mandou vir das províncias efetivos de polícias e juízes, além de
gente para combater os incêndios e homens de ofícios, que mais tarde deram seus
nomes a muitas das ruas de Lisboa. Implacável como têm de ser os líderes nas
situações extremas, Pombal ordenou julgamentos sumários, e que forcas fossem
erguidas entre os escombros fumegantes, para que os corpos dos criminosos
ficassem à vista, como exemplo.
Um mês depois, Pombal já trabalhava no inventário dos edifícios
destruídos e no levantamento de registos de propriedade, proibindo construções
definitivas, até que todos os escombros fossem retirados, e concentrando seus
esforços nas reconstruções do centro da cidade, completamente arrasado pela
tragédia. Antes de 1755, Lisboa lembrava
uma cidade medieval, com ruas estreitas e sem traçado organizado. Vendo na
tragédia uma oportunidade, Pombal aproveitou para redesenhar a cidade,
transformando-a em uma metrópole moderna e menos vulnerável a terremotos,
ampliando e alinhando as ruas, além de adotar novas técnicas de engenharia e de
incentivar a padronização dos materiais e das fachadas dos prédios.
Nas últimas décadas, as catástrofes climáticas têm sido recorrentes no
Brasil. Segundo dados da Confederação Nacional de Municípios (CNM), entre 2013
e 2022, os prefeitos de 5.199 municípios brasileiros – ou seja, 93% do total de
5.570 – tiveram de fazer registros de emergência, ou de estado de
calamidade pública, em consequência de desastres naturais
como tempestades, tornados, inundações e enxurradas. Nesses casos, as tragédias
afetaram a vida de mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de abandonar as
próprias casas. O estudo indica que mais de 2,2 milhões de moradias foram
danificadas, em 4.334 municípios (78% do total), sendo que 107.413 foram
totalmente destruídas, não incluídos aí os números dos desastres
decorrentes de interferência humana, como das Barragens de Brumadinho e
Mariana, e nem das recentes inundações em Pernambuco (2023), e no Rio Grande do
Sul (2024).
Perdas humanas são irreparáveis, e não podemos deixar de “cuidar dos
vivos”. Mas, a dura lição dos acontecimentos não tem sido aprendida: a
gestão das nossas cidades está ultrapassada. Mesmo
vivenciando crises sem precedentes, as cidades brasileiras continuam trabalhando
sem coordenação efetiva dos serviços públicos, com a informação compartimentada,
e com uma comunicação - das autoridades e da grande mídia - mais voltada para
desacreditar pretensos concorrentes ou adversários políticos, do que para
convergir esforços na solução dos problemas urbanos. A insensibilidade e a
ganância têm predominado junto aos políticos e comerciantes da vez, que
diariamente aparecem nas redes sociais se aproveitando dos prejuízos públicos
para ganhos privados. A pandemia já havia mostrado ser prioritária a redefinição
das estratégias de defesa civil das cidades, assim como o emprego das novas
tecnologias, para agilizar os procedimentos de urgência, evitando-se prejuízos
e retrabalhos, hoje habituais inclusive no inestimável esforço dos voluntários.
Também, ser crucial uma comunicação fidedigna, capaz de privilegiar a
cooperação entre o público e o privado, sobrepondo-se à polarização política
oportunista, e minimizando a desinformação.
Agora mesmo, as cidades gaúchas já estão enfrentando alguns problemas de
dimensões e natureza totalmente inéditos: operações de segurança pública
intermitentes em ambientes incomuns; massiva expedição de documentos pessoais e
patrimoniais extraviados; planejamentos urbanos voltados para minimização dos riscos de desastres futuros;
(re)construção e legalização de antigos e novos imóveis; trato e destinação de
milhares de animais resgatados; controle da lisura na distribuição de bilhões
em donativos e recursos financeiros; difusão de uma informação “one voice”,
(versão única) que concretize a transparência dos fatos, e minimize o efeito
criminoso das fake news.
Neste sentido, a tragédia do Rio Grande do Sul pode nos favorecer
soluções demandadas há décadas, obrigando o abandono das improvisações dos orçamentos
emergenciais, e a adoção do conceito de operação da cidade, com base em
um “sistema integrado de resiliência urbana”. Partindo de um comitê de
crise técnico, é possível montar um centro de governo permanente e
efetivo, calcado em plataformas de consciência situacional, valendo-se
de modernas tecnologias de captação e processamento de dados. Sistemas
integrados de Comando e Controle (C2), utilizando ferramentas de Internet das
Coisas (IoT) e Inteligência Artificial (IA), hoje comuns no mercado, podem promover
a modernização da governança, a racionalização da reconstrução urbana e das
providências de restauração da vida dos cidadãos. Mais que atender às
consequências de desastres naturais, a operação digital de uma cidade dificulta
o mau uso dos recursos públicos, e faz a sua administração evoluir naturalmente
com a tecnologia, trazendo qualidade de vida para as populações, e permitindo
inclusive antecipação às possíveis crises.
Graças à visão de estadista e à determinação administrativa do Marquês
de Pombal, Lisboa transformou-se na mais moderna capital da Europa do Século
XVIII, apenas dez anos após o terremoto. Quase quatro séculos depois, numa
situação similar de tragédia climática, o Brasil assiste seus executivos consumindo tempo e energia simplesmente difamando
detratores políticos e alardeando ineficazes realizações imediatas. Estadistas conseguem transformar
catástrofes em experiência e oportunidade, mas políticas paroquiais mesquinhas, descaso com o bem comum e incompetência
para gerar futuro têm sido a nossa tônica. Hoje, o conselho do Marquês de
Alorna ao Rei seria diferente: cuidar dos
vivos, comunicar com eficiência e reestruturar a cidade. Está nos faltando
aquela resolução prática e objetiva lusitana. Serviu para a reconstrução de
Lisboa em 1755, certamente pode servir aos nossos governos, às nossas vidas.
Gen
Marco Aurélio Vieira
Foi
Comandante da Brigada de Operações Especiais e da Brigada de Infantaria
Paraquedista
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