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Crônica

Abolição Incompleta


Abolição Incompleta - Gente de Opinião

É bom que se diga que não existe uma consciência branca ou negra, a consciência é inerente ao ser humano, é uma qualidade psíquica, um atributo do espírito e está intimamente relacionada com o “eu” e se conecta com a moral. É conveniente saber também que ser consciente não é a mesma coisa que perceber-se no mundo, mas ser no mundo e do mundo, para isso precisa da intuição, da dedução e da indução. Todavia, simbolicamente, a consciência é negra, porque, por 300 anos, os negros e não os brancos foram escravizados neste país. A gente não viveu essa época, mas ainda hoje sente as consequências e as disparidades de direitos e oportunidades.

Não há dúvida de que a abolição incompleta, do 13 de maio, gerou, muitos anos depois, com a evolução dos acontecimentos, a escolha do 20 de novembro, inspirada em Zumbi, como contraponto à data oficial, valorizando a cultura, a história e o papel político dos afro-brasileiros na sociedade contemporânea. A implantação do Dia da Consciência Negra serviu para mostrar ao negro a necessidade de negociar a cidadania, fundamentado em uma identidade negra e não mais a partir do branqueamento social.

O negro de hoje nasce livre, mas para a sua autoconsciência, onde o “eu” é o objeto de reflexão e da consciência moral, ainda está preso, precisa buscar a razão, através de movimentos de inclusão social, para que esta o ajude a libertar-se, literalmente, porque só pela razão e por meio dela ele vai legislar e criticar o seu estado atual, evoluindo de liberdade concedida para liberdade conquistada, ignorando mais de 150 anos de uma pseudo libertação, sem nenhum incremento oficial, sem nenhuma ajuda por mais empregos e escolas que propiciassem maior aproximação entre brancos e negros.

Não é à toa que os jovens afrodescendentes, pós abolição, continuam sofrendo as consequências pelo distanciamento social e por inúmeros eventos racistas no dia a dia, desenvolvendo um certo complexo de inferioridade, que pode evoluir para atitudes de arrogância e violência, via álcool e drogas, dificultando o relacionamento, na vida adulta. O álcool e a droga funcionam como libertadores contemporâneos da raiva embutida, niveladores das diferenças sociais, salvo raríssimos casos de libertação pela educação..

A cultura africana só será valorizada e integrada à sociedade, quando os afrodescendentes, racionalmente livres, se tornarem conscientes dos caminhos que o levarão a encontrar a completa libertação/realização. Enquanto o negro não se “livrar” do branco, ou pelo menos assimilar o branco dentro dele mesmo, assumindo, criticamente, a miscigenação estampada na sua face, nunca será livre. O racismo do pardo que se acha branco e não aceita a sua parte preta, demonstra a premente necessidade de uma Consciência Negra coletiva.

O sonho pela igualdade e, de certa forma, pelo fim da injúria e do preconceito racial velado, se confunde com a busca pela felicidade, porquanto o ser humano racional, branco, negro, pardo ou amarelo, aspira tal estado de espírito, e, para tanto, busca bens materiais e espirituais, pois que, é senhor e mestre dos seus desejos. O dinheiro até pode embranquecer a pele social, mas não liberta o “indeciso” das lágrimas, que lavam, mas não modificam a cor da pele, nem confortam a angústia existencial shakespeareana do ser: To be, or not to be, that is the question.  No Brasil, black lives matter?

A repressão mental, referente a negritude, enquanto sentimento de orgulho da identidade negra, impede que conteúdos psíquicos incômodos cheguem à consciência, mas não deixa de ser traumática. Esquecer atitudes racistas que nos fizeram sofrer, se parece com uma panaceia psicológica contra nossas piores angústias, contudo as memórias reprimidas, nem com exercícios de autoajuda ou o auxílio de textos sagrados, são deletadas da mente – só se escondem, e afloram, a qualquer instante, em forma de raiva e violência!

O escritor Lima Barreto deixou aflorar em diversos romances (a obra foi reunida em 17 volumes) e em crônicas jornalísticas, o seu protesto contra as teorias racistas e as práticas de rejeição aos afrodescendentes. Em 1953, escreveu em seu diário íntimo: “A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori”. Além disso, como se estivesse reprimindo a sua raiva existencial, escrevia todas as noites, entre lágrimas, naquele mesmo diário: “É triste não ser branco.”

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